sábado, 20 de agosto de 2022

Franklin Fidelis: uma viagem ao início do século XX

 

Por Lulu Alfenas

Franklin Francisco Vieira de Souza
(Franklin Fidelis)

Conto baseado em caso real inicialmente escrito para constar do livro do amigo Liberato de Souza Lana, que me autorizou também a publicá-lo neste Blog.





Hoje amanheci pensativo e puxo pela memória, quero me lembrar dos detalhes. Tudo está pendurado  no meu calejado neurônio que gosta de casos. Parece que foi ontem: acabamos de chegar à casa de Carmitinha (1), onde o Tio Franklin Fidelis (2) está morando agora. Nós viemos para conversar sobre os tempos antigos. Somos três xeretas: Tio Chico (3), Antônio Calazans (4) e eu (5). Estamos ansiosos para bisbilhotar o passado, mas antes temos que pagar o preço da curiosidade e jogar truco com o anfitrião, até que gostamos das cartas, mas hoje era para ver o passado através da memória do Sô Frank. Carmitinha, para não quebrar a generosa tradição da família, empanturra-nos com biscoitos de polvilho guardados em latas grandes com boas tampas. Um dia ensolarada de 1980. Meu neurônio não sabe em que dia nem em que mês estamos. A folhinha está lá, mas o tempo que branqueou os cabelos embaça as letras. Carmitinha não tem mais aquela criação de coelhos que dava vida ao terreiro da cozinha. Mas agora estamos ali jogando baralho, esquecidos do tempo, dos coelhos e da velha UDN. Truco! Vale seis! Vai mais um biscoito esmagado entre os dentes, barulho de crocância a quebrar o silêncio passageiro entre os gritos: vale seis, ladrão de milho!

Agora estamos na sala de visitas, insistimos um pouco, e o tio vai falar.



 “Quando eu voltei de BH, resolvi instalar uma vendinha na encruzilhada da Vargem. Isso foi em 1910, mais ou menos. Voltei da capital cheio de sonhos e alguma experiência de comércio porque lá trabalhei de caixa em bares e restaurantes. Na venda da Vargem o movimento era acanhado, mas naquele tempo tudo era assim, pequeno e calmo. Eu me levantava bem cedo, arreava o cavalo  e nem precisava galopar, em poucos minutos eu já estava abrindo a venda. E ficava ali debruçado no balcão vendo o tempo passar e, raramente, algum cliente. Algumas vezes, minha irmã Deolinda vinha para cumprimentar com uma boa tarde e trazia-me alguma comida: broa, milho verde e bolinho de fubá. Aquela presença amiga quebrava um pouco a monotonia da estrada, mas o mais frequente era o compadre Chico Henriques, sogro da Deolinda que se casara com  o João da Vargem, que iria morrer novo.  O Chico Henriques, este vinha quase todo dia só para jogar conversa fora e contar algumas novidades. Eu também, quando o dia ficava feio, e eu triste, dava minhas voltinhas. Ia até a ponte de madeira sobre o ribeirão da Vargem, onde uma água corre limpa e calma, e que se junta, alguns metros abaixo, com as águas que descem do Pega Bem e do Pires e seguem,  mais encorpadas, em direção ao arraial, uma benção a irrigar hortas e tocar moinhos de fubá por onde escorre. Nessas ocasiões, eu deixava a venda aos cuidados do Lionel, um menino que estava sempre por ali e que costumava me ajudar nas tarefas de varrer o chão e lavar o balcão, o que não faltavam ali poeira e folhas secas.


E num dia desses, em que as nuvens tapam toda a abóboda celeste, e o frio resseca a pele e  racha os lábios, apareceu ali um homem estranho, enrolado em capa grossa e com capuz de lona, barba mal feita e uma cicatriz profunda do lado esquerda da cara. Medonho, no mínimo! Parece que ele desconhecia o sentimento de repulsa que um estranho como ele pode causar, mas mesmo que fosse simpático e de boa presença não podia chegar fazendo tantas perguntas:

-- O senhor conhece, por aqui, um tal de Francisco Henriques de Miranda?

Eu não respondi, ao contrário, o inquiri no bate-pronto:


— Qual é a graça do senhor?


O estranho ficou um pouco perdido, parecia que não sabia o que significava graça. Então refiz a pergunta.

— Como é o seu nome?

Ele me olhou de um jeito que mais parecia de ameaça do que de surpresa pela minha ousadia em questioná-lo, mas acabou respondendo mais do que eu perguntara:

— Zé Gregório, venho dos lados de Capela Nova das Dores.

