Por Lulu
Alfenas
Edgard e Salim em Ouro Preto, em 1928 |
Ao contar essa história para Edgard, Salim a concluíra com
uma apologia a si próprio e a sua família.
— Nós tem berço. É, Seu Diga, nós não aceita cangalha, nós
não ser suas mulas de carga. Nós honesto e agarrado na Cristo desde pequeno.
Nós do bem. Eu até comete muitas burrice, mas nós de boa coração.
Naquela oportunidade, Edgard ouvira esse homem e suas
histórias interessantes, e dele teve uma impressão positiva. Não se importava
que o libanês cuspisse nas concordâncias, trocasse os gêneros, pluralizasse os
acertos e singularizasse os erros, e achava até que isso era marca do caráter
de quem assume as próprias falhas e releva as do próximo, uma forma de amor de
gente de bom coração, pensava. Nunca opinara ou corrigira seu modo de falar e
muito menos sua maneira de encarar a vida, tinha receio de que uma palavra mal
interpretada, pelo pouco conhecimento que o amigo tinha da língua portuguesa,
pudesse derrubar aquela amizade que se iniciava.
Mas agora, ali naquelas montanhas belas e verdes, antes de
chegar a Ouro Preto, Edgard, ao se lembrar das conversas com Seu Salim, avisara
a Deoclécio:
— Primo, com seu Salim é melhor falar pouco e não deixar
entrelinhas. Faça cara de mula de cangalha, simpatia ou antipatia em demasia
podem comprometer. A feição neutra afasta o risco de uma ofensa por engano de
interpretação. Nada pior do que
desagradar querendo agradar. Esses estrangeiros são diferentes e sistemáticos.
Deoclécio ria desses conselhos desnecessários, porque sabia como se comportar e
não precisava ser orientado em nível tão primário e óbvio. Contudo, o coração
sempre mais sutil do que a razão, costumava refletir sobre esses
intrometimentos e, algumas vezes, interrogava-se sobre a intenção do
companheiro: estaria aquele proferindo um simples chiste, ou uma ofensa mais
séria? Nessas ocasiões, lembrava-se do que o amigo há tempos lhe dissera: “se
amizade não serve para botar panos quentes sobre os defeitos do amigo e dos
entreveros, servirá para quê”? E isso era o bálsamo que acalmava suas tripas e
esfriava seus miolos.
Tantos pensamentos, conversas e brincadeiras atenuavam o
trotar dos animais e tornavam a jornada menos tediosa. Nessas viagens, cada
marcha começava sempre cedo e nesta, depois de dois dias de estradas e poeiras,
a partir de Bacalhau, e de dormirem enrolados em capas de gabardine, com as
cabeças sobre as celas, como se travesseiros fossem, finalmente se aproximaram
do destino. Era ainda manhã quando Edgard avistou a casa de fazenda do
Bandeira, onde o irmão Duca morava desde o seu casamento, em 1924[i]. A
intenção era parar, conversar um pouco e almoçar, mas aconteceu de o irmão
estar fora, no ofício de bombeiro hidráulico, a soldar e emparedar canos de
chumbo, sua especialidade. Na ausência do irmão e na presença de Deoclécio que
poderia causar constrangimentos devido a sua natureza extrovertida, Edgard
mudou de ideia: sem ao menos apear, explicou para a dona da casa:
— Desculpe-nos cunhada, estamos com pressa, eu só passei para
uma meia-palavra com o Duca. Não vou deixar nem recado, porque é coisa sem
importância, nem íamos mesmo beber água.
— Por que tanta pressa sem motivo? — Cecília arguiu o
cunhado.
— Estamos atrasados para uma entrega. E sendo hoje
quinta-feira, sei que o senhor Salim gosta de rezar o terço mais cedo, e se a
gente chegar muito tarde complica a vida dele — esquivou-se Edgard.
Cecília pensou:
“desculpa esfarrapada, onde já se viu aquele turco rezar terço com dia
marcado”. Porém já resignada com a negativa, insistiu por educação:
— O José vai ficar chateado em saber que você passou por aqui
sem almoçar. Nem ao menos um café simples, um biscoito de polvilho feito na
hora[ii], uma água da bilha? Sair assim é uma judiação conosco!
Edgard ouviu o que esperava daquela dama tão educada,
agradeceu à cunhada a gentileza da insistência e seguiu viagem. Mas foi
obrigado a escutar as lamúrias espirituosas de Deoclécio:
—Ah! companheiro, a gente podia ter apeado e tomado um café
fresco, que mal faz isso! Dá pena perder aqueles biscoitos de polvilho, aquela
broa de fubá com queijo. Abrir mão disso é mesmo uma judiação com a sua
cunhada!
