(Trecho do livro Os Berdamerdas)
Por Lulu
A neblina
mal se dissipara naquela fria manhã, havia ainda muito orvalho nas margens do
ribeirão e nas dobras das encostas que circundavam o arraial de Piraguara. Um
sol preguiçoso, quase apagado, levantava-se por trás das terras do patrimônio
da Igreja. Um cavalo a galope, vindo dos lados de Brás Pires, atravessou a
ponte da Rua do Sapo e entrou no arraial. O tropel sobre a plataforma de
madeira ecoava longe sem encontrar resistência de ventos contrários e sem se
misturar e
confundir-se com outros ruídos; a maioria dos moradores dormia, alguns
levantaram a cabeça e resmungaram — que diabo é isso, a essa hora! — mas logo
buscaram o travesseiro e esqueceram-se do pequeno estorvo. O cavaleiro de cútis
branca, baixa estatura e de olhos claros parecia ter pressa, mas manteve o
hábito de distribuir cumprimentos efusivos para os minguados transeuntes,
madrugadores que se encontravam na rua àquela hora:
— Bom dia
berdamerda! Como vai? Tudo bem?
Em questão
de minutos, o cavaleiro percorreu a rua comprida que deságua numa grande praça,
onde um casarão cedia um dos cômodos do andar de baixo para o funcionamento do
cartório distrital. Apeou, atravessou o passeio que se estende por toda a
fachada da casa e entrou no pequeno cômodo de uma porta só, parou junto à grade
de madeira colonial, que impedia o visitante de entrar na parte reservada aos
oficiais, e, finalmente, dirigiu-se ao ajudante de escrivão:
— Bom dia
berdamerda! Você continua com essa mania de pegar serviço cedo?
O ajudante
de escrivão olhou-o de soslaio, com olhos inchados de mal dormir, ressaca
acumulada de muitas noites mal bebidas e cachaças mal dormidas, e, agindo como
quem já se acostumara à irreverência no cumprimento daquele cavalheiro,
perguntou:
— Então,
nasceu mais um bacuri por lá?
O homem,
que acabara de entrar, respondeu sem se ofender com a maneira desrespeitosa com
que o barnabé se referia ao filho recém-nascido e disse:
— É,
nasceu. Pelo jeito, você anda a espiar a barriga de nossas mulheres. Será que é
pressa de ganhar nosso rico dinheiro no registro das crianças ou é só a feia
mania de cuidar das crias alheias? — E continuou, sem se importar em atravessar
o assunto, sinal de que nem ligava muito para o que acabara de dizer.
— Não se
engane, este vai ser um grande homem!
— Grande
nessa família de baixinhos? Acho difícil. Alfenas, alto? É mais fácil galinha nascer dente.
Garcez
retrucou: — Por acaso eu disse que ele seria um homem grande, ou você não entende
a diferença entre um grande homem e um homem grande?
Depois de
proferir aquele abuso quase cordial, o barnabé ajeitou-se em sua cadeira
surrada enquanto pensava no que acabara de ouvir; não entendia bem a diferença,
mas deixou pra lá. Buscando melhor posição,
curvou-se como um arco sobre o livro de nascimentos que descansava sobre a
mesa. Voltou-se enquanto falava para o pai da criança:
— Tem nome?
— É claro!—
Respondeu Garcez e completou com ênfase: — Vai se chamar Edgard Alfenas, com d
mudo no final, entendeu? Não deixe de anotar esse “d” no final. Não quero filho
meu com nome sem rabicho certo por causa de sua ortografia fajuta.
O ajudante
de escrivão olhava-o nos olhos enquanto, em tom mais sério ainda, atiçava o
fogo da indelicadeza que entre eles parecia natural:
— Não sei o
que dá na cabeça de vocês dessas roças, inventando nomes difíceis, por que não
chamar o menino de José, Antônio, ou outro nome mais comum? Por que não dar um
nome religioso ao novato?
Garcez
chateou-se com o enjoado do ajudante de escrivão e tornou-se ríspido:
— Você não
passa mesmo de um João-ninguém. Primeiro, que lá em casa já nasceram o José e o
Antônio; segundo, não há lei que me proíba de dar os nomes que quero aos meus.
Então, feche essa matraca e vai anotando aí!
O ajudante
sentiu que o limite da tolerância e da aceitação de insolência estava nas
bordas, deu sequência às perguntas de praxe e, a cada resposta, atolava a
caneta tinteiro numa pequena vasilha e a tirava, sem respingos, exibindo-se
para chamar a atenção sobre sua boa caligrafia:
— Pai:
Garcez Glória Alfenas; Mãe: Adelina Maria da Encarnação; avós paternos: Eliziário Glória
Alfenas e Tereza Tranquilina do Amor Divino; avós maternos: João Bonifácio Rodrigues Pereira e Isabel Maria Januária. Data de Nascimento: 20 de junho de
1909; cútis: branca; olhos: azuis; local de Nascimento: Felipe Alves, no
distrito de Piraguara; Comarca de Piranga, registrado pelo pai, Garcez Glória
Alfenas.
Terminado o
protocolo, o ajudante de escrivão, num gesto inesperado de explícita
cordialidade, dirigiu-se a uma prateleira dos fundos do cômodo, retirou um charuto
de uma caixa de madeira bem acabada e o ofereceu ao cliente:
— Toma, mas
vê se não se acostuma, não é todo dia que eu gasto um importado com um amigo e,
ademais, nossa velha Oliveira de Piranga não precisa de tantas crianças.
Garcez
agradeceu a gentileza com um gesto de mesura, pediu emprestada ao ajudante de
escrivão sua binga, tirou lasca na pedra até produzir a faísca necessária para
que o chumaço de algodão pegasse fogo, assoprou para avivar a combustão que se espalhava sobre a pequena
almofada do acendedor, apertou ali a ponta do charuto, tirou uma baforada e
abriu um largo sorriso enquanto dizia:
— Charuto
bom! Agora sim, estou reconhecendo o dedo de meu velho amigo Cardoso por trás
de sua contratação como ajudante de cartório, muito obrigado mesmo! Depois eu o
recomendo ao chefe.
Mesmo neste
momento de maior agrado, o ajudante não deixou de resmungar:
— E eu preciso lá de recomendação para me
manter numa porcaria de emprego desses!
Garcez não ouviu
bem o que ele dizia. Pitou mais um pouco, por cortesia com o barnabé, preferia
cigarros de palha. Apagou o charuto no
tampo de uma velha viola que, encostada à parede, ali se postava há anos sem
serventia alguma. Pensou: “pelo menos pra isso serve essa diabinha!”.
Despediu-se do barnabé e saiu em direção à casa paroquial. Andou alguns passos
e viu o Padre José Afonso Painhas que vinha em direção oposta com os olhos
fixos no breviário aberto. Absorto na leitura do dia, o vigário parecia não
vê-lo: cabeça baixa, passos largos, iria atropelá-lo caso não se anunciasse:
— Padre...
Padre!... O senhor pode me dar sua atenção por alguns segundos.
Disse em
tom de desculpas por interromper o ofício do sacerdote. O Padre fechou o
pequeno livro de capa escura, deixando a língua vermelha do marcador a indicar
onde retornar à leitura. Garcez observou que na capa havia uma gravação: Líber
Missae et officci. O sacerdote pediu
tempo:
—Estou
lendo as Matinas, meu filho. Dê-me apenas alguns minutos que o atendo.
Garcez
acenou que esperaria e aguardou uns dez longos minutos enquanto o padre ia e
vinha sobre o passeio na frente da casa. Reparou no caramanchão que o padre mantinha rente ao passeio de
sua casa. Trepadeiras alastravam-se nos ripados laterais. Um pé de buganvília
fazia sombra nos bancos dispostos em cada um dos três lados internos e cobria
todo o quadrado do caramanchão. Ao contrário dos balcões que se abrem para o
lado da rua, esse se abria para o lado do passeio, pois fora feito para servir
ao reverendo que nele sempre chegava pelo passeio, sem pisar na poeira ou no
barro da rua. Era ali que nos dias mais quentes o padre se assentava para a
leitura da tarde.
Logo que
terminou a sua cota de leitura da manhã, lá veio o Padre com a cara feliz de
menino que acabara de fazer o dever de casa, caminhou ao encontro de Garcez e
se prontificou a atendê-lo:
— Então,
meu filho, veio marcar o batizado?
Garcez
pensou: “mais um berdamerda que sabe tudo da barriga de nossas mulheres”, mas,
como mantinha distanciamento e reverência à autoridade eclesiástica, limitou-se
a dizer:
— Pois
então, a família está crescendo e vim mesmo a esse propósito, gostaria que
fosse o mais rápido possível. Não que o menino esteja doente e corra o risco de
frequentar o limbo mais cedo, mas eu prefiro resolver isso logo, ficar em dia
com as obrigações da religião. Minha esposa, o senhor sabe, a Adelina, é ela
que se preocupa muito com esta questão, está sempre a lembrar-me de que se uma
criança morre sem o sacramento do batismo, ela fica vagando no escuro. Ela diz
que mesmo a criança inocente nasce com o pecado original, e só o batismo pode
livrá-la desta herança pegajosa e pode habilitá-la para o esplendor do céu. O
pior é que minha mulher vê essas conjeturas religiosas como se fossem verdades
absolutas, mas eu não a culpo, está no sangue da família dela, os Rodrigues
Pereira sempre foram muito católicos, e nós, dos Alfenas, seguimos a religião,
mas sem esse fervor todo.
Apesar do
pouco fervor dos Alfenas, o vigário parece ter gostado do que ouviu, pois se
tornou cordial e professoral:
— Meu
filho, é isso mesmo, o nosso papa Pio X tem nos chamado a atenção para que
facilitemos o convívio dos fieis com a igreja, e que devemos levar os
sacramentos a todos, inclusive a comunhão. Esse pensamento vem ao encontro das
boas intenções que o senhor e sua boníssima esposa demonstram. E tem mais, essa
questão do limbo é difícil mesmo de ser entendida e nunca foi dogma, o nosso
rebanho é que floreia muito essa coisa. Deus não há de ser ruim para uma pobre
criança, mesmo que morra sem o batismo.
Garcez
havia puxado o assunto, mas não desejava uma explicação teológica, queria
objetividade, pois tinha compromissos inadiáveis no Felipe Alves: não havia
tirado leite nem tratado dos porcos, e disse:
—Reverendo,
será que podemos marcar para o próximo domingo? Assim, quem nasceu no domingo,
no domingo se batiza.
O padre
concordou e fez as anotações de praxe, ficando acertado que o batizado seria
depois da missa das oito.
Além de muito bem esplanada, a narrativa traz o comportamento de cada personagem coerente com a época
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