Lulu
À minha mulher que ouviu e contou-me esta história.
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Deolinda Maria da Conceição (3/11/1886 a 20/3/1981) |
Apesar de lembranças tão remotas, não tenho muita certeza se, naquele tempo, eu ajudava a Tia com os serviços caseiros, só sei que eu rezava muito pela família, e a Satita trabalhava em afazeres mais leves: cuidava dos animais domésticos de pequeno porte, coisa de jogar milho e restos de comida para galinhas, perus e patos.
Meu pai tinha uma compreensão do mundo alicerçada em religião, em valores familiares e na tradição, por isso não deixou que eu continuasse a morar na casa da falecida Tia nem mais um dia. "Morreu hoje, sai amanhã", disse. Do velório da Tia tive que voltar para a velha casa dos Pinheiros. Ele tinha suas razões e mas explicou: "Deolinda, eu sei que você é uma boa menina e que o João é respeitador, mas não fica bem com sua idade, já na casa dos doze, morar com ele sem a presença de um parente de sangue. O povo é falador, é bom se precaver". O povo era falador; eu, uma boba que só entendia de bonecas e orações: sabia a ladainha de cor e salteado, contemplava, ajolhelhada em frente ao oratório, os mistérios gozosos, durante o terço que rezávamos, diariamente, lá nos Pinheiros; e, semanalmente, no Pega Bem. Meu pai sabia justificar suas ordens; mas não, as escolhas que fazia. Não lhe faltavam palavras; mas, coragem. Era um homem consumido pelo respeito humano, nunca falaria de certas coisas com uma menina. "Menina inocente", pensava e com razão, "não vamos maculá-la com conversas de adultos", completava sem razão. É claro que, em minha ingenuidade, eu não havia nem pensado em sexo. Gostava mesmo é de conversar com minhas duas bonecas, as quais tinham nomes de pessoas, Jandira e Chica. Nem argumentei, defender-me de quê? Para mim, todos daquela casa não passavam de gente da família, e todos os meus problemas se resumiam em trocar e embalar as bonecas. Não entendi e nem me preocupei com o que meu pai havia dito, mas o Joãozinho, não sei por que cargas d'água, tomou conhecimento dessas conversas e, talvez, de outras cochichadas na cozinha da Fazenda dos Pinheiro e grassadas por estes córregos, sei lá por que línguas mal dobradas e orelhas envergadas. Ele sabia, pelo exemplo de uma prima que ficara falada, que não se brinca com a fofocas dos invejosos nem dos maledicentes. Aquela menina, a Maria Bernarda, viu-se numa enrascada quando o falatório sobre ela ganhou corpo e correu de boca em boca, alastrando-se como fogo em mato sem aceiro. Num piscar de olhos, não havia mais nenhuma pontinha de Córrego e casa de Rua do Arraial que não soubessem de seu desdito. Ela se viu mal-afamada só porque morava com um primo e, segundo o povo, com ele trocava carícias.
Saí da casa; mas não, da vida deles. Tomava fé de tudo que lá acontecia. Fiquei sabendo que houve um senão naquela casa logo depois da morte da Tia. O Joaquim começou a beber e caiu em depressão, dizia-se que pela morte da mãe. Passou a usar a bebida além do costume social e viciou-se nela. A pinga, nessas situações, não é paliativo, é veneno. Depois dessa, eu passei a alertar os jovens decaídos: "Cuidado! Pinga, se fosse remédio para a tristeza, seria vendida em farmácia e em picadeiros de circo". Joaquim era cordato e quando entrou na adolescência, mesmo com o aumento da sua dependência ao vício do álcool, carregava uma penca de virtudes que sempre agradaram ao pai: obediente, não gostava de discussões e nem de palavrão. Mas quebrava todas as promessas e juras quando a cachaça tomava as rédeas de sua vida, o que acontecia cada vez com mais frequência: a vontade fraca deixava descer o primeiro gole que abafava as boas intenções com uma densa névoa de dúvidas, e a alma questionadora fazia brotar um dilema em sua consciência debilitada, então, uma voz indagava provocadora em gritos surdos que faziam tremer o seu interior: por que não o segundo? Frouxo! Joga mais um goela abaixo!
O Joãozinho, até então, via-me como de fato eu era, uma criança. Mas o fato de meu pai forçar nosso afastamento repentino, ao levar-me de volta para a Fazenda do Pinheiro, deve ter despertado nele algumas ideias e possibilidades antes nem sonhadas, como diz o ditado "só percebemos o valor da água depois que a fonte seca". O certo é que o jovem viúvo, depois que eu levei chá de sumiço, passou a me ver com um olhar enviesado.
