incertezas quanto a estarem vivos.

Por Lulu
Esta é a história dos gêmeos idênticos, Gentil e Neném, que trabalhavam num engenho puxado a cavalo. Ali eles operavam os equipamentos de extração da garapa de cana-de-açúcar e cuidavam do cavalo durante a jornada diária. Pequenos, mas exímios em tarefas que exigissem força física, só tinham dificuldades para alcançar objetos altos.
Dois
moleques que faziam uma dupla respeitada pelos adultos, pois viviam em perfeita
harmonia, sem discussões e mamparras, o que favorecia o trabalho. Além de serem
iguais na aparência, tinham os mesmos traços psicológicos: dóceis; bom caráter, embora em formação; alegres desde o berço de
taquara, onde a mãe os embalara ao ritmo da mão de pilão — recurso de mãe
pobre, uma mão para o carinho, outra para o pão.
Precoces
em força e agilidade, cedo foram colocados sob o peso das ordens de um patrão
que expressava seu motivo econômico, repetido diariamente, no início de cada
jornada de trabalho, com palavras espalhafatosas que eles não entendiam:
"A limpeza e a organização no ambiente da obrigação é o melhor meio para se
produzir cada vez mais com cada vez menos". Talvez até sem o perceber, o
patrão dava sempre um acento mais forte ao falar “cada vez mais com
cada vez menos”.
Eram de uma família humilde que morava numa casinha de sapé, com piso de chão batido e paredes de pau a pique rebocadas com barro cru. Nas
noites frias, adultos e crianças embolavam-se ao redor de um fogo no centro da cozinha. Enquanto as chamas crepitavam, os marmanjos contavam casos de assombração que as crianças
ouviam aterrorizadas, mas logo esqueciam essas histórias e, entre risos e
deboches, brincavam com aquele lema do engenho e cantarolavam-no como se fosse um refrão de carnaval:
"Cada vez mais com cada vez menos... Cada vez mais com cada vez menos...
Cada vez mais com cada vez menos...”. O eco do engenho invadia a vida privada com novos significados, mas ninguém via mal nisso.
Os cavalos do engenho eram domados para charrete, portanto, aceitavam
viseiras. O proprietário, JB, usava a viseira como trampolim para criar uma
linguagem de comunicação com os garotos, dizia-lhes: "animais e crianças,
quando em serviço, não podem ficar olhando para os lados; meninos precisam se
concentrar e cavalos não podem se assustar". E, para fechar com chave de
ouro, completava solene:
"Mantenham um olho no cavalo e outro nas moendas", instrução que as
crianças entendiam num sentido muito literal e, por isso, não tinham como
praticá-la, não sendo zarolhos não podiam olhar para lados opostos ao mesmo
tempo.
Acostumados a essa lida e sem noção de outras possibilidades, nem os meninos, nem seus pais tinham motivos para reclamações, não conheciam livros nem notícias de um mundo melhor. Para os meninos, tudo que cabia em seus sonhos estava à mão: um bom engenho, um raro patrão que xingava pouco, um alazão forte e preparado para a moagem de canas encorpadas, e equipamentos bem lubrificados.
Mas
chegou o dia em que a natureza fez o bagaço liberar um cheiro, curiosamente agradável, de garapa em fermentação. Um mundo ideal despertara, havia um brilho especial no canavial. A cerração se dissipava. O sol esparramava sua luz sobre a beleza do lugar e fazia a vida mais alegre e, pelo
contraste, a morte mais triste pelo que com ela se poderia perder. Deus estava
presente no vento, nas últimas gotículas de neblina, na vegetação e na claridade alaranjada que tomava conta das grotas mais próximas; e o diabo espreitava pelo buraco da bichoca-da-cana-caiana.
Um pouco mais tarde, o lugar
esquentou e a vida latejava forte. O engenho entrou no seu normal: o cavalo no caminhar em círculo; a moenda a engolir as canas; o
bagaço caindo seco num balaio; a garapa escorrendo para a grande tacha de rapadura. O sol atingia o ponto mais alto do céu quando o
menino que alimentava a moenda distraiu-se do trabalho porque chupava, com fome
e gulodice, um pedaço de cana caiana que descascara com seu canivete de bolso . Lambuzava-se como
se fosse a última doçura que a vida lhe daria. Com a mão direita, segurava o
gomo que chupava e; com a esquerda, a cana que depositaria na moedora. Essa falha
foi o primeiro elo da corrente de acontecimentos que levaria ao acidente; mas não, à causa única. O menino da moenda não estava, naquele momento,
trabalhando corretamente, pois engenhos que se prezam gostam de duas canas de
cada vez porque não se desperdiça a capacidade do equipamento e nem se nega o objetivo
econômico "cada vez mais com cada vez menos".
