terça-feira, 8 de novembro de 2016

Era uma vez no pé do morro.

      
Por Lulu

Dedico este texto ao meu irmão que não gosta de  falar batata. 

Era uma vez no pé do morro, havia um rancho: casinha simples e arejada, num lugar bonito como quê! Suas paredes, pintadas de branco encardido, eram de pau-a-pique.  Tinha dois andares na parte da frente e, seguindo a inclinação do terreno e a arquitetura da região, apenas um pavimento na parte de traz, onde ficavam a cozinha e a despensa. Os quartos de dormir ficavam na parte mais alta da construção. A latrina era fora da casa, nos fundos da horta, e resumia-se numa casinha com um buraco no piso de madeira sobre um filete de água corrente que levava os dejetos para o ribeirão; pouca água, mas suficiente para arrastar o que nela conseguisse flutuar, e não era pouca coisa. Do lado da cozinha, a oeste, estendia-se uma esplêndida vargem, onde se entrecortavam estradas e trilhos. Aí iniciaram-se os acontecimentos aqui narrados, cujos diálogos foram escritos no “dialeto” da região, que ali era falado pelo início do século XX, embora as personagens reais não o usassem, o caso aconteceu mais ou menos como relatado. Adotamos essa linguagem para não tirar a beleza e graça do modo como nossa gente fallava. Sendo nossa geração muito próxima daquele tempo e daquele dialeto, podemos ainda compreender o que dizem — caso você, leitor, não entenda alguma palavra, pode inserir seu comentário no rodapé da postagem que responderemos. Aliás, os comentários prestam-se a qualquer impressão ou discordância, somos democráticos e sabemos levar desaforos pra casa (desde que não sejam muitos e impessoais) e estamos sempre aprendendo com os etc. —.

 Assim nivelados, vamos ao causo: 

— Sai da jinela minino, cê vai constipá! Sai já daí!

Disse uma preocupada  mãe  ao seu caçula, que não ligou para a censura e continuou na janela  a olhar na direção da várgea. Mas ao contrário de outras roças, o silêncio ali durava pouco.

— Mãe, óia lá, parece que vem vino uma mué lá na varge, ela já passou pela porteira e entrou na nossa estradinha. Qué vê? — disse o caçulinha apontando o dedo sujo de carvão para a várzea em frente.  

A virtuosa mãe hesitou antes de abrir mão do calor do fogão e arredar-se da chaleira onde fervia água para o  café, mas finalmente cedeu ao apelo do menino.  Abandonou seu céu de picumã, atravessou a cozinha, chegou até o filho encostado na janela,  debruçou-se sobre  o peitoril de madeira e pode, finalmente,  ver que ao longe um borrão contaminava o verde daquele paraíso, então, disse: 

— Fio, num é que parece mêmo uma mué! A esta hora do dia, quem há de sê? É cedo para visita, mas tarde pra arguma neguinha vim pedí leite. Nove hora da manhã; nesta tardura, todo mundo sabe que nóis já tirou leite das vaca e éas já  tão no bem bão do capim gordura.

E completou:

— Quédi a Filó? Êta minina artiosa,  não  para, nem dentro, nem fora de casa.

Uma risadinha estridente, marca de inocência, bondade e da alegria de viver, vinha se avivando dos lados do terreiro da cozinha e, como sempre, anunciava a chegada da menina Filó.

A educadora dona da casa, que já havia colocado o coador no mancebo enquanto se preparava para passar o café,  repreendeu a menina: 

— Buraca! Sempre que preciso de ocê, ocê demora a aparêcê; onde cê tava?

— Uai! A Sinhora num sabe. Eu fisse o qui a Sinhora pidiu. Fui lá na casa do seu Ôrico —  respondeu a humildade em pessoa.

— Quê cê foi cheirá lá? Disse a gloriosa  senhora e esboçou um sorriso sinalizando que estava brincando, mas a menina levou a sério:

— Ué! Banzerando é que eu num tava, fui buscá os ovo que a sinhora emprestou pra mué dele, a Sinhaninha. Fisse como a sinhora mandou.