Depois disso, o mundo continuou girando algum tempo sem acontecimentos de monta, mas, não sendo a ansiedade virtude, a gente não peca por esperar: fatos me aguardavam. O primeiro ato que iria mudar minha vida aconteceu num domingo dia 14 de Outubro de 1900, o dia estava ensolarada com promessa de chuva para a noite. Estávamos num ano especial, falava-se da proximidade da virada do século, e alguns patetas, como sempre acontece nesses anos de muitos zeros à direita, apregoavam o fim do mundo. Nunca mais me esquecerei daquele dia. Voltávamos do arraial, havíamos assistido a missa das dez e a dança dos Congados em que eles sungaram a bandeira do divino e a penduraram num mastro alto fincado a poucos metros da entrada da Igreja velha. Mesmo morando, naqueles dias, na Fazenda dos Pinheiros, eu iria passar uma tarde com a família do Joãozinho, isso porque, depois de muita insistência de minha parte, meu pai me autorizara a ir com eles, prometendo que iria buscar-me ao anoitecer. Já estávamos perto da encruzilhada da Vargem, a qual sempre participou de minha vida de maneira positiva e que tinha e tem até hoje três derivações: uma que segue reta para Lamim, que é uma estrada larga e bem cuidada; outra mais sinuosa que leva à Santana; e a última, a mais estreita, a pior delas e que era praticamente um trilho naquela época, é a que teríamos que seguir até a casa do Pega Bem. Ao longo dessa estradinha, que terminava na cabeceira do Pega Bem, existiam, naquela época, diversas casas a pequenos intervalos à direita e à esquerda. Um lugar ocupado por parentes e onde morava o pai de Joãozinho, Francisco Henriques de Miranda. Este, à esquerda da estradinha, enquanto Joãozinho e os filhos moravam num lugar a que demos o nome de brejo da luz por um motivo que minha timidez e religiosidade não me deixam revelar. Eu e a Satita cavaqueávamos antes de entrar nesse caminho mais estreito. Havíamos acabado de atravessar a ponte sobre o ribeirão que corta a Vargem num talho diagonal que começa no Clemente e acaba no Macuco. Carregávamos nossos sapatos nos embornais a tiracolo, pois era costume tirá-los na estrada de terra para economizar o solado e dar conforto aos pés. Vínhamos numa conversa alegre e descontraída, ela a afirmar que meu irmão, o Joaquim Fidelis, cujo nome de batismo é Joaquim Caetano de Souza, estava arrastando as asas para o lado dela. Satita me sondava sobre as intenções dele. Eu a dizer que pouco ou nada sabia, e que meu irmão não falava comigo sobre namoros e muito menos em casamento, e que suas conversas comigo eram de um adulto para uma criança, como me via, e que me dissera um dia, quando me atrevi a altercar com ele, "pirralha, você só sabe de bonecas!" Eu dizia a ela que só podia afirmar que ele era muito bom e trabalhador, e que já havia juntado algum dinheiro, e que tinha condições de estabelecer compromissos mais sérios; e que ele era isso, aquilo e aquilo outro. Ponderei, se assim posso dizer, sobre o fato de ele ser ainda muito novo para se casar. Acho que não disse com essas palavras, eu era muito pequena para me expressar assim, mas falei no sentido de que todo angu tem caroço. Ela entendeu, mas não queria saber de caroços. Pedia conselhos sem os querer. Aceitava só aquilo que os flertes já haviam escrito em seu coração: casamento. Ela tinha mais juízo que eu, já não brincava de bonecas, e não sei por que tinha que me ouvir em questão que eu pouco ou nada entendia. Íamos falando de assunto sério que tratávamos de maneira leviana, não por maldade, mas pela falta de vivência. Embora uma ou duas frases pudessem prestar nessa conversa, parecíamos duas mendigas no escambo do que tinham: patavinas. Joãozinho vinha a cavalo ladeado pelo filho que caminhava a pé e descalço. O ar estava parado, nenhum vento para favorecer a propagação do som. Não podíamos ouvi-los e nem eles a nós. Conversavam animadamente, como dois amigos esquecidos do respeito humano e do álcool que os vinham separando nos últimos tempos.
