domingo, 26 de setembro de 2010

Gustin Norato - mito ou o quê?

                                                                                                                                 Lulu de Sodiga
Gustin Norado

A vida costuma esconder mistérios onde a loucura é a única manifestação aparente. Há indivíduos incomuns por todos os lados, desajustados de todos os tipos, mas alguns vão além da ficção. O caso aqui narrado fala de um desses e é, na essência, real. 

Na primeira metade do século XX, vivia em Senhora de Oliveira um homem chamado Gustin Norato, um obcecado por carros de boi e que levava consigo, pelas trilhas e estradas de terra, carro, cangas, canzis, correntes e fueiros, tudo produzido pela sua fantasia. Muitos conheciam essa esquisitice; mas não, as suas origens.

Sua anormalidade desenvolveu-se a passos lentos, a partir da primeira infância, como uma erosão que assoreia a alma com confusas percepções e faz a realidade esmaecer. Ainda no colo, Gustin mostrava inclinação para temas boiunos. Suas primeiras palavras, quando todos esperavam fossem “mamã e papa”, foram “vavaca“ e ‘"bobô”. Mal conseguia dar os primeiros passos e já saía de pé-leve, fugindo dos cuidados da mãe, para se abotoar no ubre de uma vaca que, habituada ao moleque, ficava por perto com o peito gotejando e pronto para amamentá-lo.

E assim, como uma flecha procura o alvo desde o arremesso, Gustin buscava, ainda garoto, gado e pastagens. Tinha sonhos, não seria médico ou advogado, não era ambicioso, o que queria estava ali perto, a poucos passos da porta da cozinha. Para perguntas que a mãe lhe fazia do tipo: “Gustin o que você vai ser quando crescer?”; a resposta era invariável: “Quero ser boi carreiro”. Ela, de uma surdez crônica, entendia que o menino queria ser bom carreiro e proclamava feliz aos quatro ventos: “Meu filho, graças a Deus, vai ser carreiro. E se Deus ajudar e São Cristovão o proteger, vai ser bom que nem o avô”.

Crianças da roça dormem cedo para madrugarem descansadas. Gostam de dias esticados para as brincadeiras. Nisso fazem bem, pois aproveitam da infância o melhor, integram-se à natureza, lambuzam-se no barro, comem areia e bosta de vaca, entopem-se de lombrigas e criam anticorpos para as futuras guerras contra os micróbios que a vida lhes reserva. Gustin não era exceção no gênero, mas o era no caso, no tipo de predileção, suas brincadeiras eram extravagantes. Levantava cedo e ia pro curral, juntava os bois no pasto, punha-lhes a canga e saía para o batente antes de o dia clarear. Vocação clara, outro caminho não tinha: fez-se candeeiro, e nem precisa dizer que tinha gosto pelo ofício e intimidade com os bois. Conhecia deles as manhas, distinguia-os pelo mugido, baba, cheiro e quaisquer outros detalhes relativos aos barulhos que faziam ao andarem ou ao realizarem as necessidades fisiológicas. Assim, diferenciando os animais pelas manias, o moleque logo descobriria que havia bois que eram mais espertos de manhã, outros ao meio dia e alguns que só trabalhavam depois de comerem capim meloso. Menino esperto, fazia o gosto dos animais e disso tirava proveito, com ele o gado procedia melhor, produzia mais e não fugia do pasto.

Crescia sob a bênção da velha mãe que não cansava de repetir: “não disse que ele seria bom carreiro! Não disse?” Apaixonou-se pela profissão e por algumas bezerras, mas isso é uma história profana cheia de barrancos e tombos. Por enquanto, fiquemos com sua vidinha em que amava mais os bovinos do que a si próprio e os semelhantes, os humanos. Estranho, se gostasse de uma pessoa, dependendo do sexo e idade, tratava-a por vaca, marruá, novilho, novilha ou bezerro. Só tinha empatia por uma pessoa se a traduzisse em gado. Apelidou a mulher do patrão de vaca-loira. Quando ela se engravidou, pôs-se a falar que estava prenhe e, mais tarde, que estava "mojando" e que o bezerrinho nasceria numa manjedoura.

Nesse devaneio, afirmava que era filho de um touro mestiço, Minotauro, com uma vaca holandesa puro-sangue. “Quem pariu Mateus que o embale”, seguia a vaca pelo pasto até tarde da noite. Minotauro tornou-se o seu melhor conselheiro, ouvia-o nas dúvidas pequenas e grandes. Amava e tinha orgulho do seu pai-boi. Aos que lhe perguntavam, por chacota, por que sendo holandês não era pintado como os da raça, explicava: “sou o primeiro de uma nova linhagem mestiça, vou ser gado de uma pinta só, a preta”. Rebatizava os filhos e as filhas do fazendeiro com nomes de bovídeos. Tratava-os como se fossem boi de carro: “Vamos lá Malhado! Pra fora Comando!”. Para a caçula da fazenda, dizia: “Vem cá Estrela! O tio boi vai dar-lhe uma espiga de milho”. Sua alma, como a de um boi que machuca e mata sem maldade ou intenção, era de uma pureza original. Em sua ingenuidade não cabiam sentimentos perversos ou pecados por veniais que fossem.

