Por Lulu Alfenas
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| Franklin Francisco Vieira de Souza (Franklin Fidelis) |
Conto baseado em caso real inicialmente escrito para constar do livro do amigo Liberato de Souza Lana, que me autorizou também a publicá-lo neste Blog.
Hoje amanheci pensativo e puxo pela memória, quero me lembrar dos detalhes.
Tudo está pendurado no meu calejado neurônio que gosta de casos. Parece
que foi ontem: acabamos de chegar à casa de Carmitinha (1), onde o Tio Franklin
Fidelis (2) está morando agora. Nós viemos
para conversar sobre os tempos antigos. Somos três xeretas: Tio Chico (3), Antônio
Calazans (4) e eu (5). Estamos ansiosos para bisbilhotar o passado, mas antes temos que
pagar o preço da curiosidade e jogar truco com o anfitrião, até que gostamos das cartas,
mas hoje era para ver o passado através da memória do Sô Frank. Carmitinha,
para não quebrar a generosa tradição da família, empanturra-nos com biscoitos
de polvilho guardados em latas grandes com boas tampas. Um dia ensolarada de
1980. Meu neurônio não sabe em que dia nem em que mês estamos. A folhinha está
lá, mas o tempo que branqueou os cabelos embaça as letras. Carmitinha não tem
mais aquela criação de coelhos que dava vida ao terreiro da cozinha. Mas agora
estamos ali jogando baralho, esquecidos do tempo, dos coelhos e da velha UDN.
Truco! Vale seis! Vai mais um biscoito esmagado entre os dentes, barulho de
crocância a quebrar o silêncio passageiro entre os gritos: vale seis, ladrão de
milho!
Agora estamos na sala de visitas, insistimos um
pouco, e o tio vai falar.
“Quando
eu voltei de BH, resolvi instalar uma vendinha na encruzilhada da Vargem. Isso
foi em 1910, mais ou menos. Voltei da capital cheio de sonhos e alguma
experiência de comércio porque lá trabalhei de caixa em bares e restaurantes. Na
venda da Vargem o movimento era acanhado, mas naquele tempo tudo era assim,
pequeno e calmo. Eu me levantava bem cedo, arreava o cavalo e nem
precisava galopar, em poucos minutos eu já estava abrindo a venda. E ficava ali
debruçado no balcão vendo o tempo passar e, raramente, algum cliente. Algumas
vezes, minha irmã Deolinda vinha para cumprimentar com uma boa tarde e trazia-me alguma
comida: broa, milho verde e bolinho de fubá. Aquela presença amiga quebrava um
pouco a monotonia da estrada, mas o mais frequente era o compadre Chico Henriques, sogro
da Deolinda que se casara com o João da Vargem, que iria morrer novo.
O Chico Henriques, este vinha quase todo dia só para jogar conversa fora e contar algumas novidades. Eu
também, quando o dia ficava feio, e eu triste, dava minhas voltinhas. Ia até a
ponte de madeira sobre o ribeirão da Vargem, onde uma água corre limpa e calma,
e que se junta, alguns metros abaixo, com as águas que descem do Pega Bem e do
Pires e seguem, mais encorpadas, em direção ao arraial, uma benção a
irrigar hortas e tocar moinhos de fubá por onde escorre. Nessas ocasiões, eu deixava
a venda aos cuidados do Lionel, um menino que estava sempre por ali e que
costumava me ajudar nas tarefas de varrer o chão e lavar o balcão, o que não
faltavam ali poeira e folhas secas.
E num dia desses, em que as nuvens tapam toda a
abóboda celeste, e o frio resseca a pele e racha os lábios, apareceu ali um homem
estranho, enrolado em capa grossa e com capuz de lona, barba mal feita e uma
cicatriz profunda do lado esquerda da cara. Medonho, no mínimo! Parece que ele
desconhecia o sentimento de repulsa que um estranho como ele pode causar, mas mesmo
que fosse simpático e de boa presença não podia chegar fazendo tantas
perguntas:
-- O senhor conhece, por aqui, um tal de
Francisco Henriques de Miranda?
Eu não respondi, ao contrário, o inquiri no bate-pronto:
— Qual é a graça do senhor?
O estranho ficou um pouco perdido, parecia que
não sabia o que significava graça. Então refiz a pergunta.
— Como é o seu nome?
Ele me olhou de um jeito que mais parecia de
ameaça do que de surpresa pela minha ousadia em questioná-lo, mas acabou
respondendo mais do que eu perguntara:
— Zé Gregório, venho dos lados de Capela Nova
das Dores.