Edgard discordou:
— Sossega essa pança.
Você não sabe nada da casa de meu irmão! Como saberia sobre biscoitos e a
cozinha de lá? Tá pensando que lá é a casa de Inhaiana? Fica pra volta, hoje eu
sou o chefe, na volta você manda, se quiser passar, a gente passa
Silenciaram-se enquanto os animais sofriam no enfrentamento
daquelas escarpas.
Desde Piraguara até Ouro Preto, percebe-se claramente que se
está subindo, a ex-capital é quase no topo de uma cadeia de montanhas, embora
quem chegue ao centro urbano, vindo de qualquer outra cidade, tenha a ideia de
que está a precipitar buraco abaixo e que a ex-capital foi enterrada num vale.
Essa ilusão deve-se a que a Praça Tiradentes, cujo ícone ali é representado
pela estátua do grande vulto da história brasileira, parece estar numa posição
baixa, pois se chega à cidade pelos cumes, deles descendo pela montanha para
alcançar o centro. Esta impressão fica mais nítida quando se vai à casa do
senhor Salim, que ficava numa rua ao pé do morro.
Quando desciam, vindos do lado de Mariana, Edgard disse a
Deoclécio:
— Primo, preste atenção na vista! Se você conseguir sentir a
beleza deste lugar, vai deixar de ser peão para sempre e vai se casar com uma
moça bonita, prendada e muita educada.
— Uai, Edgard! Eu não sabia que você era supersticioso. Pra
que tanto entusiasmo, quem disse que sou peão! Só porque peguei em cabresto e
toquei umas mulinhas nesta viagem, não
me jogue no meio da tropa e me faça de peão! Tenho sonhos maiores, primo! Nem
todo mundo que passa na frente de um boi é ‘candieiro’ e quem encosta-se a uma
mula é tropeiro.
Deoclécio retrucou o rótulo, mas aceitou o destino
— Mas tenho que
concordar que vou me casar com uma moça bela e educada, e já a tenho em
mira. E tem mais, sei muito bem apreciar essas vidraças e janelas em estilo
colonial, são mesmo de encher os olhos. Gosto também dessas portas em tamanho
gigante, um exagero para vocês Alfenas, de um metro e meio de altura, no
máximo.
Edgard deu aquela risada, reservada para as melhores piadas,
em que engolia o fôlego de tanta graça que achava, e disse:
— como se você fosse tão grande, olha a tanajura zombando da
formiga!
— Se fosse do zangão, tudo bem, porque é macho, embora não
seja lá também muito agradável trocar a vida só pela aventura de uma tarde de
romance nas alturas— retrucou Deoclécio, também com uma risada que colidia com
as primeiras casas da cidade e ecoava morro acima.
E assim, os dois cavaleiros, de gracejos em gracejos, no
incômodo balanço de grandes subidas e nos efêmeros alívios de pequenas
descidas, vão ao encontro do agradável movimento de cidade grande. A ansiedade, tão comum nas chegadas em que
os cavalos são os primeiros a sentir, para os cavaleiros era esmaecida pela
contemplação da arquitetura exuberante da cidade. Lá em baixo, num ponto
encoberto pelos casarões, está o comércio do libanês, que aqui é chamado de
turco.
Finalmente os animais, cansados de tanto sobe-e-desce,
alcançaram o fim da rua; e os cavaleiros, com o corpo doído e as pernas
dormentes, despencaram-se de seus animais.
Mal puseram os pés no passeio, e lá veio o seu Salim projetando uma
enorme barriga, que o antecedia e como se tivesse acabado de engolir uma grande
abobora, que lhe deixara um enorme calombo.
Esbaforido, jogando palavras ao vento, como um personagem de teatro
renascentista, vinha pelas portas dos fundos do armazém:
— Seu Diga! Deus mandar o senhor aqui. Salim está muito
preocupada com a saúde da Eurides, Salim quer uma conselha.
Virou-se para seu menino de pasto, disse:
— Eliodoro, dê uma conforto para os pobres animais, estão
suspirando fundo. Tire os arreios, jogue uma água fresca no lombo deles, leve
para o cocho da fundo, ponha bastante milho, fubá e ração e depois solte na
pasto do Laranjeira, lá o capim muita meloso. Trata bem esses animais.
Edgard procurou tomar pé da situação:
— Mas o que aconteceu com a Dona Eurides? Alguma coisa grave?
Salim realmente parecia preocupado:
— Grave demais, apareceu com uns frieira nos dedos do pé que
não saram. O doutor já fez vários curativos, e o ferida fica cada vez pior.