Na vida há coisas que não acontecem aos saltos, mas algumas há que são extremamente sensíveis a pequenas intervenções do destino: uma pedra que rola de um barranco, um raio que resvala pelas cercas de arame farpado; uma árvore que tomba corroída pelo cupim em suas raízes ou pelo encharcado das terras que a sustém ou até pela idade e erosão; coisas assim, casuais, que podem roubar vidas de vegetais, animais e homens. Mas ali, naquele momento sagrado de minha existência, nada quis interromper o curso natural que se avizinhava e, assim, aquele instante, que para muitos ou quase toda a humanidade nada significaria, foi tudo para mim e toda a minha descendência. Ali ocorreram fatos fortuitos revestidos de aparência simples para quem não sabe dos turbilhões que as pessoas trazem escondidos no peito, não para nós: Joãozinho, que não gostava de usar esporas, cutucou o cavalo com os calcanhares para que ele andasse mais depressa, o animal reagiu e, em poucos minutos, Joaquim ficava para trás enquanto o cavaleiro se achegava a nós duas, as tagarelas da frente. Ele, então, com o carinho que sempre dedicou à filha, pediu-lhe, com educação, que acelerasse o passo, queria ter um particular comigo. Mal ela avançara alguns passos, disse-me: "Deolinda, vou direto ao assunto, pois é importante e não precisa de muita conversa para ser dito. Sei que seu pai a procurou e mostrou preocupação com a nossa situação, estou plenamente de acordo com ele e, no lugar dele, faria o mesmo ou seria mais exigente. Seu pai mostrou o que seria um erro, mas não falou da forma de evitá-lo, eu falo, é um caminho que só pode ser percorrido por duas pessoas, nós: devemos nos casar, isso se você quiser, pois eu, nem preciso dizer, pois se já estou pedindo sua mão. Mesmo sabendo que você é bem mais nova do que eu, acho que o casamento agora não nos iria prejudicar". Eu levei um susto danado com aquela conversa, assim de supetão, esperava tudo, menos aquilo; mesmo sem saber bem o que era casamento, no sobressalto, disse: "Claro" para logo completar com mais entusiasmo "Claro Joãozinho! Claro! Com muito gosto". Mas o chão pareceu fugir, eu dava um passo certo no meu destino, mas na estrada de chão batido, pela primeira vez na vida, entrei na encruzilhada errada, quase ia para Santana, na direção de minha casa paterna. Ainda bem que meu futuro marido, que não tinha caraminholas nem dentro nem fora da cabeça, não tenha achado que aquilo poderia significar alguma vontade secreta de eu não querer sair da casa de Papai Sô Tonho ou de fugir de sua proposta. Ele, que não teve tempo para minhocar, ao notar que eu estava meio atordoada, disse com carinho: "Muito bem minha querida, pode ir preparando suas coisas, vamos nos casar tão logo a igreja cumpra a rotina de proclames; amanhã mesmo vou ao Arraial e tomo as primeiras providências junto ao Padre Painhas.
Não sei o que o Joãozinho disse ao padre Painhas na solicitação de urgência nos proclames, mas fiquei sabendo, depois, que enquanto esses corriam, eram três, um em cada semana, alguns fatos inesperados que ainda não eram de nosso conhecimento naqueles dias estavam acontecendo, fatos que mudariam nossas vidas, os quais passo a narrar em detalhes a partir de agora.
Não sei o que o Joãozinho disse ao padre Painhas na solicitação de urgência nos proclames, mas fiquei sabendo, depois, que enquanto esses corriam, eram três, um em cada semana, alguns fatos inesperados que ainda não eram de nosso conhecimento naqueles dias estavam acontecendo, fatos que mudariam nossas vidas, os quais passo a narrar em detalhes a partir de agora.
Seu Tal já passava dos oitenta quando começou a se preocupar com o futuro do filho. Perguntava-se: "Como, na minha falta, poderia meu filho tocar a vida sozinho se ele não tem aptidões nem ações?". Matutara por muitos meses antes de tomar uma decisão, ao cabo, levou o assunto ao filho. Explicou que sua vontade era doar, de porteira fechada, tudo que tinha para um dos filhos de Antônio Vieira de Souza, meu pai. Na escolha do beneficiário dessa enorme doação, preferia Joaquim Fidelis a qualquer outro dos irmãos, pois sabia que este já estava a cortejar, com intenção de casamento, a filha de seu amigo e compadre Joãozinho. Major ouviu calado e, como sempre, não opinou.
