domingo, 21 de novembro de 2010

Zé Candinho

Amanhecer em Piraguara, mais tarde
Senhora de Oliveira.

por Lulu de Sodiga
Há muitas portas pelas quais um intruso, curioso da biografia alheia, pode entrar na vida privada para o exame do que se passa com as figuras mais intrigantes deste mundo sem tronqueiras. No caso de Candinho, poderíamos escolher a porta do humor; ou da excentricidade de hábitos; ou mesmo a de suas origens e motivos. Como ele era um homem da estrada e da rua, de hábitos simples e de atos não documentados, nós vamos pelo caminho impresso na alma e espírito do povo, onde foram gravados seus feitos e casos, porque as pegadas verdadeiras, essas sim, foram apagadas da camada mais tênue de nossa história, formas efêmeras varridas do pó fino das estradas que não resiste ao vento quente de nossas tardes e à brisa fresca e úmida de nossas noites. Um homem assim, sem um retrato de grandeza, um ícone do que há de mais simplório e que inverte os valores que fazem história.

Antes um aviso, um homem não é uma ilha: a impressão que se tem de uma pessoa em particular não é uma simples referência a um indivíduo depende dos valores culturais da própria comunidade, de seu grau de maturidade e experiência e da forma como vê e avalia os atos dos que nela vivem. Falar de José Cândido Machado, enquanto uma singularidade,  é falar do povo de Senhora de Oliveira, enquanto capaz de gostar, de se divertir, de dar importância às suas características, às suas bobices, às suas más notas e ao que lhe era mais particular, ao seu incomum humor que brotava natural do que fazia e falava. O povo acha graça do que alcança, assim, a estultícia máxima é sempre motivo de regozijo dos mais néscios, enquanto as pilhérias mais bem acabadas não conseguem divertir senão aos mais sábios. Em outras palavras, o sucesso de um palhaço depende de sua plateia, e o mesmo filósofo, poeta ou bobo que é sucesso para um público pode ser vaiado noutro. O fenômeno Candinho, portanto, pode ser, e talvez seja mesmo, o retrato do lugar e época, de seus valores e escolhas, como também pode refletir a amplitude de visão ou sua estreiteza, dependendo da menor ou maior rigidez com que possamos observar a conduta, menos dele, e, mais dos que o rodeavam e lhe emprestaram um sentido. Pelo andar da carruagem, justo posicionar os fatos no tempo, desde que no espaço e contexto já o fizemos: tudo ocorre entre os anos 1950 a 1980, uma faixa estreita de tempo para uma visão histórica, mas bastante larga na experiência de uma geração. Quase pedimos desculpas por tão prolongado prefácio, mas não o fazemos, pois nada mais necessário que deixar claro o porquê de tanto enlevar uma figura considerada tão simples pela maioria esmagadora dos que o conheceram em vida. Vamos ao cerne do caso e o façamos como se o tempo fosse presente.

Zé tem cútis claras, barba rala, não gosta de usar bigodes, o rosto é ovalado, tem os cabelos cortados bem rente ao coro cabeludo, nada que o afaste muito dos tipos que povoam todos estes córregos de Piraguara, desde o nosso Oiapoque (Malacacheta) até o nosso Chuí (Córrego da Bárbara). Machado tem um jeito estranho de andar, é baixinho, mas de passos largos e decididos, aliás, única exceção que o aproxima de alguma esperteza, em tudo o mais é uma lesma. Mas, quando assim anda, as pernas avançam ágeis, quase aos saltos e distantes uma da outra, dando a impressão que têm urgência, mas se evitam. Do jeito desengonçado como anda, poder-se-ia jurar que o atrito do pano incomoda ao matuto de meia-idade senhor daquelas pernas tão sofridas e mal conservadas em sua base de sustentação, os pés. Talvez por isso, Candinho tenha um caminhar atípico, de movimentos que parecem no limite da instabilidade. Só mesmo por um milagre que dificilmente percebemos de tão acostumados que a eles somos o seu corpo não se emborracha no chão: o tronco oscila para a direita e esquerda qual pêndulo de um relógio de torre em busca do equilíbrio que lhe é eternamente negado, e nisso se assemelha ao mar que, por mais que procure o repouso, nunca encontra de ser águas calmas. Nesse caminhar, seus braços sobem até a altura dos ombros revezando-se incansáveis em movimentos largos e compassados. A posição dos pés, contudo, nega a desarmonia, e marca hora certa e fixa: quinze para as três. Há qualquer coisa engraçada e, ao mesmo tempo, intrigante nesses gestos desengonçados. Em sua maneira despachada de caminhar, o Zé inclina-se para trás a cada passo, nisso cria a expectativa de que a qualquer momento irá cair de costas ou a cabeça irá saltar-lhe do pescoço desgrudando-se de vez do corpo que a sustém. Por si só, um andar tão desconexo já seria suficiente para revelar um indivíduo de natureza complexa, uma ambiguidade de difícil descrição e entendimento, mas, como veremos, essa é apenas uma das tantas facetas deste ser tão particular.