— Quem é o médico dela?
— É o doutor Eusculápio. Ele mesmo tem feito as curativo.
Edgard, a convite do Senhor Salim, entrou na casa e foi
direto ao quarto da senhora Eurides, o companheiro de jornada ficou ali meio
esquecido, como um cachorro que não sabe debaixo de que cadeira pode deitar. Já
lá dentro, Edgard pediu licença ao dono da casa e conversou reservadamente com
a doente. Ao sair, calmamente, dirigiu-se ao senhor Salim:
— Caro amigo, acho que já sei o que a sua senhora tem. Pelo
que ela me relatou, e peço que o senhor confirme: ela sente muita fome, muita
sede, desânimo e está urinando muitas vezes ao dia?
O marido confirmou:
— É isso mesmo, por mais que coma, não engorda e por mais que
beba, não mata o sede.
Edgard aconselhou:
— Fale com o médico dela, pode ser diabetes. Diz pra ele que
se ele provar a urina dela e se for doce é diabetes na certa.
Salim desconsertou-se:
— O amigo está a brincar comigo numa situação dessas? Quem há
de provar o urina de uma mulher, ainda mais, doente!
— Pelo amor de Deus, seu Salim, é a mais pura verdade! A
única maneira de descobrir se é diabetes é provando da urina dela, se for doce
é diabetes, quanto mais doce mais grave. Os médicos mais conceituados do mundo
estão aplicando esta técnica hoje, mas aqui no Brasil a gente pode usar também
a formiga doceira. Será que tem desta formiga por aí? Se tiver, é só jogar a urina perto delas, se
banquetearem ao seu redor, então o senhor não terá mais dúvidas.
— Então, pois, Salim não precisa da médico, se é assim, Salim
procura uma formigueira destas, se não encontrar, Salim prova urina.
Disse e entrou no
quarto e, um minuto depois, voltava com um urinol cheio de urina ainda quente.
— Salim tomar decisão, não ficar procurando formiga, Salim
prova e vê se o senhor entende mesmo desta mal.
Dito e feito, pegou uma colher de sopa, mergulhou no líquido
avermelhado e levou à língua, deu um estalido com a língua e gritou espantado:
— Pela coroa da Senhora Bom Jesus de Bacalhau! Salim sentir gosto de açúcar. É como se Salim
provasse mel do abêia.
— Pois bem seu Salim — disse Edgard e logo foi dando a
receita: — ela deve evitar comer muito, deve evitar açúcar a todo custo, e
precisa dormir bem. Os remédios, o senhor pega com o médico, que entende disso.
Mas lhe digo uma coisa, não adianta ela passar pelo sofrimento desses
curativos, pois o problema dela não está nos dedos do pé, isso é sintoma, o
grave está no sangue, é uma doença chamada diabetes. Ainda não tem cura, mas há
remédios novos na Europa, o senhor tem recursos e pode encomendá-los. Por ora,
é preciso que ela faça uma dieta balanceada. Faça com que coma muitas vezes ao
dia, mas pouco de cada vez.
Salim estava estupefato. A prova da urina era indício de que
Edgard falava sério. Urina normal é salgada, como todo mundo aprende logo na
primeira infância quando a criança testa tudo que a rodeia com a própria boca.
Como podia um rapaz tão jovem, vindo desses confins da mata mineira, sem estudo
quase nenhum, um primário mal acabado, saber dessas coisas? Arriscou uma
pergunta:
— Seu diga, de onde o senhor tirar tanto sabedoria? Como
conhecer um doença que o doutor daqui, que é formado numa boa escola da Europa,
não sabe descobrir os causas?
Edgard respondeu sem vaidade:
— Minha mãe trata os amigos e parentes com chás de horta,
pois tem alguns conhecimentos de homeopatia. Mas ela é interessada nas doenças
em geral e assina dois jornais, um de Belo Horizonte e outro do Rio, assim a
gente acompanha as novidades na política e na medicina. Eu leio, presto
atenção, converso com minha mãe sobre o que entendi e vou me preparando para
poder pelo menos cuidar melhor de minha família, pois me caso sem demora.
Deoclécio ouvia tudo sem opinar, mas cada vez valorizava mais
a amizade de Edgard e o respeito que ele lhe dedicava. Uma amizade sincera e
mútua, cheia de brincadeiras e alicerçada em consideração. A amizade entre eles
permitia esse tipo de confiança, que para estranhos poderia parecer abusos, e
acreditava que quando um não diminui o outro, os dois crescem, mas sempre que
podia, e neste episódio não ficou por menos, fazia troça da maneira respeitosa
com que Edgard era tratado pelo senhor Salim:
Já entendi: — é seu diga pra lá! Seu diga pra cada! Por que
não somar palavras e logo tratá-lo por Sodiga.