— Mandei í e vortá, não era pra arranchá lá!

Com essas palavras, que expressavam mais aflição do que  vontade de corrigir a pobre criada, a dona de casa deu por encerrada a   admoestação, pois  agora tinha tarefa importante para ela.

Precavida, como devem ser as criaturas que vivem em locais ermos sob a guarda de Deus, que nem sempre intervém, e onde o vizinho mais próximo fica a mais de légua, a jovem dona de casa mandou a menina investigar: 

—  Filó, ocê dá um pulinho lá na estrada. Vai num pé e vorta noutro. Num fica remanchando. Vê que arma deste fim de mundo vem lá. Não se achegue muito perto dela, nóis num deve de dá confiança nem trela pra vadios de estrada. 

A diligente e gloriosa ajudante, ligeira no passo e esperta no tino, atravessou a cozinha, desceu o terreiro lateral, passou entre o paiol de milho e o esteio de braúna do sobrado e saiu no curral de leite, na frente da casa — um atoleiro de bosta e urina de vaca —, e de lá ganhou a estradinha para a indagação do quem-vem-lá. Nesse entrementes, a mulher que lá vinha ganhara meio caminho, da porteira que fecha as terra da fazenda para a estrada larga até a entrada do curral de leite, e, em passos largos e decididos, chegaria depressa à casa, mas quando viu a menina indo ao seu encontro agarrou de dar umas paradinhas e como uma mula circense bem ensinada dava três pulinhos seguidos por um movimento de jogar alguma coisa para trás. Filó a reconheceu sem precisar se achegar muito; fez meia volta e logo estava, quase sem fôlego, ao lado da patroa. 

— É a Maria Doida, sem tirá nem pô — disse convencida e completou, — Ocês pode esperá que vem encrenca!

— Filó, ocê tem certeza que é ela? — perguntou a patroa. 

— Mais qui certo — respondeu a menina e completou — arguém mais, pressas bandas, anda torcida que nem taboa em tempo de enchente e com os braço tão balançantes? Ela sacode qui nem  um carro de boi com caruncho no cocão.

 Um dos meninos cochichou alguma  maledicência, cuspindo uma gosma preta no ouvido de outro, mas o apurado ouvido da gloriosa serviçal pode escutar, do miúdo ao graúdo, o que o moleque dizia: 

— Será a tar que mija em pé sem arriá a carcinha? 

Perguntara o maldoso Antônio Timódeo, mesmo antes de a menina informar tudo,  ele mesmo  respondeu sem esperar que ela o fizesse:  

— Não arria nem sunga porque não arriou; só pode sê ela. Acho que por debaixo da saia não tem pano argum. 

O sorriso encalistrado da bondosa Filó confirmou a maneira de vestir daquela mulher e, consequentemente, a identificou. A dona da casa, então, preparou-se para o pior e, na dúvida, foi dar uma boa espiada na janela da sala, de onde se podia avistar com largueza e longe, e arredar todo engano na conhecença de quem vinha; e tomou fé: era mesmo a tal, a maluca vezeira em frequentar sua casa e em lhe trazer todo tipo de aborrecimento.  Só de ajuizar a amolação, amuou-se e foi novamente para a cozinha.  Sabia que aquela entraria por lá, nunca viera pela frente da casa. “ Seja tudo pelo amor de Deus!”, pensou.

A amolação entrou pela porta em que era esperada, a da cozinha, e já vinha ensaiando as lamentações de sempre que, contudo, agora pareciam motivadas por justas razões: 

— Acode eu cumadi! Pelo amor do Eterno!

A dona da casa não deixou o que ainda era sereno virar chuva grossa e, antes que começasse a precipitação de lamúrias,  perguntou: 

— Me adesculpe a má prigunta, por que a senhora vem dano umas paradinhas e uns pulinhos, uns aqui outros acolá?  A senhora tá cumprino promessa pra São Longuinho ou tá só jogano  argum trem para trás?

