quinta-feira, 16 de maio de 2024

A Jardineira

                                                                                                                                                                                                                                               Por Lulu Alfenas


Vieram a Ouro Preto para o 7 de setembro de 1928, entre outras coisas, queriam conhecer uma jardineira que fora importada da Inglaterra como o principal  atrativo dos festejos tradicionais nesta data. As festas de longe seriam como as de 1922 quando se comemorara o centenário da independência do Brasil. Mas aquele misto de carroça e automóvel era uma boa atração para dois jovens do interior, que só conheciam carros de passeio, mesmo estes raros nas estradas de Piraguara. 

 

Deoclécio comentou:

 

— Só mesmo como novidade eu engulo isso, não estou achando muita graça nesta jardineira, pensei que fosse bem acabada. Repare, é quase madeira pura, eu diria que não passa de uma carroça puxada a motor.

 

Edgard, que havia entrado na grande-perua e se assentado em seus bancos, discordou sem muita convicção:

 

— Não é tão ruim, isso é apenas o início, acho que em breve vão fazer coisa melhor. Pra nós da roça, aqueles caminhões que estão lá embaixo poderiam ser mais úteis. — Disse apontado para a exposição de caminhões da Ford que estavam estacionados um pouco abaixo do palco, numa rua lateral à praça Tiradentes,  onde estava, e concluiu — Aqueles vão substituir o carro de boi e não demora muito.

 

Um lambe-lambe, que tinha uma barraca instalada quase rente ao palco, insistia para que se deixassem fotografar:

 

— Leva uma lembrança, guarde o momento que fica pra toda a vida, e lhes digo com honestidade que meu trabalho é de qualidade — disse fazendo charme de com rima e quase cantarolando para chamar a atenção dos transeuntes — qualidade é o meu nome, fotografia não faço, faço retratos, olha o retrato!

 

Cederam, foram retratados. Como não tivessem roupas apropriadas, o lambe-lambe emprestou-lhes as que tinha para tais ocasiões. As roupas não lhes cabiam bem: ambos vestiram ternos completos, botinas surradas e empoeirados, como convinham a dois tropeiros que se prezassem: cadarços bem amarrados sobre meias compridas em  preto e branco.  Edgard usou paletó e calças de mesmo tecido, textura em preto em branco com listas verticais. A roupa cedida a Deoclécio se ajustou melhor ao modelo. Parecia um traje de ir à missa, brincaram: paletó claro e calças com listas largas e escuras contrapondo-se a um fundo branco. Edgard estranhava a própria vestimenta, em especial a gravata de fundo branco e listas vermelhas largas, e a de Deoclécio, escura com pequenos motivos entrelaçados e mais claros. Era moda cobrir a cabeça em ocasiões solenes, e Deoclécio o fazia com estilo, um chapéu Borsalino escuro, de abas largas e faixa da mesma cor.  Edgard, que sempre gostou de boina, nesse dia usou uma escura enfeitada com botões de prata.  As Feições tranquilas escondiam as emoções daquela viagem e a inesperada noite na casa do Turco. Ambos sérios, compenetrados no foco da máquina e olhares fixos na expectativa do passarinho. Deoclécio, que achava graça no estilo do companheiro, guardou a brincadeira para depois do clique:

 

 

— Edgard, você ficou muito parecido com o Didinho da Casinha, aquele adora uma calça pega-frango.

 

Edgard não reagiu, apenas fez um – Hum... — e virou-se com desdém como quem diz: que importância tem essas bagatelas!

 

Deoclécio mudou de assunto, parecia insinuar alguma coisa, mas optou-se por fazer mais uma daquelas perguntas fora de hora:

 

— Seu Diga, diga-me, quantos irmãos você tem ao todo?

 

Ele também sem buscar motivos, simplesmente respondeu:

 

Entre irmãs e irmãos são oito: a Zelina, a mais velha, que você muito bem sabe é casada com o João Camilo; a Maria que mora em Piranga, mulher do Péricles, a Isabel que se casou com o Zé Badaró e mora em Barbacena, o Torgo que acho que não vai se casar tão cedo, aquele é namorador e já ficou noivo umas duas vezes; o Antônio, que agora  namora uma menina lá de Alto Rio Doce; a Peixe que se casou com  o Aristides  de Piranga e foram morar em Santana do Piraguara,  o Duca que você muito bem conhece, e a  Francisca que é a caçula..

