domingo, 12 de julho de 2020

Bom dia Berdamerda!


 (Trecho do livro Os Berdamerdas) 
Por Lulu

A neblina mal se dissipara naquela fria manhã, havia ainda muito orvalho nas margens do ribeirão e nas dobras das encostas que circundavam o arraial de Piraguara. Um sol preguiçoso, quase apagado, levantava-se por trás das terras do patrimônio da Igreja. Um cavalo a galope, vindo dos lados de Brás Pires, atravessou a ponte da Rua do Sapo e entrou no arraial. O tropel sobre a plataforma de madeira ecoava longe sem encontrar resistência de ventos contrários e sem se misturar e confundir-se com outros ruídos; a maioria dos moradores dormia, alguns levantaram a cabeça e resmungaram — que diabo é isso, a essa hora! — mas logo buscaram o travesseiro e esqueceram-se do pequeno estorvo. O cavaleiro de cútis branca, baixa estatura e de olhos claros parecia ter pressa, mas manteve o hábito de distribuir cumprimentos efusivos para os minguados transeuntes, madrugadores que se encontravam na rua àquela hora:
— Bom dia berdamerda! Como vai? Tudo bem? 
Em questão de minutos, o cavaleiro percorreu a rua comprida que deságua numa grande praça, onde um casarão cedia um dos cômodos do andar de baixo para o funcionamento do cartório distrital. Apeou, atravessou o passeio que se estende por toda a fachada da casa e entrou no pequeno cômodo de uma porta só, parou junto à grade de madeira colonial, que impedia o visitante de entrar na parte reservada aos oficiais, e, finalmente, dirigiu-se ao ajudante de escrivão:
— Bom dia berdamerda! Você continua com essa mania de pegar serviço cedo?
O ajudante de escrivão olhou-o de soslaio, com olhos inchados de mal dormir, ressaca acumulada de muitas noites mal bebidas e cachaças mal dormidas, e, agindo como quem já se acostumara à irreverência no cumprimento daquele cavalheiro, perguntou:
— Então, nasceu mais um bacuri por lá?
O homem, que acabara de entrar, respondeu sem se ofender com a maneira desrespeitosa com que o barnabé se referia ao filho recém-nascido e disse:
— É, nasceu. Pelo jeito, você anda a espiar a barriga de nossas mulheres. Será que é pressa de ganhar nosso rico dinheiro no registro das crianças ou é só a feia mania de cuidar das crias alheias? — E continuou, sem se importar em atravessar o assunto, sinal de que nem ligava muito para o que acabara de dizer.
— Não se engane, este vai ser um grande homem!
— Grande nessa família de baixinhos? Acho difícil. Alfenas, alto?  É mais fácil galinha nascer dente.
Garcez retrucou: — Por acaso eu disse que ele seria um homem grande, ou você não entende a diferença entre um grande homem e um homem grande?
Depois de proferir aquele abuso quase cordial, o barnabé ajeitou-se em sua cadeira surrada enquanto pensava no que acabara de ouvir; não entendia bem a diferença, mas deixou pra lá.  Buscando melhor posição, curvou-se como um arco sobre o livro de nascimentos que descansava sobre a mesa. Voltou-se enquanto falava para o pai da criança:
— Tem nome?
— É claro!— Respondeu Garcez e completou com ênfase: — Vai se chamar Edgard Alfenas, com d mudo no final, entendeu? Não deixe de anotar esse “d” no final. Não quero filho meu com nome sem rabicho certo por causa de sua ortografia fajuta.
O ajudante de escrivão olhava-o nos olhos enquanto, em tom mais sério ainda, atiçava o fogo da indelicadeza que entre eles parecia natural:
— Não sei o que dá na cabeça de vocês dessas roças, inventando nomes difíceis, por que não chamar o menino de José, Antônio, ou outro nome mais comum? Por que não dar um nome religioso ao novato?
Garcez chateou-se com o enjoado do ajudante de escrivão e  tornou-se ríspido:
— Você não passa mesmo de um João-ninguém. Primeiro, que lá em casa já nasceram o José e o Antônio; segundo, não há lei que me proíba de dar os nomes que quero aos meus. Então, feche essa matraca e vai anotando aí!
O ajudante sentiu que o limite da tolerância e da aceitação de insolência estava nas bordas, deu sequência às perguntas de praxe e, a cada resposta, atolava a caneta tinteiro numa pequena vasilha e a tirava, sem respingos, exibindo-se para chamar a atenção sobre sua boa caligrafia:
— Pai: Garcez Glória Alfenas; Mãe: Adelina Maria da Encarnação; avós paternos: Eliziário Glória Alfenas e Tereza Tranquilina do Amor Divino; avós maternos: João Bonifácio Rodrigues Pereira e Isabel Maria Januária. Data de Nascimento: 20 de junho de 1909; cútis: branca; olhos: azuis; local de Nascimento: Felipe Alves, no distrito de Piraguara; Comarca de Piranga, registrado pelo pai, Garcez Glória Alfenas.
Terminado o protocolo, o ajudante de escrivão, num gesto inesperado de explícita cordialidade, dirigiu-se a uma prateleira dos fundos do cômodo, retirou um charuto de uma caixa de madeira bem acabada e o ofereceu ao cliente:
— Toma, mas vê se não se acostuma, não é todo dia que eu gasto um importado com um amigo e, ademais, nossa velha Oliveira de Piranga não precisa de tantas crianças. 