 Maria doida respondeu rapidamente:

 — Nunca aliguei pra São Longuinho, não tenho nada pra perdê e qui dirá pra achá; tava é jogano pra tráis de minha cacunda umas fôia de couve que peguei na horta do cumpadi Zé do Quiabo. A senhora sabe, jogá fôia de couve pra tráis faz caí as berruga, num sabe?

A dona da casa não quis comprometer-se:

 — Sei dessas coisa não senhora. A senhora devia sabê que praticá essas crendice e simpatia é contra a lei da Santa Madre Igreja. Isso é pecado, não passa de babosice.
 Mas a doida, que não o era apenas no apelido ou pra fazer tipo, ao invés de responder, deu mais sustança ao falatório das crianças que tagarelavam ao seu lado do que àquelas admoestações da dona da casa e disse:

— Vamo falano comadi enquanto ês tão latino!

Isso dizia enquanto apontava um dedo ameaçador para as crianças que cochichavam e riam e, logo em seguida, já esquecida da repentina cólera, voltou ao assunto das folhas jogadas ao vento: 

—  antonse, comadi, se as fôia faz caí as berruga, deve de fazê tumbém caí estas feridinha,  que me alastra pelo corpo todo, nas perna, nos meio delas, nas parte, na barriga, no mama e nos braço, cara e pescoço.

Enquanto falava ia mostrando o corpo.  As crianças riam daquela nudez morena enfeitada com pintas vermelhas, ela os recriminava: 

— Deixe ês mostrá as canjica e nóis vai mostrano nosso má, não aliga não cumadi!

A dona de casa, Sá Miritita, criada e forjada no sopro dos foles da idade média, na fé e na moral cristã, aborrecida com a falta de compostura da Maria Doida, deu dois passos para trás; recatada, temia que as crianças pecassem pela visão da nudez, e havia também o risco de que pegassem a doença das pintinhas. Aquilo podia ser mais do que uma simples sarna ou alergia,  e era, como constatou o dono da casa, um sabido das coisas de medicina, que afirmou tão logo deitou os olhos na seminua doida: 

— A senhora, Dona Doida, está com varicela, e isso pega mais que visgo de gameleira-branca. 

E logo se cogitou que ela deveria permanecer em cômodo separado, bem longe dos da casa, no catre que foi colocado às  pressas no sobrado debaixo da salinha de jantar. Quando a levava para seus aposentos, Filó perguntou-lhe: 

— A senhora trouxe arguma coisa limpa pra vestí? 

E ela respondeu comovida: 

— Truxe não, num aliga não, boa minina Filó, pru meu uso me abasta uma camisola branca e um trabisseiro de paina, eu posso drumi até no chão duro.

Filó fofou as palhas do colchão, estendeu os lençóis, pôs fronha num surrado travesseiro de paina. E deixou do lado, sobre um banquinho de madeira, um baixeiro e duas mantas de arreio para o caso de alguma eventualidade.  E nesse improviso, nada faltava para a higiene pessoal que negasse à paciente o sagrado direito de lavar as mãos, a cara e os pés. Nesse fim de mundo, mais do que isso era luxo só para médicos e padres.

E assim, já acomodada, a impaciente paciente logo quis tomar as rédeas do próprio trato e ampliou as lamúrias, que se tornariam rotina. Enquanto ali arranchava, dia e noite, a doida gritava: 

— Cumadi dona da casa! Sá Miritita!  Acode que tou nas garra da tinhosa, morro e não vorto! Boa Filó, acode que morro à mingua! 

Por mais que lhe servissem boa comida, roupas limpas, cobertores, água potável e um penico esmaltado — esvaziado, areado e enxaguado todo santo dia — a doida continuava a pedir cada vez mais: 

— Ah cumadi! Tou sentido farta de um pedaço de frango, uma moela, um asa magra, um osso pra roer ou um pescoço pra chupá. Ah cumadi! Pode sê o sobre... Que vontade de comê um sobre! 

