sábado, 16 de outubro de 2010

Memórias da poeira

Lulu de Sodiga


Maio de 1952. Piraguara está em festas, um palanque foi armado em frente da igreja. Os eclesiásticos montaram arquibancadas de bancos de madeira em sua lateral, aproveitando a inclinação do terreno. A praça agora é um pequeno estádio daqueles que têm assentos de um lado só. Tábuas lisas de tanto serem usadas, prova de fé do povo, a esperar muita gente que virá cantar músicas de igreja e ouvir o sempre empolgante sermão do Padre Arlindo.

Um menino, Carlos de Paiva, amante do arraial desde que se entende por gente, está naquela praça. Como tantos, ele é admirador de tudo que se refere ao lugar, a começar pelo nome adotado a partir de 1923, ano em que a capela foi elevada a categoria de freguesia. Há poucos dias, ele tomou conhecimento de que o arraial está se preparando para a emancipação. Há um movimento político para que o distrito seja elevado a categoria de município, os adultos estão falando sobre o nome a ser adotado pela nova unidade do estado, e a maioria quer a volta daquele que havia sido adotado em 1859, Nossa Senhora de Oliveira. Como sempre, há controvérsias, alguns preferem manter o nome atual. Os que conhecem a história do lugar e sabem que o nome se liga às raízes da terra e à alma da gente mais simples tentam convencer os demais.

“A agitação desta praça é só em tempo de festa, fosse dia de semana, isso aqui ficava parado que nem o Macuco” pensa o garoto.

Do lado de baixo da igreja, um gramado exuberante coloca verde, que é sempre mais belo, no lugar da poeira vermelha que cobre as outras ruas. Quem vive aqui já está acostumado e não tem escolha, na seca come poeira, na invernada, atola no barro. Mas agora é Maio, e a lama virou pó.

Carlos vive uma semana feliz, não só pela festa, respira o privilégio de ter um lugar desses pra passear de vez em quando. Criança daqui tem espaço. Ele acredita não ter lugar no mundo melhor para brincar de bacondê, a meninada pode usar a cidade toda como território do esconde-esconde. Nesse jogo, não é muito fácil encontrar o oponente, que pode estar escondido em qualquer matagal do Matombô à rua do Sapo, é muito chão para escarafunchar, muito beco para pouco menino. Pena que as meninas não gostem destes jogos, elas só querem saber de passar anel em salas iluminadas ou de jogar maré no adro da igreja. Carlos acha que as meninas gostam de brincadeiras muito inocentes, quando convidado a participar, ele até vai, mas se dá ao desfrute de ter segundas intenções.

Carlos não sabe nadar, mas está sempre acompanhando a turma que gosta de tomar banho no “Corgo Fundo”. Apesar de o poço ser a poucos metros da praça, ali todo mundo fica pelado e dá a mínima importância ao fato de estar nu. Ele, algumas vezes, é encarregado de tomar conta das roupas, para evitar, o que frequentemente ocorre, que algum gaiato as leve para longe, ou as esconda no meio de um espinhento gravatá.

Quando a praça fica movimentada, Carlos achega-se à barraca do Zé Santana para observar o comércio e os transeuntes. O ambulante usa um veículo-bazar meio esquisito, um cômodo de madeira com rodas de pau. Carlos nunca viu aquela geringonça em movimento, até duvida que ande, mas para ele o que interessa é o conteúdo: brinquedos, balas, enfeites, pentes de chifre e espelhos com estampa de time de bola. Como são belas as flâmulas do Vasco.

Nesta festa, a praça está toda tomada de barraquinhas. Bandeirolas de papel de seda cobrem os pontos de maior animação. A oferta de miudeza é grande. A garotada baba por qualquer bagatela. Os mais simples enfeites despertam fantasias que só os pequenos conseguem ter. Aqui e ali, veem-se meninos e meninas paralisados pela visão de brinquedos coloridos, bonecas bem vestidas, carrinhos de plástico.

— Papai, eu quero dez tostões pra comprar aquele canivete – a voz é de um ruivo, bem pequenininho, dirigindo-se ao pai que mal lhe dá atenção.

—Mamãe, por favor! Aquela bonequinha é barata demais, me dá uma, me dá! — grita uma menina embirrada.

—Seu Zé, o senhor faz um desconto de cinco tostões? — agora quem fala é a mãe, com aparência de vencida. O pai, um pouco atrás, já apalpa a carteira, sua cara de pão-duro é cortada por sulcos de reprovação.

—Faço Sá Maria, faço — Responde o sempre alegre Zé Santana. A cara do pão-duro se definiu, agora, os cantos da boca curvam-se levemente para baixo, resignou-se frente ao inevitável gasto.

Acima da barraca, que está estacionada perto da saída para Piranga, fica a casa paroquial. Um pouco a frente, um menino de chapéu de palha corre atrás de um cavalo que passa em disparada. Mais alguns metros, o caramanchão, onde as meninas gostam de namorar, belas trepadeiras adornadas por buganvílias e rosas.