Apesar de possuir muitos bens, Seu Tal não ostentava riqueza e, aos olhos de muitos, se passava por pobre devido a sua aparência e modo de vida simples. Nada de supérfluos, ao contrário, tudo no limite para uma sobrevivência digna com o mínimo de gastos. Um homem apoucado em todos os aspectos, exceto no que se referia a terras, essas as tinha em quantidade e qualidade superiores a qualquer outro cidadão do arraial da Oliveira, quiça do município de Piranga. Essas propriedades, coisa de trezentos alqueires, estendiam-se pela campina da Vargem, a gema, desciam para os lados do Macuco e subiam para o córrego do Pires. Terras boas para plantio e pastagens e com pequenas reservas de Mata Atlântica nas encostas e cumes dos morros. A letargia do proprietário havia contaminado suas posses transformando-as em riqueza esterilizada, muita poeira e capoeira para nenhum conforto do dono ou de quem quer que seja. O pão-durismo é uma atitude que não incomoda ao que detém a posse de coisas, mas que mexe com a emoção dos vizinhos e faz brotar neles os piores sentimentos contra quem ajunta por ajuntar. O ser humano é esquisito e parece sentir prazer em ver a infelicidade distribuída a todos em partes iguais. Prefere o mesquinho que sofre ao que vive feliz e inconsciente da possibilidade de ter outra vida que não aquela que, se não escolheu, aceita com resignação. Talvez por isso os invejosos se esforçam para que os avaros saibam-se anômalos e se consumam por serem sovinas. O pão-durismo é, nessas bocas negras da vizinhança, propagado como se fosse uma doença contagiosa e terrível, bocas que, sem o suporte de cérebros um pouco acima delas, inventam coisas e fazem chacotas. O velho ancião sabia que pelas suas costas os habitantes do lugar e os falsos amigos diziam: "quem gosta de terra é minhoca e Seu Tal" ou "Aquele é tão pão-duro que tem até prisão de ventre, não solta um pum sequer". Algumas verdades apareciam no meio de tanta maledicência, uns diziam "só pode ser burrice ter tanta riqueza e viver como se fosse um mendigo". Seu Tal tinha personalidade bem formada e ouvia com interesse os conselhos para mudar de vida: alimentar-se melhor; mobiliar a casa; tirar as goteiras; e contratar uma empregada para tomar conta dele e do filho. Era educado, não teimava com ninguém, para todas essas recomendações tinha algumas respostas prontas: "sim senhor", "O senhor está certo", "muito obrigado pelo conselho", mas nunca seguia tais cabeças, errava ou acertava sozinho. Nunca tomou satisfação com ninguém e nem fez cara feia para os que o desaprovavam. Com uns poucos amigos mais íntimos, comentava: "Mudar de vida pra quê? Estou bem como estou. Quem me ajudou a ganhar que venha ensinar-me como gastar". Até achou graça quando um viajante, que viera ao seu rancho para pedir pousada, vendo-o maltrapilho pediu-lhe que chamasse o patrão, e ele, humilde, respondeu: "Aqui não existe patrão moço, somos todos filhos de Deus e por iguais nos tomamos". O certo é que essas conversas de invejosos, maldades de quem quer apequenar a virtude da austeridade no viver e aumentar os defeitos dos outros, com Seu Tal fizeram efeito contrário: aumentaram sua riqueza e fortaleceram seu espírito. E agora, tudo que havia amealhado, ano após ano, ia cair nas mãos de um felizardo, tudo dado de mão beijada. Guardou segredo de suas intenções, temendo uma fila de pedintes e parentes em sua porta. O Filho não conseguia entabular conversa séria e, por isso, tornara-se o confidente ideal. Seu Tal, falando alto para que o filho ouvisse, traçou seu plano, noites afora, na solidão do descanso de seu velho fogão, debaixo do toucinho defumado e da negra picumã de fumaça acumulada, em estranhos chumaços. Planos que envolviam contos e contos de reis sob um telhado sem foro de uma cozinha. Esperto, tinha a exata noção de que até os deuses cobram quando dão. Sabia que na vida tudo tem um preço, algumas vezes pequeno para quem paga e grande para quem recebe, a sua doação teria uma cláusula de barganha, essa seria lavrada no ínfimo diâmetro de um fio de bigode e na enorme extensão da palavra empenhada. Todos os bens seriam passados de porteira fechada, incluindo, também, os dois seres humanos, o proprietário e seu herdeiro natural, o Major da Vargem, ambos, nessa estranha barganha, outorgantes e objetos da outorga. Estava tudo direcionado e certo, mas aquela pedrinha que, como eu disse e repito, costuma rolar numa encosta e mudar o curso das coisas, nesse caso rolou, e isso eu vou contar-lhe tim-tim por tim-tim.