A conduta estranha causou mexericos e constrangimentos, e o patrão foi obrigado a chamá-lo à sensatez: “Vem cá Gustin!”; disse-lhe, “Você não pode continuar com essa conversa fiada sobre minha mulher e a dar nome de gado às crianças. Deixa de ser caipora! Já o tolerei mais que devia e quero que você pare com isso de uma vez por todas!” Com fisionomia duplamente política, semblante de boi e postura de paisagem, Gustin ouviu calado tamanho sabão, mas, de repente, como se acordasse de longa letargia de ruminação de pensamentos filosóficos, falou em alto e bom som: “Seu marruá, neste mundo tem dois tipos de gente, da que pasta e da que conta dinheiro. Pra mim, gente e gado é tudo muito parecido, tudo gosta de ser manada e ser tocada de lá pra cá, mas eu sou boi carreiro, que não gosta nem de rebanho nem de conversa mole, não sou boi cornudo e manso que nem o sinhô. Sou boi de canga, de pescoço calejado pelo trabalho, tenho queda e rompante de macho. Sou carreiro e candeeiro, e se o sinhô fosse mais parrudo, eu amansava e botava na lida, o sinhô não tenha dúvida, seria meu boi de coice preferido. Nas perambeiras, eu colocava o sinhô lá atrás, na marra, para não deixar o carro descambar morro abaixo”. Discurso bem elaborado para um boi, ideias muito malucas para um rapaz bem-criado. O distraído fazendeiro que até então não havia dado fé de que Gustin estava possuído por loucura brava caiu na real e não teve outro remédio que não o de despedir o pobre. Fê-lo não por raiva ou por vingança, mas por temer que a demência o levasse à agressividade e a desfechos incontroláveis. Prudente, queria evitar o pior. Temia pela família. Tinha filhas novas e uma mulher ingênua. Estas jamais formulariam conjecturas de perigo. Mais tarde, ainda teve que se justificar para uma atônita patroa que contestou a decisão: “Mandar embora, que ruindade! Que mal pode haver neste pobre coitado? Um menino ainda! Tão madrugador, prestativo e respeitador, de pouca conversava e bem adaptado a este triste destino de agregado”. O marido foi lacônico: “Mulher, você não sabe da missa a metade”. Não disse mais nada e não aceitou mais perguntas.

Despedido, Gustin não se fez de rogado, entendeu logo que não teria mais as vantagens de um pasto fixo, “Daqui pra frente vou ser boi de estrada”, pensou e agiu, nem voltou em casa para pegar seus molambos e seus canecos de coité. Pé na estrada e alma nas capoeiras, sem medo da nova vida. Ganhou o mundo, sem rumo e intentos. Naquele dia, morreu o restinho de gente que ainda habitava aquele corpo e nasceu o Gustin Norato do resto da vida, ícone do carreiro da mitologia local que criou, ao seu redor, um mundo repleto de bois, de carros, de cangas e acessórios que acompanham todo carreiro que se preze. A criatura encontrou finalmente seu destino, perdeu totalmente a noção da realidade e em seu lugar colocou um obscuro imaginário. Todas estas transformações eram, ainda, insuficientes: Gustin, que já era carreiro, tinha que ser boi, mas queria ser carro. Alguma coisa cerebral quebrou-se nos interiores do "homo sapiens”, alguma alma penada de boi carreiro ocupou, de forma enigmática, todos os espaços não humanos do cérebro de Gustin Norato. Essa metamorfose produziu uma nova espécie.

Quem o via por aquelas estradas não sabia dizer o que predominava nele, se o boi, se o carreiro ou se o carro? Gustin finalmente se tornou uma trindade: carro, boi e homem. Pra boi só faltava chifre; pra carro, rodas e para homem, a consciência do Ser.

Livre de fazendas e rebanhos, Gustin carreava quando queria, exceto na invernada, e explicava: “Bois escorregam demais no barro e ainda não inventaram ferradura pra boi, é que seu casco não aceita cravo”. Gostava mais dos carretos no mês de maio, estradas secas; mais poeira, menos calor e suor.