É comum Zé Candinho vestir calças limpas e bem passadas. Gosta de andar com uma camisa xadrez de estampas que combinam com o amarelo das calças de brim, o pano preferido impõe a cor padrão. De tão limpas, suas camisas parecem novas, mas todos sabem que são velhas e surradas. Ele mesmo se vangloria e diz “É capricho sô! É o capricho!”. Em absoluto contraste, os pés, sempre descalços, dedicam-se ao sustento de alguns parasitas e, algumas vezes, de bichos-de-pé. As unhas grandes e sujas, e os dedos abertos, escancarados em forma da letra v (vê), comprovam muitas andanças e tropicões e pouca flexibilidade e disposição para realizar o tipo de tarefa que o libertaria da inconveniência: curvar-se para arrancar as batatas. O nexo entre a base e o topo de seu corpo fica apenas nos atributos de cor e tamanho dos membros e desaparece se resolvemos examinar a sua figura por inteiro. As partes não combinam entre si e parecem pertencer a pessoas distintas: o elemento de cima não pode ser do mesmo material do de baixo. Isoladamente, os pés sujos e maltratados são complementos razoáveis para os parasitas que costumam infectá-los. Algumas vezes, os bichos-de-pé parecem ter idade avançada, a considerar as estrias e as saliências que se desenvolvem sob a pele. Para um indivíduo tão desprovido de companhias femininas e amizades mais íntimas, não se poderia esperar muito diferente, pois é frequentador de terrenos baldios, currais de boi e chiqueiros, lugares sabidos serem celeiros de tudo quanto é tipo de inseto peçonhento, e não tem quem o aconchegue nas noites frias ou quem coloque uma bacia de água quente e pegue uma agulha de ponta fina e arranque-lhe as batatas com dor, mas com amor; e, ainda mais, sempre anda descalço, não usa sequer uma sandália surrada. Não poderia haver melhor arremate, já quase desnecessário, para quem se arrisca a formar um conceito dele, se visto pelos pés: o pé inteiro é seu calcanhar de Aquiles. Mas, subindo o foco de nossa observação, a visão é bem diferente, o homem acima da canela é outro. Essa impressão não é causada apenas pela roupa limpa e bem passada, há mais adereços que a corroboram, os cabelos são bem penteados, a barba e o rosto bem cuidados. Embaixo, um homem pobre, um mendigo, um pé de pavão; em cima, um homem capaz de posses que tem cultura e hábitos de higiene. Tem aquele jeitão de gente boa, poderia ser até um político, pois uma certa ingenuidade e ares de honesto sempre caem bem e atraem o povo. Mas em alguma parte entre a canela e o umbigo, o mendigo se funde com o remediado, e, se dependesse apenas de atribuir pesos às partes de baixo e às partes de cima e dividir por dois, poderíamos estar na frente de homem, na média, comum, do mesmo modo como um homem com os pés no fogo e a cabeça enterrada na geladeira teria uma temperatura média ambiente. Contudo, essa dualidade física não se sintetiza, ao contrário, mantém-se e se estende para o comportamento em múltiplas idiossincrasias (desculpem o palavrão!).

Zé costuma tratar as coisas inanimadas como se vivas fossem, mas o faz sempre de forma discreta, nisso é mais um romântico do que um excêntrico. Para assentar-se em praças públicas, ele sustenta um certo flerte com o banco, como se fora um primeiro encontro com uma garota bonita, dele se aproxima devagar, quase sempre com rodeios, dá volta completa e costuma repetir a viravolta antes de decidir se abancar. Não fosse dessa beira da zona da zona da mata onde “homi é homi e mué é mué”, Zé poderia ser confundido com um certo tipo delicado ou um almofadinha. Tem trejeitos, mas é tímido e precavido contra pregos. O certo é que ele jamais vai direto com o traseiro ao banco. Nisso é sistemático, só admite uma abordagem direta para bancos de cozinha, varanda ou poltrona da sala com os quais já tenha intimidade anterior, e esses são em profusão, pois muitas são as casas que frequenta. Bancos de praça, públicos e fáceis de serem abordados, fazem-no esquivo. Se perguntado por que é tão cerimonioso, explica com frase pensada: “não aprecio mulheres e bancos oferecidos, se quando a esmola é muita o Santo desconfia quando as tábuas são estreitas as saliências do corpo temem frestas”. Se essa conversa for com gente de casa e do sexo masculino, mostra-se mais aberto e arremata: “quem não protege o próprio saco, o que mais há de proteger. Quero levantar-me inteiro”.