E, no delongar daquela estada, o galinheiro caminhava para o esvaziamento, pois a dona da casa temia o remorso e o falatório do arraial caso a doida morresse à míngua — certo é que poucos ajudam, mas todos metem a colher da pau quando a piedade alheia falha —; e assim: dá-lhe caldo de galinha, que não faz mal a  ninguém; sopa de inhame, que é bom pra pele; cuscuz de fubá, que revigora os tutanos; e angu bem cozido para dar liga em tudo que é líquido e tem que ser comido com as mãos, como a doida fazia. 
Depois de alguns dias nesse lesco-lesco e sobe-e-desce no terreiro da cozinha, que era o caminho para o quarto improvisado, Filó gemeu mais que perguntou: 

— Êta carvário sem fim. Nossa despensa há de aguentá essa mué se entrouxando desse jeito? 

E, quando tudo parecia muito ruim, ainda coube um tiquinho de piora: enquanto as pintas secavam na doida, elas iam aparecendo nos três menores da casa.

Filó achou que era hora de atitude e sugeriu:

— Sá Miritita, não é mió a gente fazê um mingau prus meninos? É modi apazigua as lumbriga e deixá saí tudo quanto é pinta, pra não eternizá essa saideira. 

Emanuel, o caçulinha, logo  opinou:

—Eu mais Lordino queremu mingau de zé gome, serve também o de maisena; Antônio Timóteo não qué nada,  perdeu a fome depois que botaru uma camisola branca nele. 

E como Filó não obteve resposta da dona da casa, nem mesmo um muxoxo de discordância, e foi acolhida por duas das crianças, fez o mingau de legumes, pois entendera que o zé gome não passava de legumes,  e empanturrou os meninos.
A comida, se não fez bem, matar não matou. As camisolas, essas sim, não desceram bem em nenhum deles; é que os mais velhos da casa começaram a caçoar dos pequenos e chamá-los de mulherzinhas. A bem da verdade, diziam: 

— home de camisola, que vergonha danada, home sem carça é  mué de sordado.

Lordino, o bom de briga, retrucou renitente e já armando pescoção: 

— Bobo é o que ocês é! Mué de sordado é aquele que chega derradeiro numa corrida de estrada ou de rua. Nóis tá de camisola é modi as pinta num agarrá nas camisa e carça. Mamãe qué nóis são depressa e sem pereba no corpo. 

E nesse contrassenso e desgarramento de tudo quanto é piedoso, os maiores abusavam do perrengue dos três pequenos:

— mué é mué, homi é homi e chulé é chule; quem tem pinta não tem pinto. Todas essas chacotas tiveram fim quando Antônio Timóteo, o quebra  ossos,  jogou praga nos marmanjos: 

— Deus tá veno ocês; com a fé de Deus, do Pai, do Filho e do Divino Isprito Santo, essas pintinhas vai secá ni nóis e  vai nascê nas bunda de ocês. 

Foi como se um balde de água esparramasse sua umidade fria sobre um fogo de palha, nem cinza restou. Se por medo da praga ou se porque o dono da casa podia castigá-los com umas boas palmadas pelas bundas brancas — quem há de saber! — os marmanjos enfiaram a viola no saco e foram cantar na freguesia do: — Ó mãe, óia o que os minino tão dizendo. A sinhora não disse pra gente não rogá praga. Manda papai passá umas boas combreadas nês, manda! 

E assim, acabadas as galinhas e no frigir dos ovos, a doida aprumou-se em poucos dias e já almoçava na cozinha junto aos de casa. 

— Não aliga não cumadi. Vamo puxá cumadi!  Enquanto ês tão latino nóis vamo cumeno. Não aliga não!

 E, nesse lenga-lenga de doida, a esbaforida maluca dos cabelos crespos pegava pelo braço a franzina dona da casa e a arrastava para a beirada fogão e enchia uma cuia com angu, feijão, arroz e carne de lata. Depois de servir-se sem os limites da boa educação, acocorava-se no canto mais escuro possível e refestelava-se comendo com as próprias mãos, usava os dedos em vez do garfo, e os dentes no lugar da faca.