Nessa altura já começava a escurecer, eu desconfiado, fui lá atrás da venda, pedi ao Lionel para sair pelas fundos e que se escondesse na mata até chegar á casa do compadre Chico, não podia ser visto, e que avisasse ao Chico Henriques (6) que o homem que vinha para matá-lo já tinha chegado. Que ele fugisse rápido! Quando voltei para a venda, trazia um engradado de bebidas fingindo obrigações para que aquele matador de aluguel não desconfiasse de minhas intenções e manobras.

— Seu Zé, o senhor quer tomar alguma coisa?

Perguntei.

— Não, só quero mesmo fazer uma entrega para o senhor Francisco, onde mesmo ele mora?

Eu sabia que a entrega que ela faria era pesada e arderia em quem a recebesse, mas não estava com medo dele, apenas me precavi, pois senti, pelo cheiro que os maus exalam, que aquele era um assassino de aluguel da pior espécie. E havia também o fato de que o amigo já ter me prevenido quanto ao risco da presença de estranhos. Poucos dias antes, o Chico me dissera:

— Amigo Franklin, um homem de Barbacena, que perdeu uma demanda comigo na justiça, me jurou de morte, e dizem que ele é covarde e costuma resolver suas pendências por meio de capangas. Então, amigo, se aparecer algum suspeito por aqui mande me avisar.

E assim fiz, mas o homem estava ali persistindo, queria mais informações que facilitassem sua ida à casa do Chico. Ele era insistente e eu sabia engabelá-lo com desculpas esfarrapadas dizendo que o Francisco de que falava não era muito conhecido, talvez tivesse até se mudado da região. O tempo passava devagar e já escurecia,  mas não me ative a apenas esperar, queria também assustá-lo um pouco: acendi um lampião de querosene e fiz um movimento espalhafatoso ao abrir uma cortina que cobria uma prateleira, e de propósito deixei que ele visse minhas facas de picar mortadela, minha garrucha de dois canos e um revolver novo em folha (as armas eram plástico, só para assustar vagabundos). Mas parece que isso não o abalou. O tempo passava e de repente já era hora de eu fechar a venda quando o inesperado aconteceu: O homem estava entornando um gole de pinga e já se preparava para jogar o do santo no pé do balcão  quando um vulto saiu, de repente, da penumbra e agarrou a gola de sua capa com a mão direita e com a outra encostou  uma navalha em sua garganta e gritou para o Lionel:

— Lionel! Lionel tire as armas dele e vá até ao cavalo dele e olhe se no arreio tem alguma arma. Vasculhe os sacos e embornais. Busque tudo que fura e que cospe fogo! Ajunte tudo e leve para o meio da ponte e jogue tudo no córrego. Capriche para que tudo caia na correnteza e seja arrastado!

Depois de as armas recolhidas e entregues ao ribeirão que nunca regurgita, o facínora parecia até que ficara menor. Seus olhos demonstravam medo do que poderia vir em seguida. Quem tinha a aparência medonha agora era o Chico Henriques, ainda com a navalha na mão, olhos vermelhos de sangue, controlou o facínora e, em movimento de grande destreza, pegou o chicote que trazia preso ao cinto e, incontinente, sem dizer nada, deu-lhe uma sova de deixar saudades.


Depois de corrigir aquele covarde, Chico Henriques disse-lhe calmante:


— Hoje você viveu de novo porque eu estou num dia bom. Mas se você aparecer de novo por estas bandas, a história será outra. E avisa também para seu amigo lá de Barbacena que se cuide, não vou perdoá-lo se houver uma  nova empreitada. Cambaleante, o agora não tão facínora conseguiu montar seu pangaré e sair dali em trote lento porque aquele corpo não suportava mais solavancos.


Depois de ser palco dessa coça histórica, o lugar voltou à calmaria. Os dias corriam lentos como as águas do ribeirão da Vargem em seu leito de pouca descida. Nada acontecia que pudesse ser mote de uma lembrança digna de nota.  Minha vidinha era tão pacata ali e sobrava-me tempo para pensar nas coisas boas que me aconteceram em Belo Horizonte quando lá havia morado: um patrão que me tratava bem e me deixava ficar com 50%  das gorjetas recebidas; uma dona de pensão que a troco de alguns serviços de consertos de portas, janelas e encanamento velhos, quase não me cobrava mensalidade. Assim a minha vida na capital foi muito boa e uma maneira de ser grato a Deus por aquele tempo, é orar por aqueles que me ajudaram e desejar que estejam bem e que sejam felizes.

a vida continuava... E um ano depois da vinda do facínora, em dia de festa no arraial, eu me distraia ao ver uma tropa, que vinha dos lados de Lamim, desfilar com carga pesada em frente à minha venda.  A mula da frente, com guizo de metal, coberta com fitas e espelhos, lembravam  
os sinos da igreja Sagrado Coração de Jesus,  as alegorias , as festas sacras e a alegria do povo a caminhar atrás bandas de congados,  um ponto forte nas festas do arraial.

Muitos que passavam por ali me recriminavam por não me  verem pronto para a festa, esperavam que eu estivesse com roupas de ir a missa e chapéu de feltro. Mas eu me agarrei à intenção de ficar ali e conseguir ganhar algum dinheiro com pequenas vendas aos que iam e voltariam. Para quem não tem muita ganância, o pouco é muito.  Alguns réis viriam, certamente, para minha gavetinha de balcão. E de fato ganhei algum dinheiro naquele dia.

Mas exatamente naquele dia, quis a providência que acontecesse  o que era comum em vendas de beira de estrada, um cachaceiro me prendia ali. Quando eu pensava que ele finalmente iria embora, ele se lembrava que tinha que dar mais uma para o santo. O santo era insaciável e a noite já cobria as montanhas com seu manto escuro e, cá mais perto das baixadas,  uma neblina densa não deixava por menos.


Eu tonto de tanto sono, o freguês de cuca cheia e o santo já soluçava de tanto goles jogados ao chão. De repente meus ouvidos aguçados perceberam um leve ruído vindo da estrada, fui espiar mais de perto e levei um susto danado: era a mesma tropa que passara mais cedo, ainda com as cangalhas carregadas de mercadorias. A mula de guia não trazia mais o guizo, alguém queria silêncio. Tal o cuidado para não chamar a atenção que as patas dos animais estavam cobertas com  almofadas amarradas acima dos cascos. Quatro homens conduziam a tropa, também silenciosos. Todavia imprudentes, pois não me viram ao lado. Dado a que já estivessem a pouco mais de quatro quilômetros do arraial, relaxaram-se ao pensar que não seriam descobertos, pois eram protegidos pela cerração e já haviam vencido o trecho mais movimentado da estrada. Eu logo atinei com tudo e agi rapidamente: joguei o bêbado para fora da venda, fechei a venda, peguei meu cavalo que já estava arreado desde o anoitecer, na expectativa de o cachaceiro ir logo. Quando sai em direção ao arraial, olhei para trás para ver para onde a tropa seguia, a neblina mal deixava ver as sombras que se movimentavam à esquerda rumo a Santana.


Tal a minha pressa que meu cavalo parecia voar no meio daquela neblina fechada enquanto eu imaginava de como tudo aquilo poderia ter acontecido: certamente que os comerciantes e os tropeiros também participavam das festas e tinham deixado para descarregar tudo na manhã seguinte. Não era uma boa prática deixar animais cansados com as cargas no lombo. O que conjecturei de fato acontecera. Alguns disseram que iriam baixar as mercadorias naquela mesma noite, depois da procissão, outros só na manhã seguinte.


Quando eu cheguei  espalhafato, gritando e contando o que tinha acontecido, foi uma correria que jamais acontecera no arraial. Com poucos minutos uns 30 homens armados saiam da cidade. Eu voltei com eles e passei na venda para pegar minha cartucheira, que na pressa deixará em cima do balcão.



A correria era tanta que alguns cavalos chegaram a atropelar os da frente, pois a neblina aumentava a cada minuto. Não demorou muito, encontramos os bandidos na Casinha, num lugar de matas que costeiam a estrada. Houve um tiroteio de início, mas logo o compadre Xandi (7) gritou para que se entregassem, pois éramos muitos e os alertou que eles morreriam na certa se continuassem resistindo. Ninguém ficou ferido. Alguns ameaçaram enforcar os ladrões, ali mesmo, na beira da estrada. Seria fácil, havia muitas árvores e cipós suficientes.. Mas o compadre Xandi havia dado a garantia de que eles não seriam mortos casos se entregassem. E assim foi.


Quando chegamos ao arraial, parecia até que voltávamos de uma guerra: as mulheres abraçaram e beijaram os maridos, os amigos davam viva aos heróis da cidade. E nem precisa dizer onde os ladrões foram parar”. 



E assim termina a fala do Tio Frank, que nos trouxe esse caso que na época tornou-se o assunto mais badalado no arraial , tão lembrado  que eu mesmo já  ouvira, ambos,  contudo em versões menos esmiuçadas. 

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1) Franklin Francisco Vieira de /Souza

2) Carmita de Souza Veloso

3)Francisco Henriques de Miranda Souza

4)Antônio /Calazans de Miranda

5) Luiz Henriques Alfenas

6) Francisco Henriques de \Miranda, filho de Jacob Henriques de Miranda

7) Alexandre Cirilo de Souza



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