Encontrar Gustin Norato nas estradas era uma experiência única, anunciava-se com estardalhaço à grande distância: primeiro ouvia-se a cantiga da roda do carro, em seguida a gritaria: “Entra Queimado! Pra fora Dourado! Ôa! Ôa! Ôa!”. Quando a comitiva se aproximava, o barulho das correntes arrastadas pelos bois tornava-se mais nítido. No primeiro contato com esse tipo bizarro, qualquer pessoa teria um choque de expectativas: esperava-se um carro completo, aparecia um homem solitário e franzino a arrastar uma corrente com uma canga. Geraldo Ferro Véio, que não conhecia o fenômeno, custou a entender que ao invés de encontrar-se com um carro lotado, puxado por pelo menos duas juntas de bois, apareceu-lhe um único homem, magro quase esquelético, carregando uma canga atada a uma corrente e fazendo uma grande algazarra. A cena o impressionou tanto que teve insônia por duas semanas. Interrogava-se: “Tive uma visão ou fui acometido por algum mal súbito e perdi a consciência?”. Sua inquietação só veio a cessar quando João Pedro o acalmou: “Ferro Véio, o que você viu não foi assombração, não se incomode tanto! O que você viu existe em carne e osso e está vivinho da silva! É o Gustin Norato”.


Galdino, o filósofo da região, deu significado a essa vida tão inusitada:
— O que vocês pensam que são? Acham-se melhores? Quantos de vocês têm uma existência dedicada a uma missão? Gustin tem e a realiza com sucesso. Vocês, parvos e pobres de espíritos!.... Vocês acreditam em destino? Não conseguem encontrar uma razão cósmica para um homem passar a vida inteira a berrar por estas estradas poeirentas. Se são adeptos da causalidade, eu poderia dizer para engolirem sua racionalidade. Um homem como esse tem mais ou menos sucesso que grandes vultos da história? Não estão todos a buscar uma diferenciação que os distinga e os tire da vala comum e das estreitas possibilidades humanas? Loucura sem propósitos? Não posso afirmar. E o rasto que deixa na imaginação das crianças? Vidas ao vento, objetividade da existência, Napoleões, Césares, expoentes da história, o que deixaram maior ou menor? Gustin deixou suas pegadas, você as deixará? Seria a vida um passar de Noratos: alegrias, ilusões, gritos e gemidos. Pensem bem nisso! É fácil ser gado sem ser de rebanho?

“Ô Sinhô, seu pessoal da Leoa
que não sabe fazer macarronada.
A madrinha Carolina
dá notícia da tia Maria”.

Gustin cantarolava esses versos quando mostrava seus traços humanos e suas origens: nasceu no início de século XX num córrego chamado Leoa que fazia parte da grande Rio Espera, cidade bonita de Minas Gerais.

12 comentários:

  1. Nossa mãe !!!
    Que texto !!!
    Esta leitura provocou-me uma regressão, longe das Hipnoterapias Regressivas ...
    Revivi Gustin Norato, chegando na Fazenda dos Pinheiros ecoando: "Sai Castelo, entra Maiado"...
    Que saudade !!!
    Com certeza existe um grande carreiro no céu !!!
    Parabéns pela bela escrita!!!
    Abraços
    Juvenal

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    1. Juvenal, obrigado e continue a ler e enviar-nos seus comentários, abraço

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  2. Parabéns pelos textos. Continue escrevendo. Recordar é viver! Abraços, Eliza Sena.

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  3. Meus pais já me contaram sobre Gustin Norato e por acaso, vasculhando a internet, me deparo com este blog, que maravilha, despertou em mim uma vontade de ter vivido naquela época, o tê-lo conhecido. São grandes histórias, não pare de escrever!!! Está de parabéns!!!

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  4. Parabéns Lulu! Transformar uma acontecimento em um conto espetacular, poucos os fazem com tanta maestria!

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  5. Eu me lembro dele nas estradas figura inesquecível

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    1. Ele era uma pessoa incrível, de olhar penetrante. Gostava de café bem quente, minha mãe ferveu o café, esquentou o copo esmaltado, ele bebeu suavemente e ainda disse que " estava bom, mas meio frio". Ele era tudo: o carro, os bois, o boiadeiro, seus gritos ainda ecoam fortemente em meus ouvidos. Ele era soberano.

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  6. Tive o prazer de conhecer essa figura ,tão importante de nossa querida rio espera .Moro hoje em volta redonda ,mas esse artigo aumentou bastante a saudade ,que sinto de minha terra.

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  7. Tive o prazer de conhecer essa figura ,tão importante de nossa querida rio espera .Moro hoje em volta redonda ,mas esse artigo aumentou bastante a saudade ,que sinto de minha terra.Era muito comum a gente encontrar com o gustin carregando guiadas,correntes ,cangas e outras coisas relacionadas a carro de boi.Eu conheço bastante de carro de boi ,porque fui candieiro e fui carreiro tambem na fazenda de meu avô (Totônio Guilherme)

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  8. Na minha infância eu vi muitas vezes essa figura carregando várias peças relacionadas ao carro de boi.Isso me deu muita saudade da minha querida Rio Espera .Hoje com 63 anos moro em volta redonda,sou neto do Totônio Guilherme e em minha infância ,fui candieiro e depois carreiro.Parabens ao ao autor desse artigo, que resgata a memória de nosso passado com figuras importantes de nossa terra natal.

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