Quando
o irmão observou aquilo, gritou:
—
Manoooo, não é hora de merenda, põe mais cana!
Sempre
literal e obediente, mal ouvira a reclamação, jogou longe o gomo que chupava, abraçou um
feixe de cana e o soltou de supetão na moenda. E, faceiro, gritou para o irmão:
—
Simbora! Cada vez mais! Cada vez mais!
E o
cavalo que roda o dia inteiro na trilha do próprio rabo e em cima do que
debaixo dele pode cair — coitado, será sempre o primeiro a cheirar as
próprias necessidades fisiológicas — agora sentiu o impacto da moenda
travando. Empacou. E aí veio o "acaso" a atrapalhar aquele dia maravilhoso
e o ambiente de trabalho em que nada se perdia nem o bagaço. Essa era uma fazenda,
como tantas, onde os ganhos eram sacralizados sem preocupação com os riscos. E isso trouxe à
luz uma tragédia e deu à escuridão uma criança, triste inversão.
—Manoooo dê uma olhada para ver se algum trem está prendendo a manjarra no telhado ou na viga?
Disse
o guia do cavalo ao que cuidava da moenda.
O da
moenda, confiante em sua destreza, subiu sobre a anca do cavalo, enfiou a
cabeça entre uma viga e a manjarra. A cabeça entrou, mas não podia ser virada
para a outra direção, tal era o estreitamento daquela vão e, como dizem por aí,
aonde entra a cabeça entra o resto, então, ele enfiou também o braço direito
para apalpar onde não podia ver. Esperava achar ali alguma saliência, algum
parafuso que pudesse ter se desatarraxado e prendido a manjarra na viga ou nas ripas do
telhado. Nessa tentativa de entrar aonde não cabia, chegou a uma posição de
impasse e de pouco equilíbrio ficando preso entre a viga, que sustenta o
telhado do engenho, e a manjarra, que liga as engrenagens à força do
cavalo. Bastou um impulso para mais uma apalpadela, e o "acaso" se revelou por inteiro: perdeu o apoio do pé esquerdo, que
estava sobre o traseiro do animal, que entrou debaixo do rabicho e na culatra. O cavalo assustou-se ao sentir a repentina invasão de sua região mais sensível,
e, num impulso vigoroso, venceu as forças que faziam o travamento. A manjarra
subiu um pouco e avançou rapidamente não dando tempo para o menino
tirar a cabeça daquele vão. Tudo que ligava a cabeça ao tronco rompeu-se
enquanto o cavalo desenfreado arremetia-se. Em segundos tudo estava
consumado.
Um derradeiro grito abafado; o barulho da arrancada do cavalo; o estalo da manjarra; toda essa algazarra fez surgir, como por um encanto, variega gente que não parecia estar tão perto. As marcas da tragédia não se faziam tanto pelo sangue, mas pelo cenário assustador que não merece descrição porque impróprio.
Um derradeiro grito abafado; o barulho da arrancada do cavalo; o estalo da manjarra; toda essa algazarra fez surgir, como por um encanto, variega gente que não parecia estar tão perto. As marcas da tragédia não se faziam tanto pelo sangue, mas pelo cenário assustador que não merece descrição porque impróprio.
O
patrão chegou assustado e, sem saber qual dos iguais havia morrido, perguntou para o
menino que segurava o cavalo.
- Gentil, pelo amor de Deus! Qual de vocês morreu?
Estaria o patrão rebatizando aquele menino? Para uma pergunta desastrosa, a resposta tinha que ser imediata, irrefletida, ilógica e apatetada:
— Meu patrão, pela Virgem Nossa Senhora! Eu acho que não foi o Neném quem morreu.
E assim, aquele que o povo passou a tratar por Gentil, talvez fosse o irmão, pois ele mesmo nunca soube esclarecer. E a partir daquele dia, quando lhe perguntavam:
— Gentil, foi você ou seu irmão quem morreu?
A resposta era invariavelmente educada:
— Meu senhor, até hoje não sei bem, tem hora que acho que foi o Gentil.
Assim, negava-se Descartes, "Penso, logo existo", mas confirmava-se Shakespeare, "Ser ou não ser, eis a questão".
É quem quiser aprenda a lição: o diabo mora no detalhe, como diz o provérbio alemão, mas costuma esconder na bichoca-da-cana-caiana e fingir de "acaso,", como aconteceu no engenho JB.
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