Dizer que Zé é marcha lenta é dar-lhe rapidez superlativa, melhor seria afirmar que ele faz tudo devagar ao extremo e sua vida não conhece o significado da palavra pressa. Certamente se encaixaria bem no anedotário popular e não conseguiria tomar conta de dois bichos-preguiça sem que pelo menos um fugisse. Tem todos os predicados para ser baiano, mas é mineiro da gema. Tem a mania de arregaçar as calças quando se assenta. Antes de descer o traseiro em busca da acomodação do assento, ampara-se, põe um dos pés na base do banco, leva as mãos à bainha da calça e a arregaça, sem afobação, primeiro a perna direita, depois..., trocando vagarosamente de ordem..., a esquerda. Repete esse ritual meticuloso e busca nele a perfeição. Candinho poderia citar Fernando Pessoa, se dele tomasse fé, para justificar tanto esmero: “Dê tudo de ti no mínimo que fizeres”, e bota mínimo nisso! Zé faz questão absoluta, uma obsessão, de que as três dobras que dá em cada perna das calças tenham larguras idênticas. A tarefa que seria simples complica-se, pois além da simetria entre as pernas, Candinho se desafia, por razões extra razão, quer o vinco perfeito. Poderia passar uma vida com os pés cobertos de bicho, mas não consegue dar um passo com calças mal arregaçadas. Para tanto zelo, tem ditado próprio e vulgar: “homem de brio e tesão não deixa a calça se arrastar no chão".

Zé não tem moradia certa, hospeda-se na casa de alguma alma caridosa que o acolhe. Carrega na ponta da língua uma defesa inquestionável contra as donas de casa que costumam criticar a sua doentia preguiça: “As escrituras sagradas já previam a minha existência: sou como os pássaros, não planto nem colho, mas como do bom e do melhor”, argumento infalível para senhoras devotas, como são as do lugar. Mas não se pode dizer que tenha passado a vida em brancas nuvens, quando jovem, Candinho tinha forças para o trabalho, pagava o pernoite com tarefas leves: rachava lenha, descascava milho, punha o sabugo ao sol e ajuntava gravetos no quintal. Mesmo naqueles tempos, já tinha um pequeno defeito: cochilava no trabalho. Quando as tarefas eram no paiol de milho, não resistia à tentação de uma cama de palha, pegava sono pesado. Muitas vezes era flagrado a madornar minutos depois de entrar no paiol para descascar ou debulhar milho.
Candinho não sabe, mas é socialista puro: quer receber segundo suas necessidades e contribuir segundo suas possibilidades, estas mínimas e aquelas máximas. Gosta do bom e do melhor, mas, em troca, tem pouco a oferecer. Essa indisposição para o trabalho tem aumentado com os anos e já devia tê-lo feito mendigo, mas há nele uma aparência de carência, quase inocente, que desperta a bondade humana e faz com que alguns fazendeiros o protejam. Zé faz emergir o melhor nos que já são melhores. Vive de casa em casa num rodízio casual que garante sua sobrevivência, pois ao sacrificar ora um, ora outro,  acaba por distribuir o peso de sua presença entre os bons que o acolhem. Alguns meses na Casa de Juquinha do Moreira, outros na casa de Sotero, de Sodiga e de tantos outros, e a vida vai passando. Ninguém fica mais pobre por ajudá-lo, alguns até mais ricos, e todos, com certeza, mais felizes. Na casa de Sodiga, que mora na Vargem, há muito trabalho, Candinho agasta-se com o clima dessa fazenda, é frio, bom para ficar poucos dias e de preferência quando não há colheita nem plantio.