Nessa altura já começava a escurecer, eu
desconfiado, fui lá atrás da venda, pedi ao Lionel para sair pelas fundos e que se escondesse na mata até chegar á casa do compadre Chico, não
podia ser visto, e que avisasse ao Chico Henriques (6) que o homem que vinha
para matá-lo já tinha chegado. Que ele fugisse rápido! Quando voltei para a
venda, trazia um engradado de bebidas fingindo obrigações para que aquele matador de aluguel não
desconfiasse de minhas intenções e manobras.
— Seu Zé, o senhor quer tomar alguma coisa?
Perguntei.
— Não, só quero mesmo fazer uma entrega para o
senhor Francisco, onde mesmo ele mora?
Eu sabia que a entrega que ela faria era pesada
e arderia em quem a recebesse, mas não estava com medo dele, apenas me precavi,
pois senti, pelo cheiro que os maus exalam, que aquele era um assassino de
aluguel da pior espécie. E havia também o fato de que o amigo já ter me prevenido
quanto ao risco da presença de estranhos. Poucos dias antes, o Chico me dissera:
— Amigo Franklin, um homem de Barbacena, que
perdeu uma demanda comigo na justiça, me jurou de morte, e dizem que ele é
covarde e costuma resolver suas pendências por meio de capangas. Então, amigo,
se aparecer algum suspeito por aqui mande me avisar.
E assim fiz, mas o homem estava ali persistindo,
queria mais informações que facilitassem sua ida à casa do Chico. Ele era
insistente e eu sabia engabelá-lo com desculpas esfarrapadas dizendo que o Francisco de que falava não era muito conhecido, talvez tivesse até se mudado da região. O tempo passava devagar e já escurecia, mas não me ative a apenas esperar, queria
também assustá-lo um pouco: acendi um lampião de querosene e fiz um movimento espalhafatoso ao abrir uma cortina
que cobria uma prateleira, e de propósito deixei que ele visse minhas facas de picar
mortadela, minha garrucha de dois canos e um revolver novo em folha (as armas eram plástico, só para assustar vagabundos). Mas parece que isso não o abalou. O tempo passava e
de repente já era hora de eu fechar a venda quando o inesperado aconteceu: O
homem estava entornando um gole de pinga e já se preparava para jogar o do
santo no pé do balcão quando um vulto saiu, de repente, da penumbra e
agarrou a gola de sua capa com a mão direita e com a outra encostou uma
navalha em sua garganta e gritou para o Lionel:
— Lionel! Lionel tire as armas dele e vá até ao
cavalo dele e olhe se no arreio tem alguma arma. Vasculhe os sacos e embornais.
Busque tudo que fura e que cospe fogo! Ajunte tudo e leve para o meio da ponte
e jogue tudo no córrego. Capriche para que tudo caia na correnteza e seja
arrastado!
Depois de as armas recolhidas e entregues ao
ribeirão que nunca regurgita, o facínora parecia até que ficara menor.
Seus olhos demonstravam medo do que poderia vir em seguida. Quem tinha
a aparência medonha agora era o Chico Henriques, ainda com a navalha na mão,
olhos vermelhos de sangue, controlou o facínora e, em movimento de grande
destreza, pegou o chicote que trazia preso ao cinto e, incontinente, sem dizer
nada, deu-lhe uma sova de deixar saudades.
Depois de corrigir aquele covarde, Chico Henriques disse-lhe
calmante:
— Hoje você viveu de novo porque eu estou num dia
bom. Mas se você aparecer de novo por estas bandas, a história será outra. E
avisa também para seu amigo lá de Barbacena que se cuide, não vou perdoá-lo se
houver uma nova empreitada. Cambaleante, o agora não tão facínora
conseguiu montar seu pangaré e sair dali em trote lento porque aquele corpo não
suportava mais solavancos.
Depois de ser palco dessa coça histórica, o
lugar voltou à calmaria. Os dias corriam lentos como as águas do ribeirão da Vargem em seu leito de pouca descida. Nada acontecia que
pudesse ser mote de uma lembrança digna de nota. Minha vidinha era tão
pacata ali e sobrava-me tempo para pensar nas coisas boas que me aconteceram em
Belo Horizonte quando lá havia morado: um patrão que me tratava bem e me deixava
ficar com 50% das gorjetas recebidas; uma dona de pensão que a troco de
alguns serviços de consertos de portas, janelas e encanamento velhos, quase não
me cobrava mensalidade. Assim a minha vida na capital foi muito boa e uma
maneira de ser grato a Deus por aquele tempo, é orar por aqueles que me
ajudaram e desejar que estejam bem e que sejam felizes.
E a
vida continuava... E um ano depois da vinda do facínora, em dia de festa no
arraial, eu me distraia ao ver uma tropa, que vinha dos lados de Lamim,
desfilar com carga pesada em frente à minha venda. A mula da frente, com guizo de metal, coberta com fitas e espelhos, lembravam os sinos da igreja Sagrado Coração de Jesus, as alegorias , as festas sacras e a alegria do povo a caminhar atrás bandas de congados, um ponto forte nas festas do arraial.