O arteiro do Major gostava muito de brincar na capoeira rala que cingia a pequena casa onde morava. Ali, esquecido de que era coxo, corria desenfreado e descalço sem apreciar os riscos de as estrepes que vêm de baixo, e de os galhos secos que vêm de cima, esses que, ocasionalmente, se despregam das grimpas e aterrizam sem hora, local, velocidade e peso definidos. Estava, pois, sob o risco de tudo que acontece num sorteio da natureza ou cochilo das divindades que governam o topo das árvores, as coivaras e os estrepes venenosos. Quem tanto passa por um mesmo local de perigo, mesmo que o risco seja pequeno por vez que ali se arrisca, acaba transformando o improvável em provável, e se o ciclo se repete muitas e muitas vezes, o improvável torna-se em quase certo, foi o que aconteceu nesse caso: um galho de castanha-de-cutia veio de encontro à cabeça do menino, e digo, de encontro, na perspectiva do pai do rapazinho que se machucou e, ao encontro, na minha, pois esse galho faria meu destino e sorte sem causar um dano permanente ao pobre coitado. O certo é que o menino se esborrachou no chão e logo sobre um monte de excremento de gente, pois ali era local em que os proprietários e empregados costumavam amarrar o gato. Agora, pense você na situação de desconforto para quem o acudiu, algumas horas depois, aquilo cheirava mal, um nojo de fazer vômito. Demorou a ser encontrado no meio daquela bosta nova e ficou em coma por mais algumas horas. Acordou aos poucos, estrebuchou e gemeu, mas, no frigir dos ovos, deu de si. Para o assombro dos presentes, despertou ao avesso, cheio de convicções, e, o naturalmente tão dissuasivo, transformado num homem convincente, cheio de argumentos bem acabados: "Pai, eu sei que o Senhor já decidiu dar as suas terras para o Joaquim Fidelis, mas acho melhor que Senhor não faça isso. Quem mais precisa é o pai da Satita, o padrinho João, ele também vai se casar por esses dias, o senhor não está sabendo? Pois, então, estou dizendo, vai! Eu posso muito bem morar com meu padrinho, e a Deolinda passa a ser minha madrinha. Ela a gente sabe que é tão boa menina quanto a Satita, e, tenho certeza, a Deolinda vai cuidar muito bem do senhor e de mim. Eu posso viver com eles, posso sim, sem contrariedade alguma. Então, pai, o Joaquim Fideles já tem alguns bens, já adquiriu terras, se é para ajudar o padrinho na pessoa da filha dele, é melhor ajudar ao próprio. Por que ajudar a um terceiro para agradar a um segundo se o senhor pode ajudar, diretamente, a esse segundo?" Seu Tal, branco de emoção, apenas gritou: "Estou ficando caipora! Como não havia pensado nisso!". E mergulhou-se em enome alegria ao pensar que o filho se recuperara definitivamente de sua patetice, mas, para sua decepção, após esse momento, da adolescência até a velhice, nunca mais aquela eterna criança bocejaria frases ou ideias inteligentes. Uma única e bendita vez fora iluminado pelo tronco que despencara de uma sábia grimpa, o suficiente para mudar a vida de muita gente e, a minha.
De todos esses episódios estávamos inocentes enquanto aconteciam. Muitos, até hoje, não acreditam nessa versão, algumas pessoas acham que a gente premeditara tudo e interferira no destino da herança. A verdade foi como contei. Nem preciso falar do susto e emoção que tomaram conta de nós quando Seu Tal trouxe-nos a notícia de sua decisão. Mesmo muito felizes, ficamos espantados quando, além das cláusulas de porteira fechada, o doador fez questão de pedir juras ao Joãozinho de que não deixaria as mulas de João Camilo, um respeitado morador do Vai e Volta, entrarem nas terras que nos doava. Nunca iremos entender o porquê dessa implicância com o vizinho e seus animais. Deixamos nossa curiosidade pendurada no varal do bom senso, seria muito arriscado indagar a respeito de tal capricho exatamente naquele dia.