E a partir dessa
viagem passou a chamá-lo Sodiga quando estavam sozinhos. Vendo que o amigo
reagia com cara de mamão macho, resolveu insistir na alcunha e passou a gostar
também daquele som “Sodiga”, então, aos poucos, abriu a novidade ao público. O
apelido pegou e esparramou-se, primeiro no Felipe Alves, depois nas redondezas
e no povoado e, anos depois alcançou todos os recantos dos municípios de
Piraguara, Piranga, Rio Espera, Brás Pires, Lamim e Cipotânia.
Mas agora, enquanto passeavam pela cidade, os pensamentos de
Edgard pairavam além do verde dos altos cumes e, influenciadas pela síncope do
apelido que o primo lhe cunhara, suas lembranças foram pousar suave num passado
bem distante quando era ainda pequeno: lembrou-se da tirada do pai quando
nascera a irmã Presciliana. As crianças tiveram dificuldades com a pronúncia do
nome, chamavam-na de presquiliana, perciana e outros nomes engraçados. A menina
já ensaiava os primeiros passos, e ninguém acertava o nome dela, então o pai
sugeriu, em tom de gracejo, que as crianças simplificassem: “Por que não a chamam
de Peixe, não é mais fácil?”. E o apelido pegou de tal forma que, daí a poucos
anos, ninguém da região sabia o verdadeiro nome dela.
Naquela noite, tiveram que dispensar a pensão, pois o senhor Salim,
agradecido pelos conselhos do jovem, não deixou que dormissem em outro lugar:
— Ora, ora, me conta outra! Hoje vocês vão dormir é aqui,
pois o seu Diga me prestou um grande favor. E o Deoclécio também, pois só pode
ser homem da bem, como diz as escrituras: diga-me com quem andas e direi quem
és. O companheiro de quem ajuda sempre leva um pouco da fama.
Edgard pensou: “eu aprecio este homem, mas não concordo com
tudo que diz, eu posso andar com muita gente melhor ou pior do que eu. As
melhores vão ajudar-me a me aperfeiçoar, e as piores, espero que aprendam
alguma coisa comigo e se tornem também melhores. Salim tem pensamento elitista,
é do mesmo tipo: ajunte-se aos bons e serás um deles. Espero que o senhor Salim
esteja apenas falando da boca pra fora. Se a gente escolhe e seleciona demais
os amigos, acaba sem nenhum.
Afinal, repousaram ali. Para hóspedes tão simples, a casa do
Senhor Salim era um requinte. Móveis Luiz XV, poltronas importadas, cômodos
espaçosos e muito luxo nos banheiros em todos os quartos. Embora já
conhecessem água encanada, ambos admiraram o fato de que todos os cômodos da
casa, mesmo os dos empregados domésticos, terem no mínimo um bonito lavabo de
louça. Tudo ali sinalizava bom gosto, riqueza e conforto. Edgard e Deoclécio dormiram em quartos
separados, uma atenção pouco usada para hospedar tropeiros e peões. Quem visse
o senhor Salim em sua simplicidade atrás do balcão ou a entrar por uma porta de
fundos que ligava sua casa ao comércio, certamente pensaria que sua casa fosse
de categoria inferior, de proporções e arquiteturas modestas. Ledo engano, a
casa pertencera a um proeminente do império que nela havia residido até o dia
em que a capital migrara para Belo Horizonte. Salim comprara a casa de um
herdeiro de quem era amigo desde que chegara, no raiar do milênio, para se
estabelecer na cidade.
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[i] José Alfenas, o Duca, casou-se, em 24 de novembro de
1924, com Cecília da Silva que passou a assinar Cecília da Silva Alfenas. Foram
testemunhas de casamento: o farmacêutico Wolney Carlos Marcenes da Silva, que
em 1954 seria candidato a prefeito de Senhora de Oliveira, contra Edgard, e Antônio Vidigal, cunhado de Duca. O juiz de
Paz foi o Alexandre Nicomedes Dutra, mais conhecido como Xandin Dutra.
[ii] Biscoito de polvilho feito na hora é retórica, mas o
costume da região era manter biscoitos bem conservados em lata de
banha reutilizadas para esta e outras finalidades. .
Coisa danada de boa é poder ler um texto tão gostoso e trabalhado antes mesmo do café da manhã, degustando a história e o texto bem elaborado, matando a saudade dessa família da qual passei a compartilhar alguns momentos que deixam muitas saudades.
ResponderExcluirObrigado amigo, em nome da família e em particular do meu.
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