Os meninos, agora já contaminados e ainda doentes, não tinham mais o que temer e, à moda da roça, empuleiravam-se no descanso do fogão enquanto apreciavam aquele palavreado bizarro e engraçado. Nem conversando estavam e a doida os denunciava com aquela repetição, agora sem ênfase: 

— enquanto ês tão latino, nóis vamo cumeno.

Sã que nem coco, depois de alguns dias daquela hospitalidade de luxo, mesmo assim, Maria doida, caso não fosse pressionada, não arredaria mais o pé daquele conforto. Mas a inteligente Filó deu seu jeitinho ao dizer-lhe:

— Pru que a sinhora não aproveita que melhorou e vai simbora daqui? Ou será que a sinhora num sabe que essa doença pode inté  matá, isso se pegá de novo em quem está saino da perenguice.

A doida logo pegou sua trouxa, engordada com as roupas presenteadas pela dona de casa, e ganhou chão. Mas, numa repetição que não conseguia controlar, propagava, agora, aos quatro ventos: 

— Ô povo ruim que qué me matá a mingua e ainda inventa doença que repega. Ô povo ruim, povo ruim, povo ruim! Povo ruim mesmo!...

E assim termina a história dessa pobre louca... Quem quiser que conte outra.


7 comentários:

  1. Vi sua postagem e acoçou minha curiosidade em ler. - Fui num pé e voltei noutro. Li tudo num instantim. Não aliga não, sô assim mesmo. Relembrei do picumã do teto da cozinha; da buraca invejosa; do carunho no cocão e tudo mais, sem ficá banzerando com a história. - Agora, essa coisa de jogá pela cacunda a foia pra cair berruga e esse caso da varicela, deve ser caçoada, não? - Abraços - Parabéns. Muito bom.

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    1. Grato, sua avaliação é um estímulo. Mas o caso étodo verdadeiro. Três crianças, daquele pé de morro, pegaram tal varicela.

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  2. Alfenas, parece suspense rs. Eu mesmo não aguentava de curiosidade em saber quem vinha chegando. Mais suspense ainda ao prever que a doida iria contaminar tudo e todos. Até que terminou muito bem. Gostei do palavreado dos protagonistas e muito do palavreado do autor.
    Oxente, abestado com o encalistrado. Tive que recorrer ao Google. rs
    Muito bom
    Ronaldo Toledo

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  3. Caro Lulu,
    Bom dia.

    Ler as suas obras literárias é sempre um deleite e uma grata oportunidade de aprendizado. Analisando a foto anexa ao texto e, principalmente, quando você qualifica o dono da casa como "um sabido das coisas de medicina", não pode conter que a minha mente me transportasse para lugar e pessoas de mim tão conhecidos. Não sei se tais lembranças guardam, realmente, alguma relação com registros de sua memória e que o levaram a produzir tão belo conto. Ainda que assim não seja, o fato é que o bem elaborado e adaptado texto levou-me a uma agradável viagem no tempo.
    Parabéns! Continue a nos brindar sempre com a sua sabedoria.
    Obrigado e um grande abraço,

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    1. Obrigado, amigo Izaltino, sua crítica nos moldes em que sempre é coloca, é um estímulo. Trazer um pouco de nossa cultura e de nosso dialeto caipira não faz mal a ninguém. Grande abraço
      Lulu