De vez em quando, Carlos vai jogar dama com o Padre José, mas desconfia que o reverendo, se entende de damas, dever estar escondendo o jogo, pois como explicar que até um pirralho, como o Geraldo, ganhe dele. Este, o Geraldo, é mesmo esquisito, como afilhado do vigário devia dar exemplo, mas é sempre o primeiro a levar tapa na cabeça, quando a turma ri na Igreja. Mas, nisso, ele não está só, todo garoto desta paróquia, pelo menos uma vez na vida, levou um safanão do Vigário, parece que ele age como se fosse um segundo pai e se sente na obrigação de ajudar as mães a educarem estes capetinhas. Ademais, estes meninos do povoado são mesmo patetas e estão sempre a rir de coisas sem a menor graça, qualquer insignificância, quando acontece na igreja, vira a maior piada do mundo. Basta que um olhe pra cara do outro que já desandam o riso, chegam a perder o fôlego. Os marmanjos também sofrem deste mal. Outro dia, no meio da missa, o padre, incomodado com um barulho infernal que vinha de fora da igreja, voltou-se para os fiéis e disse:

— Vocês não estão ouvindo esta sanfona tocando? Por favor! Alguém vai lá fora e peça ao sanfoneiro pra parar de tocar.

Foi então que o Berto gritou lá do meio da igreja:

— Isso não é sanfona não seu Padre! Isso é buzina de caminhão! — Só por isso, o povo caiu na gargalhada, por alguns segundos a igreja parecia um circo. Quem estava perto do altar viu que até o reverendo, sempre tão sério, esboçou um leve sorriso.

Neste mundo tem gente esquisita demais. Outro dia, Carlos ouviu dois homens dizendo que não gostavam do arraial só porque sua luz era pior que lamparina e que o lugar era muito quieto. Ai o Carlos pensou: ”Bobos e exigentes, deviam conhecer a Casinha, lá nem luz tem, e movimento então!” Perto de lá, isto aqui é uma babel. Nesta Missão, ainda não apareceu algum alienado de carteirinha, nem mesmo o simplório do Candinho está no arraial, deve estar doente. Carlos pensa: “Cadê o Gustin Norato e a Sá Marilia?”. Na festa anterior, chegou aqui um tal de Juca do Lamim, o homem é engraçado, anda com as pernas presas, quando caminha costuma perder o equilíbrio, e, se o terreno é a pique, ele tem que correr para não cair. E este tal é perigoso, repete tudo que lhe dizem, age como papagaio, tem memória boa, mas não sabe pensar. Os maldosos colocam em sua cabeça os maiores disparates, coisas absurdas. Depois, sem critério ou freio, ele simplesmente solta o que gravou na presença de qualquer um, basta colocar um papel em branco, ou um jornal velho em suas mãos e pedir que leia. Ele abaixa a cabeça, olha para o papel e dá descarga na memória. Não são poucas as vezes em que um inocente vê o nome da própria mulher, ou da mãe na boca daquele néscio, isso sem nenhuma razão. Sabe-se que lá em Rio Espera, um marido ciumento bateu na mulher por causa das intrigas feitas a partir deste pobre.

Carlos, apesar de novo, é observador, já percebeu que os que ficam zanzando na praça não moram no povoado, são da roça, como ele. O Padre convoca e todo mundo vem pra Rua, de patrões a empregados, não há exceção, as fazendas ficam vazias. A Igreja é respeitada. O menino não entendeu bem, mas dever ser coisa boa, aquilo que ouviu da boca do Amantino, quando este elogiava a obediência do povo:

— Nosso Padre é secular— foi o que disse e repetiu com ares de quem sabia o que falava.

As festas de igreja são a alegria dos da terra, não há outra forma de socialização. A exceção fica por conta de João Pedro da Vargem que vem no primeiro dia e sempre de caminhão, todos chegam de véspera em carros de boi, charretes e a cavalo. Trazem colchões, panelas, cachorro, papagaio e alimentos. É preciso bastantes mantimentos, pois vão ficar uma semana à-toa, sem a menor preocupação. Gente sem serviço e feliz come mais, é o que diz Felipe Tareco, aquele do beiço avantajado.

Quem pode tem uma casa na Rua só pra essas ocasiões. Desta vez, a família de Carlos veio pra ficar a semana toda. Todos estão dormindo na casa da avó. Ele adorou, nesta mesma casa estão arranchados seus três tios e a filharada, meninos e meninas, todos na sua faixa de idade, de sete a dez anos. “Isso é o paraíso!”, Pensa ele, “de dia a rua enfeitada, banda de música e o povo alegre, de noite, depois do foguetório, pipocas, broa de fubá, brincadeiras de casinha com as primas, guerra de travesseiros e farra até tarde.

Fim de festa. Tristeza. Êxodo. Manhã de frio intenso. Uma fila de carros de boi preenche as estradas em todas as direções, suas rodas cantam para embalar a tristeza de Carlos. Ele segue de cabeça baixa, mas a levanta quando passa pela bica do Xandi Fidelis, quer dar uma última espiada. Seu pai, como sempre faz quando passa por ali, tira o chapéu. Nunca disse o porquê desse gesto, mas o menino sabe, é de gratidão para com a natureza, o velho respeita aquela água cristalina que lava os pés de quem chega ao arraial (vêm descalços até ali, e entram na cidade de pés limpos).

A Rua fica para trás. Aos poucos, o cheiro de povoado esmaece, e a torre da igreja some na paisagem, então, alguém grita no carro da frente:

—Hein gente! Vamos pisar firme no orvalho! Ano que vem tem mais!

Um sorriso ilumina a face do menino. Ano que vem tem mais.

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