sábado, 29 de outubro de 2016

Muito além do horizonte.


A nave desceu suave, silenciosa. Ajustou-se  e acoplou-se
 à estrutura da torre sineira, tornou-se transparente e quase 
invisível.






















Escrito por Lulu
Revisão: ET-vino


— Gaia, estou indo, como te disse ontem. 
Esperou uma resposta, não houve, insistiu:
— Gaia, estou saindo, tu vens?
— Homem!  De novo me amolas com essa bobagem. Já não te disse que não gosto que me metas nisso.
A voz grave e rouca insistiu: 
— Essas coisas não acontecem todo dia, se perdes uma, talvez estejas perdendo a única oportunidade de toda a vida. Eu fico triste de ver uma irmã tão querida ficar fora dum evento que não se repetirá tão cedo. Deixes dessa rabugice, vamos! Tu entras se quiser, ninguém é obrigado a embarcar contra a vontade. 
— De novo tu repetes essa ladainha. Não me faças passar por boba, nós já não estamos em boa conta na Rua, ainda mais agora que o vigário passou a implicar comigo, e eu nem posso tocar mais no coro. Já perdi meu piano e agora queres que eu perca o respeito dessa gente. 
Fez-se silêncio, mas Gaia ainda tinha o que dizer:                                       
— E tu continuas a acreditar  nessas besteiras, em coisas que não existem. Acho que a mulher do Adão Lino está fazendo sua cabeça. Aquela age na surdina, mas é uma praga em sua vida. Finge que acredita, instiga-o e ri por trás.
Novo intervalo, um galo cantou no terreiro, a voz grossa ainda inistiu com uma metáfora antiga e com despedidas que soavam como uma ameaça de quem dá uma última oportunidade a uma criança:
— Lavo minhas mãos! Até logo, ouviu Gaia! Estou indo!
— Vá com Deus! Eu quero dormir um pouco mais, mereço paz. Não te esqueças de taramelar a porta e de verificar se ficou bem fechada. 
Passo curto e lento, saiu para a Praça São Sebastião, atravessou a calçada, encostou-se na mureta ao lado de onde haviam colado uma foto grande de Ciro Maciel sob a sigla PR escrita em letras garrafais. Pousou seu olhar na torre da Igreja. "Devia haver um relógio encravado na torre sineira no lugar onde colocaram aquele vitral redondo", pensou. Relógio... falta não fazia agora, não havia dúvidas de que eram cinco e dez.  A pontualidade era o forte daquele relacionamento intergaláctico, e a telepatia,  mãos invisíveis a dedilharem, em código binário e preciso, as horas, minutos, segundos e nanossegundos em seu cérebro.
O homem voltou-se para a encosta a procura de sinais da nave. Passou as mãos sobre os cabelos ligeiramente crespos, cara bexiguenta, pele frisada como a face da lua cobrindo um rosto sério, a confiança mora ali; mas não, a paciência. Sorriu complacente com os incrédulos da terra que não acreditavam que ele pudesse ter um pacto com as estrelas. Ensaiou um pensamento de “bem feito pra eles!”, o pensamento escapou. Esperou alguns segundos, espantou o frio com um esfregar de mãos e puxou a gola da blusa de lã até o queixo. Cuspiu de lado, gosma grudenta, nojo escorrido pelas folhas da grama que vicejava estreita entre as pedras daquela saída de rua; tudo com cuidado, sem barulho, sem movimentos bruscos. O momento era sagrado; e o silêncio, um arauto. 
Nenhuma dúvida quanto à pontualidade, eles nunca falhavam. A certeza de que estariam ali dentro de segundos era a mesma de que o penico estaria debaixo da cama quando levasse a mão para pegá-lo nas madrugadas das frequentes insônias, em que os pensamentos repletos de viagens espaciais nunca o deixavam descansar como devia; um pensamento leva a outro: pensou na distância entre a latrina e a casa, pensamento desconexo, nada a ver com a grandeza do momento, descarte imediato. Girou o pescoço e ombros, em movimentos bruscos, como se fosse um robô, até perscrutar toda a Praça, ninguém. Tudo pronto, a Praça preenchida pela solidão era necessária.
A nave desceu suave, silenciosa, iluminada. Ajustou-se e acoplou-se à estrutura da torre sineira, tornou-se transparente e quase invisível, é-lhes proibido perturbar a beleza ou a feiura dos lugares. Luzes inteligentes flutuaram em direção ao homem da Praça, exemplar único naquele espaço. Adentraram em seu cérebro, aderiram, incrustaram-se, fecharam-se circuitos; e voltaram para nave e ela, para as estrelas. 
Um pedaço de gente com um sorriso de confiança congelado e com o mesmo semblante de calma permaneceu ali na Praça. Passaram-se alguns nanossegundos, tempo que não se mede pelos parâmetros da terra, e, novamente, a nave pousou na Praça, no mesmo silêncio, na mesma solidão necessária, com a mesma transparência, com a mesma acoplagem. As luzes agora adentram no cérebro para reverterem o processo: desincrustam-se, desfizeram-se elos, rearranjo geral, e voltaram para a nave, que parte definitivamente. 
Na Praça, o mesmo homem, o mesmo sorriso de robô, mas agora um ser inteiro e viajado. Tem casos para contar: viagens interplanetárias irão povoar as cabeças das crianças e de, alguns poucos, adultos.
Quando voltou para casa, entrou direto. Mal havia taramelado a porta, a irmã perguntou: 
— Uai! Não vais?

Ele deu um sorriso de “coitada, não sabe de nada!” e, vingativo, não respondeu.

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