Muitos que passavam por ali me recriminavam por
não me verem pronto para a festa, esperavam que eu estivesse com roupas
de ir a missa e chapéu de feltro. Mas eu me agarrei à intenção de ficar ali e
conseguir ganhar algum dinheiro com pequenas vendas aos que iam e voltariam.
Para quem não tem muita ganância, o pouco é muito. Alguns réis viriam,
certamente, para minha gavetinha de balcão. E de fato ganhei algum dinheiro
naquele dia.
Mas exatamente naquele
dia, quis a providência que acontecesse o que era comum em vendas de
beira de estrada, um cachaceiro me prendia ali. Quando eu pensava que ele
finalmente iria embora, ele se lembrava que tinha que dar mais uma para o
santo. O santo era insaciável e a noite já cobria as montanhas com seu manto
escuro e, cá mais perto das baixadas, uma neblina densa não deixava por menos.
Eu tonto de tanto sono, o freguês de cuca cheia
e o santo já soluçava de tanto goles jogados ao chão. De repente meus ouvidos
aguçados perceberam um leve ruído vindo da estrada, fui espiar mais de perto e
levei um susto danado: era a mesma tropa que passara mais cedo, ainda com as
cangalhas carregadas de mercadorias. A mula de guia não trazia mais o guizo,
alguém queria silêncio. Tal o cuidado para não chamar a atenção que as patas dos
animais estavam cobertas com almofadas amarradas acima dos cascos. Quatro
homens conduziam a tropa, também silenciosos. Todavia imprudentes, pois não me
viram ao lado. Dado a que já estivessem a pouco mais de quatro quilômetros do
arraial, relaxaram-se ao pensar que não seriam descobertos, pois eram
protegidos pela cerração e já haviam vencido o trecho mais movimentado da
estrada. Eu logo atinei com tudo e agi rapidamente: joguei o bêbado para fora
da venda, fechei a venda, peguei meu cavalo que já estava arreado desde o
anoitecer, na expectativa de o cachaceiro ir logo. Quando sai em direção ao
arraial, olhei para trás para ver para onde a tropa seguia, a neblina mal
deixava ver as sombras que se movimentavam à esquerda rumo a Santana.
Tal a minha pressa que meu cavalo parecia voar no
meio daquela neblina fechada enquanto eu imaginava de como tudo aquilo poderia
ter acontecido: certamente que os comerciantes e os tropeiros também participavam das festas e
tinham deixado para descarregar tudo na manhã seguinte. Não era uma boa prática
deixar animais cansados com as cargas no lombo. O que conjecturei de fato
acontecera. Alguns disseram que iriam baixar as mercadorias naquela mesma noite,
depois da procissão, outros só na manhã seguinte.
Quando eu cheguei espalhafato, gritando e contando o que
tinha acontecido, foi uma correria que jamais acontecera no arraial. Com poucos
minutos uns 30 homens armados saiam da cidade. Eu voltei com eles e passei na
venda para pegar minha cartucheira, que na pressa deixará em cima do balcão.
A correria era tanta que alguns cavalos chegaram a
atropelar os da frente, pois a neblina aumentava a cada minuto. Não demorou muito, encontramos os bandidos na
Casinha, num lugar de matas que costeiam a estrada. Houve um tiroteio de
início, mas logo o compadre Xandi (7) gritou para que se entregassem, pois éramos
muitos e os alertou que eles morreriam na certa se continuassem resistindo. Ninguém ficou ferido. Alguns ameaçaram
enforcar os ladrões, ali mesmo, na beira da estrada. Seria fácil, havia muitas
árvores e cipós suficientes.. Mas o compadre Xandi havia dado a garantia de que
eles não seriam mortos casos se entregassem. E assim foi.
Quando chegamos ao arraial, parecia até que
voltávamos de uma guerra: as mulheres abraçaram e beijaram os maridos, os
amigos davam viva aos heróis da cidade. E nem precisa dizer onde os ladrões foram parar”.
E assim termina a fala do Tio Frank, que nos trouxe esse caso que na época tornou-se o assunto mais badalado no arraial , tão lembrado que eu mesmo já ouvira, ambos, contudo em versões menos esmiuçadas.
2) Carmita de Souza Veloso
3)Francisco Henriques de Miranda Souza
4)Antônio /Calazans de Miranda
5) Luiz Henriques Alfenas
6) Francisco Henriques de \Miranda, filho de Jacob Henriques de Miranda
7) Alexandre Cirilo de Souza

Duas capacidades: Liberato e Dudu, meus bons amigos.
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