E assim... Como a vida imita, algumas poucas vezes, a história de carochinha, assim aconteceu: Seu Tal ficou pobre, mas com pensão vitalícia para ele e o filho, e nós, eu e o Joãozinho, ficamos ricos de terra e pobres de tudo o mais, exceto de amor e de esperança.
Apesar de possuir muitos bens, Seu Tal não ostentava riqueza e, aos olhos de muitos, se passava por pobre devido a sua aparência e modo de vida simples. Nada de supérfluos, ao contrário, tudo no limite para uma sobrevivência digna com o mínimo de gastos. Um homem apoucado em todos os aspectos, exceto no que se referia a terras, essas as tinha em quantidade e qualidade superiores a qualquer outro cidadão do arraial da Oliveira, quiça do município de Piranga. Essas propriedades, coisa de trezentos alqueires, estendiam-se pela campina da Vargem, a gema, desciam para os lados do Macuco e subiam para o córrego do Pires. Terras boas para plantio e pastagens e com pequenas reservas de Mata Atlântica nas encostas e cumes dos morros. A letargia do proprietário havia contaminado suas posses transformando-as em riqueza esterilizada, muita poeira e capoeira para nenhum conforto do dono ou de quem quer que seja. O pão-durismo é uma atitude que não incomoda ao que detém a posse de coisas, mas que mexe com a emoção dos vizinhos e faz brotar neles os piores sentimentos contra quem ajunta por ajuntar. O ser humano é esquisito e parece sentir prazer em ver a infelicidade distribuída a todos em partes iguais. Prefere o mesquinho que sofre ao que vive feliz e inconsciente da possibilidade de ter outra vida que não aquela que, se não escolheu, aceita com resignação. Talvez por isso os invejosos se esforçam para que os avaros saibam-se anômalos e se consumam por serem sovinas. O pão-durismo é, nessas bocas negras da vizinhança, propagado como se fosse uma doença contagiosa e terrível, bocas que, sem o suporte de cérebros um pouco acima delas, inventam coisas e fazem chacotas. O velho ancião sabia que pelas suas costas os habitantes do lugar e os falsos amigos diziam: "quem gosta de terra é minhoca e Seu Tal" ou "Aquele é tão pão-duro que tem até prisão de ventre, não solta um pum sequer". Algumas verdades apareciam no meio de tanta maledicência, uns diziam "só pode ser burrice ter tanta riqueza e viver como se fosse um mendigo". Seu Tal tinha personalidade bem formada e ouvia com interesse os conselhos para mudar de vida: alimentar-se melhor; mobiliar a casa; tirar as goteiras; e contratar uma empregada para tomar conta dele e do filho. Era educado, não teimava com ninguém, para todas essas recomendações tinha algumas respostas prontas: "sim senhor", "O senhor está certo", "muito obrigado pelo conselho", mas nunca seguia tais cabeças, errava ou acertava sozinho. Nunca tomou satisfação com ninguém e nem fez cara feia para os que o desaprovavam. Com uns poucos amigos mais íntimos, comentava: "Mudar de vida pra quê? Estou bem como estou. Quem me ajudou a ganhar que venha ensinar-me como gastar". Até achou graça quando um viajante, que viera ao seu rancho para pedir pousada, vendo-o maltrapilho pediu-lhe que chamasse o patrão, e ele, humilde, respondeu: "Aqui não existe patrão moço, somos todos filhos de Deus e por iguais nos tomamos". O certo é que essas conversas de invejosos, maldades de quem quer apequenar a virtude da austeridade no viver e aumentar os defeitos dos outros, com Seu Tal fizeram efeito contrário: aumentaram sua riqueza e fortaleceram seu espírito. E agora, tudo que havia amealhado, ano após ano, ia cair nas mãos de um felizardo, tudo dado de mão beijada. Guardou segredo de suas intenções, temendo uma fila de pedintes e parentes em sua porta. O Filho não conseguia entabular conversa séria e, por isso, tornara-se o confidente ideal. Seu Tal, falando alto para que o filho ouvisse, traçou seu plano, noites afora, na solidão do descanso de seu velho fogão, debaixo do toucinho defumado e da negra picumã de fumaça acumulada, em estranhos chumaços. Planos que envolviam contos e contos de reis sob um telhado sem foro de uma cozinha. Esperto, tinha a exata noção de que até os deuses cobram quando dão. Sabia que na vida tudo tem um preço, algumas vezes pequeno para quem paga e grande para quem recebe, a sua doação teria uma cláusula de barganha, essa seria lavrada no ínfimo diâmetro de um fio de bigode e na enorme extensão da palavra empenhada. Todos os bens seriam passados de porteira fechada, incluindo, também, os dois seres humanos, o proprietário e seu herdeiro natural, o Major da Vargem, ambos, nessa estranha barganha, outorgantes e objetos da outorga. Estava tudo direcionado e certo, mas aquela pedrinha que, como eu disse e repito, costuma rolar numa encosta e mudar o curso das coisas, nesse caso rolou, e isso eu vou contar-lhe tim-tim por tim-tim.