— Mas e você Seu Digar, quando pensa em se casar?

Ele parecia distante, talvez nem tivesse escutado o que o companheiro perguntara. Deoclécio notou o pouco caso e pensou: “acho que não estou agradando muito; é, com efeito a morena que ainda ronda a cabeça do Edgard”. E na falta de incentivo para voltar à carga, pensou ainda com humor: “Morena, qual delas? Uma ou outra, a de lá mais pra índia que pra negra”.

 

Edgar voltou à terra, agora com outro assunto:

 

— Não se esqueça Deoclécio, ao meio dia temos que fazer chão – disse e completou — Pretendo dormir esta noite numa fazenda, na estrada nova que liga Mariana a Piranga, hoje ainda vamos comer muita poeira.

— Nisso você se engana, resolvi ficar por convite de um grande amigo daqui, mas em meu lugar vai o Hemenegildo, que você conhece como Gildo, encontrei-me com ele por aí, e ele me disse que queria voltar hoje, mas não queria ir sozinho, combinamos  a fome com a vontade de comer e propus que ele fosse em meu lugar, no que aceitou de bom grado. Eu fico com o meu cavalo e vou quando Deus quiser.

 

Digar estranhou tal mudança, mas conhecendo o primo e suas venetas, logo aceitou o novo companheiro o qual já conhecia de longa data e de muitas brincadeiras também, era como se ele fosse um primo.  Ao meio dia ele e Gildo  desceram as encostas de Mariana, passando ao lado do Pico do Itacolomi e rumaram para a Fazendo Caravelas, onde Digar tinha costume de pernoitar. Não há como chegar aos Arantes sem margear por algumas léguas no córrego papa-cobra. Na margem norte cresce a montanha que forma a Serra de Mariana, dando-se a impressão que o rio é cercado por uma grande muralha. Mais de cem metros de altura da Margem até o topo da montanha. A trilha que leva do sopé até a base da elevação é irregular e íngreme o bastante para rolarem cavalo e cavaleiro em caso de um passo em falso. Edgar pagava o preço da fama de peão e bancava os riscos sempre que o terreno oferecesse perigo e ia à frente, e por este motivo chegava aos arraiais e fazendas alguns passos na frente do companheiro de viagem, fossem eles Deoclécio ou Gildo.   

Dessa vez, margearam o rio por alguns quilômetros até encontrar uma raseira por onde atravessaram. Edgard comentou para o companheiro de viagem:

 

— Não estamos indo por um atalho, este trajeto aumenta a viagem em dez quilômetros, mas vale a pena passar por aqui, principalmente para você, que nunca viu este ribeirão e não conhece a beleza de suas margens.

— De fato não conheço. Mas me diga, por que sendo todo mundo o chama de rio? Deve haver algum motivo, seja por ignorância do significado dos nomes ou por lhe prestar alguma homenagem. — disse Gildo.

Edgard voltou-se para a história do lugar:

— Água em movimento é igual às pessoas: são todas semelhantes, mas quem as vê lhes dá valores diferenciados, muitas vezes mais pelas aparências. Tem riacho com a panca de ribeirão e ribeirão com jeito de rio. O Gualaxo é rio por merecimento e ribeirão pela quantidade de água. Água assim tão especial, se estancada, podia ser oceano sem ofender os mares.

Caminhavam ao lado do curso d’água da região que havia sido descoberto por Bartolomeu Bueno, no século XVII. Ali os primeiros bandeirantes encontraram pepitas que podiam ser vistas sem apear, assim como agora, quando os cavaleiros podiam ver aquelas pedras roliças lá em baixo. A água é pura, pois desce de pedreiras e montes e é depurada pelas gretas e poros das pedras, um filtro natural. O ouro aqui fora tão abundante que teria sido a  causa  de a região atrair tantos aventureiros.  

Gildo ouvia e reparava atento, mas sem o entusiasmo do amigo, era indiferente às categorias que diferenciam as coisas, mas não à beleza do lugar, talvez por isso tenha dito:

—É... E eu que pensava que o Ribeirão Podre fosse de águas claras, esta daqui é transparente, quase invisível, eu não sabia que isso era possível.