Garcez agradeceu a gentileza com um gesto de mesura, pediu emprestada ao ajudante de escrivão sua binga, tirou lasca na pedra até produzir a faísca necessária para que o chumaço de algodão pegasse fogo, assoprou para avivar a combustão que se espalhava sobre a pequena almofada do acendedor, apertou ali a ponta do charuto, tirou uma baforada e abriu um largo sorriso enquanto dizia:
— Charuto bom! Agora sim, estou reconhecendo o dedo de meu velho amigo Cardoso por trás de sua contratação como ajudante de cartório, muito obrigado mesmo! Depois eu o recomendo ao chefe.
Mesmo neste momento de maior agrado, o ajudante não deixou de resmungar:
 — E eu preciso lá de recomendação para me manter numa porcaria de emprego desses!
Garcez não ouviu bem o que ele dizia. Pitou mais um pouco, por cortesia com o barnabé, preferia cigarros de palha.  Apagou o charuto no tampo de uma velha viola que, encostada à parede, ali se postava há anos sem serventia alguma. Pensou: “pelo menos pra isso serve essa diabinha!”. Despediu-se do barnabé e saiu em direção à casa paroquial. Andou alguns passos e viu o Padre José Afonso Painhas que vinha em direção oposta com os olhos fixos no breviário aberto. Absorto na leitura do dia, o vigário parecia não vê-lo: cabeça baixa, passos largos, iria atropelá-lo caso não se anunciasse:
— Padre... Padre!... O senhor pode me dar sua atenção por alguns segundos.
Disse em tom de desculpas por interromper o ofício do sacerdote. O Padre fechou o pequeno livro de capa escura, deixando a língua vermelha do marcador a indicar onde retornar à leitura. Garcez observou que na capa havia uma gravação: Líber Missae et officci.  O sacerdote pediu tempo:
—Estou lendo as Matinas, meu filho. Dê-me apenas alguns minutos que o atendo.
Garcez acenou que esperaria e aguardou uns dez longos minutos enquanto o padre ia e vinha sobre o passeio na frente da casa. Reparou no caramanchão que o padre mantinha rente ao passeio de sua casa. Trepadeiras alastravam-se nos ripados laterais. Um pé de buganvília fazia sombra nos bancos dispostos em cada um dos três lados internos e cobria todo o quadrado do caramanchão. Ao contrário dos balcões que se abrem para o lado da rua, esse se abria para o lado do passeio, pois fora feito para servir ao reverendo que nele sempre chegava pelo passeio, sem pisar na poeira ou no barro da rua. Era ali que nos dias mais quentes o padre se assentava para a leitura da tarde.
Logo que terminou a sua cota de leitura da manhã, lá veio o Padre com a cara feliz de menino que acabara de fazer o dever de casa, caminhou ao encontro de Garcez e se prontificou a atendê-lo:
— Então, meu filho, veio marcar o batizado?
Garcez pensou: “mais um berdamerda que sabe tudo da barriga de nossas mulheres”, mas, como mantinha distanciamento e reverência à autoridade eclesiástica, limitou-se a dizer:
— Pois então, a família está crescendo e vim mesmo a esse propósito, gostaria que fosse o mais rápido possível. Não que o menino esteja doente e corra o risco de frequentar o limbo mais cedo, mas eu prefiro resolver isso logo, ficar em dia com as obrigações da religião. Minha esposa, o senhor sabe, a Adelina, é ela que se preocupa muito com esta questão, está sempre a lembrar-me de que se uma criança morre sem o sacramento do batismo, ela fica vagando no escuro. Ela diz que mesmo a criança inocente nasce com o pecado original, e só o batismo pode livrá-la desta herança pegajosa e pode habilitá-la para o esplendor do céu. O pior é que minha mulher vê essas conjeturas religiosas como se fossem verdades absolutas, mas eu não a culpo, está no sangue da família dela, os Rodrigues Pereira sempre foram muito católicos, e nós, dos Alfenas, seguimos a religião, mas sem esse fervor todo.
Apesar do pouco fervor dos Alfenas, o vigário parece ter gostado do que ouviu, pois se tornou cordial e professoral:
— Meu filho, é isso mesmo, o nosso papa Pio X tem nos chamado a atenção para que facilitemos o convívio dos fieis com a igreja, e que devemos levar os sacramentos a todos, inclusive a comunhão. Esse pensamento vem ao encontro das boas intenções que o senhor e sua boníssima esposa demonstram. E tem mais, essa questão do limbo é difícil mesmo de ser entendida e nunca foi dogma, o nosso rebanho é que floreia muito essa coisa. Deus não há de ser ruim para uma pobre criança, mesmo que morra sem o batismo.
Garcez havia puxado o assunto, mas não desejava uma explicação teológica, queria objetividade, pois tinha compromissos inadiáveis no Felipe Alves: não havia tirado leite nem tratado dos porcos, e disse:
—Reverendo, será que podemos marcar para o próximo domingo? Assim, quem nasceu no domingo, no domingo se batiza.
O padre concordou e fez as anotações de praxe, ficando acertado que o batizado seria depois da missa das oito.

Um comentário:

  1. Além de muito bem esplanada, a narrativa traz o comportamento de cada personagem coerente com a época

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