Candinho tem humor inato e não preenche expectativas. Tal imprevisibilidade aparece até na maneira de coçar o queixo com movimentos largos, desnecessários e lentos. Tudo nele leva ao riso. É versátil, sabe assoviar como ninguém e usa recursos pouco ortodoxos, como o de dividir o sopro com uma palha de milho do que consegue tirar um incrível som de dobrado capaz de empolgar uma pequena plateia, quase cativa, que sempre está a rodeá-lo nas vendas, nas praças públicas, nos bailes de roça e até nos velórios. Quando dispõe de público maior, cobre um pente com um papel fino e sopra contra ele imitando gaita de boca com perfeição. É vaidoso de suas habilidades artísticas e, sempre que rogado, atende ao público. Diz que detesta molecagem e prefere plateias mais selecionadas, dessas que sabem apreciar um dom e que elogiam e dão uns trocados para pinga. A danada da cachaça... toma só quando está no povoado em temporada de festas. Ainda bem que as festas são poucas, porque bêbado é um sal amargo: risadas esganiçadas, boca suja, braçadas ao ar, nenhum respeito a idosos e mulheres, vomita o que comeu e o que pensa.

Machado, como algumas vezes é chamado, é uma fábrica de tiradas que ficarão na história do lugar e algumas podem ser classificadas como humor fino, como aquela em que perguntado sobre seu prato predileto respondeu: "No Brasil prefiro frango com quiabo". Depois resistiu à chacota dos mal-humorados com uma explicação que aumentou o contrassenso: “Tem graça! Só porque eu nunca saí de Piraguara! Eu não preciso ficar viajando pra lá e pra cá pra saber do que eu gosto mais no mundo, sou definido. Tem gente que não gosta de quiabo e pronto, mesmo se o quiabo melhorar ou a boca mudar de gosto, eles não vão comer quiabo só porque já decidiram que é ruim, e sempre será”.

Repete, sempre que se vê na situação de bobo, o velho adágio: "Eu finjo de bobo para viver" Quando percebe um ingênuo no meio do povo, e se aquele está a caçoar dele, diz entre insonso e pensativo: “O que seria do bobo do Rei se o Rei não fosse meio bobo”. Isso vira uma verdadeira festa quando todos entendem a indireta menos o “Rei meio bobo”.

Perguntado sobre suas namoradas, lista as moças mais bonitas do lugar. Há indícios de que as solteironas gostam de participar dessa relação e que a disputam como forma de publicidade gratuita. Algumas delas até se submetem a andar de bonde com o Candinho, por alguns metros, como forma de constar da lista. Este footing, que anima a praça de Piraguara nas noites de sábado e domingo, só é patético para quem é pateta, mas o certo é que Candinho se alinha à moça e lá vai ele num passeio fugaz, lado a lado (que por aqui é chamado de andar de bonde), sem conversa, sem olhos nos olhos e sem mão na mão.  Anda apenas alguns metros pareado à dama, mas realizou seu fim de semana.

Candinho, você tomou café com o quê? Resposta: “Tomei café com o simples mesmo”.
Tem fala arrastada e sem pressa que combina bem com a sua indolência. É modelo perfeito para um caipira: fosse contemporâneo de Monteiro Lobato, poderia tê-lo inspirado, e teríamos um Jeca-tatu ainda mais representativo.

É atrevido no trato com as pessoas, mas não tem força nem física nem moral para se fazer respeitado. Sabe agredir com palavras, mas faltam-lhe músculos, então, tem que se sujeitar às brincadeiras de mau gosto. Não tem como resistir quando a rapaziada se organiza para lhe dar tratamento, dito, especial.

Sua cabeça movida a calmaria não suporta o uso de latrinas. Prefere bananeiras onde calmamente pode ficar horas para realizar suas necessidades mais sólidas. Embora tal regalia lhe traga constantes dissabores, pois a meninada logo descobre seu esconderijo e esconde suas roupas bem longe, mantem-se convicto de que é a melhor maneira: “Candinho, por que uma bananeira?” Resposta: “Detesto pressa e ter que me justificar todo tempo e ficar gritando: tem gente!”.

Tem algumas respostas interessantes para perguntas do tipo: “Vamos tomar uma pinga e comer um churrasco lá na cachoeira? “É claro”, responde alegre e continua: “Cê já viu tamanduá bandeira recusar formiga cabeçuda!”

Assim era o Candinho. Mais posso contar, só se for perguntado. E fica o desafio: quem souber e quiser pode postar abaixo, como comentário, algum caso ocorrido com o nosso herói.

4 comentários:

  1. ei, Lulu de Sodiga.

    Adorei saber que você escreve tão bem!

    Sua prima Vânia de Nonô (Nonô de Peixe)

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    1. Obrigado Vânia, vou aprendendo e espero que você continue lendo nossas crônicas, abraço

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