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  4. Gostei muito do conto. Além de bem elaborado, representa bem aquilo de que participamos e fomos personagens principais da história, dando condição de sabermos como aconteceu. Naquela época a maior parte das pessoas não se importava muito com doenças, como sarampo, varicela e outras, consideradas como fossem vacinas pelas quais as crianças tinham de passar quanto mais novas melhor, a fim de ficarem logo livres deste desconforto mais cedo.
    Sua ideia de dar nome aos personagens foi espetacular. Diante da figura do inteligente Lourdino, só foi desconsiderada a letra do Antônio Timóteo. Mas também o aspecto da letra pode ser dispensado, uma vez que o personagem se caracteriza por suas orelhas avantajadas. Não me lembro muito bem do real Antônio Timóteo, mas segundo o Rodolfo era muito parecido com o mano. A minha caracterização de Emanuel me envaideceu, com sua significação do mais alto nível universal, ao querer dizer “Deus conosco”. Claro que não ousarei pensar em qualquer outra possibilidade, a não ser a vontade de assemelhar a Jesus, manso e humilde de coração.
    Só para refrescar a cuca, vale lembrar que a tal Sá Maria falava mais ou menos assim: “Não aliga não, cumadi, deixi isilatino, bomo cumê, cumade, eu cá tô é cumeno... Ara, pois!” Era a sopa de Zé Gomes, exatamente a sopa de legumes, e nós ríamos um bocado, pois sabíamos que se tratava daquele homem encurvado, de barbas brancas, com uma baita faca na cinta, contando causos de sua espingarda que chamava de “riúna”. Nem sempre era tão engraçado pelo exagero que mostrava. Com um único tiro, matava a primeira vítima, uma onça ou qualquer coisa do gênero, a bala voltava e matava outra e mais outra. A bala da famosa “riúna”, ia e voltava diversas vezes, fazendo diversas vítimas. Bem, não achava muita graça naquela época, com meu entendimento de criança, hoje não saberia dizer a razão. Em suma, adorei o conto e lhe dou parabéns. Obrigado pelo Emanuel; coincidência, ou não, gostei bastante. O fato é que ficamos totalmente cheios de bolinhas, inclusive me lembro de ter sido o mais agraciado com as canjiquinhas, mais parecendo um reco-reco da banda de congos...

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    1. Edgard, admira-me, você, o irmão que não gosta de falar batata, criticar tão positivamente este texto. Mas, felizmente, você não é daqueles que confundem o nosso dialeto caipira com um simples erro de língua. Nós dois sabemos que se prosperasse um pouco mais essa maneira de falar roceira, teríamos grandes mudanças positivas na linguagem: síncopes do você para o ocê e depois para o cê, o desaparecimento de letras em palavras, como “fazendo” que se transforma em “fazeno”. A concordância, como usada na linguagem culta, parece-me poderia ser melhorada se os gramáticos colhessem as simplificações desses dialetos que ainda capeiam em algumas regiões do Brasil. Embora a globalização da comunicação mediática esteja a acabar com todas as diferenças culturais de nossas regiões, assim também na linguagem: “nós vai”, ao meu ver, denota uma linguagem bem mais apurada do que “nós vamos”, pois se é nós já é plural, para que gastar duas vezes a mesma ideia. Nesse sentido a língua inglesa parece-me mais avançada e; portanto, mais simples. A nossa Maria Doida, algumas vezes dizia “nóis vai”, mas usava com mais frequência o “vamo”, que para você soava como “bamo” (não sei se eu já era meio surdo naquela época, mas acho que não, é que tínhamos orelhas de abano com trançados de taquaras colhidas em meses ou luas diferentes — minha taquara é de outubro e tinha um viés para o V, a sua é de dezembro com viés para o B; a lua, não me lembro bem. Quanto à falta da letra, mesmo antes de eu ler o seu comentário acho que já havia consertado, pois não vi mais essa falha. No texto também, se não me perdi, não vi referência a que o Antônio Timóteo tivesse orelhas grandes, embora o personagem, não sei como você adivinhou, tivessem-nas realmente enormes e, segundo dizem os linguarudos, continuam crescendo a passos largos, a ponto de estarem quase tampando os lados da cara. Aliás, os homens daquela família do pé do pé do morro sempre tiveram muito orgulho do tamanho da orelha, da cabeça, dos pés e de outra coisa mais que não eleva o caráter, mas o moral. Zé Gomes realmente tinha uma espingarda de matar veado na curva, só que não me lembrava de ela ter o apelido de riúna. Outra coisa, Emanuel foi de propósito, pois fala muito do personagem real. Eu, como você, não achava aqueles fatos engraçados, mas agora os acho pitorescos e, por isso, vou me esforçando por contá-los. Dizem que quanto mais velho ficamos mais regredimos para as memórias antigas, qualquer dia posso falar do dia em que nasci. Já tenho algo na algibeira, coisas trazidas do mar.
      Obrigado, mano.
      Lulu

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