O arteiro do Major gostava muito de brincar na capoeira rala que cingia a pequena casa onde morava. Ali, esquecido de que era coxo, corria desenfreado e descalço sem apreciar os riscos de as estrepes que vêm de baixo, e de os galhos secos que vêm de cima, esses que, ocasionalmente, se despregam das grimpas e aterrizam sem hora, local, velocidade e peso definidos. Estava, pois, sob o risco de tudo que acontece num sorteio da natureza ou cochilo das divindades que governam o topo das árvores, as coivaras e os estrepes venenosos. Quem tanto passa por um mesmo local de perigo, mesmo que o risco seja pequeno por vez que ali se arrisca, acaba transformando o improvável em provável, e se o ciclo se repete muitas e muitas vezes, o improvável torna-se em quase certo, foi o que aconteceu nesse caso: um galho de castanha-de-cutia veio de encontro à cabeça do menino, e digo, de encontro, na perspectiva do pai do rapazinho que se machucou e, ao encontro, na minha, pois esse galho faria meu destino e sorte sem causar um dano permanente ao pobre coitado. O certo é que o menino se esborrachou no chão e logo sobre um monte de excremento de gente, pois ali era local em que os proprietários e empregados costumavam amarrar o gato. Agora, pense você na situação de desconforto para quem o acudiu, algumas horas depois, aquilo cheirava mal, um nojo de fazer vômito. Demorou a ser encontrado no meio daquela bosta nova e ficou em coma por mais algumas horas. Acordou aos poucos, estrebuchou e gemeu, mas, no frigir dos ovos, deu de si. Para o assombro dos presentes, despertou ao avesso, cheio de convicções, e, o naturalmente tão dissuasivo, transformado num homem convincente, cheio de argumentos bem acabados: "Pai, eu sei que o Senhor já decidiu dar as suas terras para o Joaquim Fidelis, mas acho melhor que Senhor não faça isso. Quem mais precisa é o pai da Satita, o padrinho João, ele também vai se casar por esses dias, o senhor não está sabendo? Pois, então, estou dizendo, vai! Eu posso muito bem morar com meu padrinho, e a Deolinda passa a ser minha madrinha. Ela a gente sabe que é tão boa menina quanto a Satita, e, tenho certeza, a Deolinda vai cuidar muito bem do senhor e de mim. Eu posso viver com eles, posso sim, sem contrariedade alguma. Então, pai, o Joaquim Fideles já tem alguns bens, já adquiriu terras, se é para ajudar o padrinho na pessoa da filha dele, é melhor ajudar ao próprio. Por que ajudar a um terceiro para agradar a um segundo se o senhor pode ajudar, diretamente, a esse segundo?" Seu Tal, branco de emoção, apenas gritou: "Estou ficando caipora! Como não havia pensado nisso!". E mergulhou-se em enome alegria ao pensar que o filho se recuperara definitivamente de sua patetice, mas, para sua decepção, após esse momento, da adolescência até a velhice, nunca mais aquela eterna criança bocejaria frases ou ideias inteligentes. Uma única e bendita vez fora iluminado pelo tronco que despencara de uma sábia grimpa, o suficiente para mudar a vida de muita gente e, a minha.
De todos esses episódios estávamos inocentes enquanto aconteciam. Muitos, até hoje, não acreditam nessa versão, algumas pessoas acham que a gente premeditara tudo e interferira no destino da herança. A verdade foi como contei. Nem preciso falar do susto e emoção que tomaram conta de nós quando Seu Tal trouxe-nos a notícia de sua decisão. Mesmo muito felizes, ficamos espantados quando, além das cláusulas de porteira fechada, o doador fez questão de pedir juras ao Joãozinho de que não deixaria as mulas de João Camilo, um respeitado morador do Vai e Volta, entrarem nas terras que nos doava. Nunca iremos entender o porquê dessa implicância com o vizinho e seus animais. Deixamos nossa curiosidade pendurada no varal do bom senso, seria muito arriscado indagar a respeito de tal capricho exatamente naquele dia.
E assim... Como a vida imita, algumas poucas vezes, a história de carochinha, assim aconteceu: Seu Tal ficou pobre, mas com pensão vitalícia para ele e o filho, e nós, eu e o Joãozinho, ficamos ricos de terra e pobres de tudo o mais, exceto de amor e de esperança.
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Fazenda da Vargem em 2005 |
E tem mais, nós negamos a ideia de que a vida anda a passos lentos "de déu em déu sem nunca chegar ao céu", eu brincava de boneca quando me vi de repente casada e fazendeira. Passamos a partilhar, de uma hora para outra, um monte de responsabilidade socialmente bem estabelecidas na região: muitos empregados; muitos pastos; cavalos e vacas e tapumes por fazer. Quando se herda terras de um homem que já não tinha forças nem ânimo para tomar conta delas, as cercas estão caindo por todos os lados, os trilhos invadidos pele carrapicho, os pastos tomados por assa peixes, os vales erodidos e aterrados, os aceiros invadidos pelo mato rasteiro, as árvores frutíferas com as folhas cortadas pelas formigas e os troncos carcomidos por cupins e brocas. Uma montanha de problemas e um montinho de dinheiro. "Ser Rico é isso?" Perguntávamos aos travesseiros, eu e o Joãozinho, cada qual com medo de revelar ao outro que éramos, também, sócios nas fraquezas e decepções.
Em dinheiro vivo nada recebemos, tínhamos que cavar a vida, como qualquer casal novo, com uma diferença, começávamos com uma enorme dívida, não em dinheiro, mas de coisas que não podiam ser adiadas. Um senhor muito inteligente me disse, anos depois, que nossa situação podia ser descrita como a de um empreendimento com passivo altamente coberto. Mas, indiferente a tais coberturas, a fazenda nos cobrava: arrame farpado; mão de obra; ferramentas, desde a enxada a um simples martelo; e casa por retocar, tudo isso exigindo reparos que não podiam ser adiados, era muita coisa a ser reconstruída. Joãozinho decidiu começar pela casa, entendeu logo que nela não cabiam retoques, tínhamos que fazer outra, com urgência.
Nosso casamento vingou porque o Joãozinho era um homem muito bom e, também, porque somos de um tempo em que casamento é para valer. No início era assim, ele trabalhava o dia todo e quando voltava para casa, já tarde, encontrava-me no terreiro brincando com as bonecas ou pulando corda, ele pegava minha mão, levava-me pra cozinha e me ensinava a cozinhar. Nunca levantou a voz para mim. Trabalhava o dia todo e tinha esse carinho que me reservava para as tardes e noites.
Mas, minha filha, num dia desses lhe conto o resto. Antes tenho que lhe dizer: o Major viveu muitos anos, nós cuidamos dele muito bem, que Deus o tenha. Por hoje chega.
Em dinheiro vivo nada recebemos, tínhamos que cavar a vida, como qualquer casal novo, com uma diferença, começávamos com uma enorme dívida, não em dinheiro, mas de coisas que não podiam ser adiadas. Um senhor muito inteligente me disse, anos depois, que nossa situação podia ser descrita como a de um empreendimento com passivo altamente coberto. Mas, indiferente a tais coberturas, a fazenda nos cobrava: arrame farpado; mão de obra; ferramentas, desde a enxada a um simples martelo; e casa por retocar, tudo isso exigindo reparos que não podiam ser adiados, era muita coisa a ser reconstruída. Joãozinho decidiu começar pela casa, entendeu logo que nela não cabiam retoques, tínhamos que fazer outra, com urgência.
Nosso casamento vingou porque o Joãozinho era um homem muito bom e, também, porque somos de um tempo em que casamento é para valer. No início era assim, ele trabalhava o dia todo e quando voltava para casa, já tarde, encontrava-me no terreiro brincando com as bonecas ou pulando corda, ele pegava minha mão, levava-me pra cozinha e me ensinava a cozinhar. Nunca levantou a voz para mim. Trabalhava o dia todo e tinha esse carinho que me reservava para as tardes e noites.
Mas, minha filha, num dia desses lhe conto o resto. Antes tenho que lhe dizer: o Major viveu muitos anos, nós cuidamos dele muito bem, que Deus o tenha. Por hoje chega.
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