— Pois não é! — Respondeu Edgard e enquanto falava curvou-se do lado esquerdo da sela, jogou o peso do corpo no estribo do mesmo lado e esticou o braço até alcançar a água, pegou um gole na palma da mão e o solveu sôfrego antes que as gotas se lhe esvaíssem pelos dedos, e, por fim, comentou — e é gelada.  Experimente, vale a pena, beleza também mata a cede.

 

Gildo aceitou a sugestão, mas teve que descer do cavalo para alcançar a água, era mais alto e menos flexível que o companheiro de viagem. Postou-se na beira de um lugar raso, ajoelhou e curvou-se colocando todo o peso no braço direito e, com a mão esquerda, molhou a cabeça na água. Edgard achou aquilo engraçado e caçoou:

—É seu Gildo, tá lavando a consciência; será que não carece de sabão de barrela e caco de telha pra tirar tanto pensamento sujo?

— Não, Digar, você é que  precisa de sabão de decoada e creolina, pois  ficou todo arrepiado só de ver o gingado da baiana, como me disse o Deoclácio hoje mais cedo.

— Aquele é um bom amigo e primo, mas um grande mentiroso, depois de darem boas gargalhadas, como é comum nestas viagens demoradas e cansativas, passaram, em questões de segundos, da euforia total para a um estado de letargia. Estavam num daqueles lugares em que a natureza emite intermitentes convites à reflexão e à pachorra, um mundo para se maravilhar, e a viagem tornava-se lenta, e os viajantes quietos. Os animais aproveitaram a quietude dos que os montavam para diminuírem o ritmo, iam a passos. Digar apreciava as montanhas e a vegetação exuberante que os cercavam, mas não era dado a caracterizar tais belezas, faltavam-lhe palavras adequadas e públicas interessados. Sem o saber, o jovem peão adotava uma velha filosofia oriental que preconiza, com muita propriedade, que conceituar é reduzir os significados e afastar-se da compreensão, o melhor é admirar sem tentar classificar; filosofia essa em total oposição à cultura vigente que a tudo quer explicar e que gosta de dar nome aos bois, mas logo os manda para o açougue, ou seja, para cumprirem o destino de serem, como todo ser vivo, comidos por outros. Mas, mesmo sem se ater a essa necessidade de aprender nomes das coisas, desde a primeira infância, Digar os conhecia, sem nenhum esforço, pois vivia no meio do mato. Assim, não lhe escapava o nome de cada uma das árvores mais comuns: do Mulungu, com o tronco rodeado por nódulos enrugados, por aqui mais conhecido como Bico-De-Papagaio, devido à  flor que muito se assemelha ao bico do tucano; do Monjolo, que o povo chama também de Jacaré; da Braúna, árvore de tronco forte e entranhas negras, dura e impenetrável — muito usada para esteios das principais benfeitorias das grandes casas de fazenda. Tudo naquelas montanhas empurrava o homem para a meditação e um mergulho em si mesmo. Sodiga ia pensando em sua vida: dezoito anos bem vividos, bons tempos, mas era muito novo ainda para enfrentar casamento no próximo ano. Com seria aquela nova vida? Ele e Rita já tinham terras herdadas por ela desde a morte do pai, faltava-lhes, apenas, uma casa boa para morada. Razão não havia para maior preocupava. Lembrava-se do que sua mãe costumava dizer: meu filho, não se inquiete por ninharia, Deus há de prover. Vinha em seu auxílio, o que confirmava a palavras da mãe, o exemplo de sua futura sogra, Deolinda que, nas vésperas de seu primeiro casamento com João da Vargem, havia ganhado uma fazenda de terras com mais 400 hectares, tudo com benfeitorias, um patrimônio que incluía uma casa velha. 

À monotonia do lombo de cavalo e o horizonte alto, quando viajavam pelos os vales, contrastavam-se com a beleza de um chão desenhado por gramas rasteiras e de variadas tonalidades e formatos, tapete vivo sob as sombras de árvores copadas, esparramadas, fungiformes ou esguias, demonstrando a diversidade como indício de que a natureza não perde nenhuma oportunidade de vida: qualquer nesga de terra ou rachaduras entre pedras onde se possa encontrar a mínima condição de vida, aí certamente uma semente germinará, e o espetáculo da criação se repetirá. A vontade de criação ali é Deus; e para o cavalo, o peso no lombo, o diabo.

Seria uma viagem inesquecível como veremos quando os cavaleiros chegaram ao destino, fazenda Caravelas.

       Clique para continuar 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário