terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ecos familiares promoveu cantata de natal em Senhora de Oliveira MG


Coral Ecos Familiares em Senhora
de Olviera MG
 Como foi programado, no dia 11 de Dezembro de 2010, o coral Ecos Familiares cantou na Igreja Matriz Nossa Senhora de Oliveira. Numa programação impecável, tudo correu conforme programado, início e músicas esperadas. A igreja lotada, não foi surpresa, pois além da religiosidade do pessoal da terra, todos que alí compareceram sabiam que a família Rocha, base do coral,  tem sangue músical. A regência foi do  Maestro Cleude William que nasceu em Belo Horizonte e formou-se em regência pela Universidade Federal de Minas Gerais. Desde Agosto de 1997 é o regente do Coral “Contas e Cantos do Tribunal de Contas de Minas Gerais” e desde junho de 2010 é o regente do Coral Ecos Familiares. Nessa apresentação, pudemos identificar os seguintes membros da família Rocha e amigos: sopranos: Zélia, Ângela, Rafaela, Cristina e Raquel; Contraltos: Poliana, Izabela, Betinha (de Filhinha Braga ), Júlia Milagres, e Mariza ; Baixos: Benigno , Rochinha, Mauro e Chico; Tenor: Rafael. Para ver o vídeo "surgem os anjos proclamando" que foi colocado no youtube pelo integrante do coral, Mário Márcio Rocha Milagres, clique abaixo para ver e ouvir:


Os anjos proclamam - Coral Ecos Familiares, Video postado por      
Mário Márcio Rocha Milagres. Do mesmo Coral, para tocar o           
O Velhinho, espere terminar a música atual, passe o cursor sobre    
a imagem do  Youtube até a quinta seleção que é  exatamente    
 O Velhinho.                                                                     






 

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Coral apresenta cantata de natal em Senhora de Oliveira MG


Coral Ecos Familiares
Numa programação inédita, o coral Ecos Familiares (leia-se família Rocha) juntamente com alguns cantores do coral Sara Kusbschek  irá se apresentar em Senhora de Oliveira no dia 11 de Dezembro de 2010 (Sábado).

Local: Igreja Matriz Nossa Senhora de Oliveira, na praça Monsenhor José Justiniano Teixeira, Centro de Senhora de Oliveira MG (vide mapa no rodapé desta postagem).

Horário: Após a Missa das 19 (mais ou menos 20 horas)

UM POUCO DE HISTÓRIA E CULTURA

O blog Contos de Senhora de Oliveira, que sai de sua temática para a divulgação deste evento, encaminhou, por e-mail, algumas perguntas ao professor, perito e pediatra Dr. Benigno Rocha da Silva, um dos integrantes do Coral Ecos familiares, que gentil e prontamente nos respondeu.


Editor: Serão apresentadas cantatas de Natal, ou outras? Quais músicas serão apresentadas?

Benigno: Serão apresentadas apenas cantatas de natal. Algumas delas foram adaptadas pelo maestro Cleude William. As músicas até então ensaiadas são: Linda noite (popular de Algarve) , Surgem Anjos Proclamando (Old French Carol), Bate o Sino (James Lord Pierpon), Canção dos Sinos (Mykola Leontovich), Bom Natal (Alexandre Zilahi), O velhinho (Octávio Filho), Le sommeil de l'enfant Jesus ( canção de natal do século XIII), El nacimiento (Ariel Ramirez e Félix Luna).

Editor: Como surgiu o Ecos familiares?

Benigno: o Coral Ecos Familiares surgiu da vontade de se organizar o canto de um grupo de familiares e amigos apreciadores de músicas inesquecíveis pela melodia, momento histórico e poesia. O coral conta com a regência e dedicação do maestro Cleude William. O grupo iniciou suas atividades em junho de 2010. Fez sua primeira apresentação em setembro, na cidade de Guanhães – MG. A sua segunda apresentação ocorrerá na cidade de Senhora de Oliveira, dia 11 de dezembro após a missa das 19 horas e para o próximo ano, já está inscrito para cantar no projeto “Quatro Cantos” do BDMG, que anualmente, em data ainda não determinada, canta na Praça da Liberdade em BH.

Breve currículo do Maestro: o Maestro Cleude William nasceu em Belo Horizonte e formou-se em regência pela Universidade Federal de Minas Gerais. Desde Agosto de 1997 é o regente do Coral “Contas e Cantos do Tribunal de Contas de Minas Gerais” e desde junho de 2010 é o regente do Coral Ecos Familiares.

Em minha opinião: nosso gosto pela música surgiu muito cedo, aos sons de um bandolim, quando nos invernos de Senhora de Oliveira, ao redor do “fogo no chão”, deitados numa esteira de embira ou no colo do pai, nossa mãe (D. Conceição) dedilhava, neste instrumento, as suas canções. Vicente Inácio sempre aparecia para acompanhá-la. Estes encontros permaneceram saindo uns e agregando outros e culminando com o nascimento dos “Ecos Familiares”.

Editor: Quem são os componentes? Quem é quem no coral? Quem executa cada um dos quatro naipes: Baixos, Tenores, Contraltos e Sopranos (nem sei o que é isso, mas vi essa classificação na internet e acho que, se for possível divulgar, daria um pouco de cultura musical aos internautas.)

Benigno: Os componentes são irmãos, sobrinhos, agregados e alguns amigos que a nós se ajuntaram. Os naipes: Sopranos: Zélia, Ângela, Rafaela, Cristina e Raquel; Contraltos: Poliana, Izabela, Betinha (de Filhinha Braga - novata e não está na foto), Júlia Milagres, e Mariza (novata e não está na foto); Baixos: Benigno (que não está na foto), Rochinha, Mauro (que não está na foto), Bruno e Chico; Tenor: Rafael. (veja bem! Estamos precisando de tenores - você não é?)

Editor: Outra curiosidade nossa, o coral é uma organização informal ou uma pessoa jurídica?

Benigno: O coral Ecos Familiares é uma organização informal. Temos uma secretária, a Júlia, para os contatos e outras necessidades, e um coordenador e também tesoureiro, o Zé Rochinha, que recolhe mensalmente, de cada participante, uma pequena quantia para despesas de partituras e outras.

Nosso e-mail: coral-ecosfamiliares@googlegroups.com




Coral Ecos Familiares: fileira da frente, a partir da esquerda - Raquel, Ângela,
Cristina, Rafaela, Zélia, Isabela, Poliana, Júlia.
Fileira de trás, a partir da esquerda - Rafael, Rochinha, Bruno e Francisco.
Foto: Júlia (todos os direitos reservados).
COMO CHEGAR AO LOCAL DA APRESENTAÇÃO :(use o mouse para ampliar, mover, focalizar os locais desejados. Entre no google Maps clicando nas legendas azuis). Para quem vem pela BR-040, a rota por asfalto é a seguinte: passar dentro de Conselheiro Lafaiete (seguir placas no sentido de Piranga). Depois passar pelas cidades: Itaverava, Catas Altas da Noruega (não precisa entrar na cidade), Lamim e Senhora de Oliveira. Para quem vem de Viçosa: passar dentro de Piranga. De Piranga a Senhora de Oliveira a estrada é de terra


Exibir mapa ampliado


Abaixo um link em que o entrevistado, Benigno, participa de uma apresentação do Coral Vozes do Campus - Hallelujah, vide última fileira, debaixo da letra "T":


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domingo, 21 de novembro de 2010

Zé Candinho

Amanhecer em Piraguara, mais tarde
Senhora de Oliveira.

por Lulu de Sodiga
Há muitas portas pelas quais um intruso, curioso da biografia alheia, pode entrar na vida privada para o exame do que se passa com as figuras mais intrigantes deste mundo sem tronqueiras. No caso de Candinho, poderíamos escolher a porta do humor; ou da excentricidade de hábitos; ou mesmo a de suas origens e motivos. Como ele era um homem da estrada e da rua, de hábitos simples e de atos não documentados, nós vamos pelo caminho impresso na alma e espírito do povo, onde foram gravados seus feitos e casos, porque as pegadas verdadeiras, essas sim, foram apagadas da camada mais tênue de nossa história, formas efêmeras varridas do pó fino das estradas que não resiste ao vento quente de nossas tardes e à brisa fresca e úmida de nossas noites. Um homem assim, sem um retrato de grandeza, um ícone do que há de mais simplório e que inverte os valores que fazem história.

Antes um aviso, um homem não é uma ilha: a impressão que se tem de uma pessoa em particular não é uma simples referência a um indivíduo depende dos valores culturais da própria comunidade, de seu grau de maturidade e experiência e da forma como vê e avalia os atos dos que nela vivem. Falar de José Cândido Machado, enquanto uma singularidade,  é falar do povo de Senhora de Oliveira, enquanto capaz de gostar, de se divertir, de dar importância às suas características, às suas bobices, às suas más notas e ao que lhe era mais particular, ao seu incomum humor que brotava natural do que fazia e falava. O povo acha graça do que alcança, assim, a estultícia máxima é sempre motivo de regozijo dos mais néscios, enquanto as pilhérias mais bem acabadas não conseguem divertir senão aos mais sábios. Em outras palavras, o sucesso de um palhaço depende de sua plateia, e o mesmo filósofo, poeta ou bobo que é sucesso para um público pode ser vaiado noutro. O fenômeno Candinho, portanto, pode ser, e talvez seja mesmo, o retrato do lugar e época, de seus valores e escolhas, como também pode refletir a amplitude de visão ou sua estreiteza, dependendo da menor ou maior rigidez com que possamos observar a conduta, menos dele, e, mais dos que o rodeavam e lhe emprestaram um sentido. Pelo andar da carruagem, justo posicionar os fatos no tempo, desde que no espaço e contexto já o fizemos: tudo ocorre entre os anos 1950 a 1980, uma faixa estreita de tempo para uma visão histórica, mas bastante larga na experiência de uma geração. Quase pedimos desculpas por tão prolongado prefácio, mas não o fazemos, pois nada mais necessário que deixar claro o porquê de tanto enlevar uma figura considerada tão simples pela maioria esmagadora dos que o conheceram em vida. Vamos ao cerne do caso e o façamos como se o tempo fosse presente.

Zé tem cútis claras, barba rala, não gosta de usar bigodes, o rosto é ovalado, tem os cabelos cortados bem rente ao coro cabeludo, nada que o afaste muito dos tipos que povoam todos estes córregos de Piraguara, desde o nosso Oiapoque (Malacacheta) até o nosso Chuí (Córrego da Bárbara). Machado tem um jeito estranho de andar, é baixinho, mas de passos largos e decididos, aliás, única exceção que o aproxima de alguma esperteza, em tudo o mais é uma lesma. Mas, quando assim anda, as pernas avançam ágeis, quase aos saltos e distantes uma da outra, dando a impressão que têm urgência, mas se evitam. Do jeito desengonçado como anda, poder-se-ia jurar que o atrito do pano incomoda ao matuto de meia-idade senhor daquelas pernas tão sofridas e mal conservadas em sua base de sustentação, os pés. Talvez por isso, Candinho tenha um caminhar atípico, de movimentos que parecem no limite da instabilidade. Só mesmo por um milagre que dificilmente percebemos de tão acostumados que a eles somos o seu corpo não se emborracha no chão: o tronco oscila para a direita e esquerda qual pêndulo de um relógio de torre em busca do equilíbrio que lhe é eternamente negado, e nisso se assemelha ao mar que, por mais que procure o repouso, nunca encontra de ser águas calmas. Nesse caminhar, seus braços sobem até a altura dos ombros revezando-se incansáveis em movimentos largos e compassados. A posição dos pés, contudo, nega a desarmonia, e marca hora certa e fixa: quinze para as três. Há qualquer coisa engraçada e, ao mesmo tempo, intrigante nesses gestos desengonçados. Em sua maneira despachada de caminhar, o Zé inclina-se para trás a cada passo, nisso cria a expectativa de que a qualquer momento irá cair de costas ou a cabeça irá saltar-lhe do pescoço desgrudando-se de vez do corpo que a sustém. Por si só, um andar tão desconexo já seria suficiente para revelar um indivíduo de natureza complexa, uma ambiguidade de difícil descrição e entendimento, mas, como veremos, essa é apenas uma das tantas facetas deste ser tão particular.

É comum Zé Candinho vestir calças limpas e bem passadas. Gosta de andar com uma camisa xadrez de estampas que combinam com o amarelo das calças de brim, o pano preferido impõe a cor padrão. De tão limpas, suas camisas parecem novas, mas todos sabem que são velhas e surradas. Ele mesmo se vangloria e diz “É capricho sô! É o capricho!”. Em absoluto contraste, os pés, sempre descalços, dedicam-se ao sustento de alguns parasitas e, algumas vezes, de bichos-de-pé. As unhas grandes e sujas, e os dedos abertos, escancarados em forma da letra v (vê), comprovam muitas andanças e tropicões e pouca flexibilidade e disposição para realizar o tipo de tarefa que o libertaria da inconveniência: curvar-se para arrancar as batatas. O nexo entre a base e o topo de seu corpo fica apenas nos atributos de cor e tamanho dos membros e desaparece se resolvemos examinar a sua figura por inteiro. As partes não combinam entre si e parecem pertencer a pessoas distintas: o elemento de cima não pode ser do mesmo material do de baixo. Isoladamente, os pés sujos e maltratados são complementos razoáveis para os parasitas que costumam infectá-los. Algumas vezes, os bichos-de-pé parecem ter idade avançada, a considerar as estrias e as saliências que se desenvolvem sob a pele. Para um indivíduo tão desprovido de companhias femininas e amizades mais íntimas, não se poderia esperar muito diferente, pois é frequentador de terrenos baldios, currais de boi e chiqueiros, lugares sabidos serem celeiros de tudo quanto é tipo de inseto peçonhento, e não tem quem o aconchegue nas noites frias ou quem coloque uma bacia de água quente e pegue uma agulha de ponta fina e arranque-lhe as batatas com dor, mas com amor; e, ainda mais, sempre anda descalço, não usa sequer uma sandália surrada. Não poderia haver melhor arremate, já quase desnecessário, para quem se arrisca a formar um conceito dele, se visto pelos pés: o pé inteiro é seu calcanhar de Aquiles. Mas, subindo o foco de nossa observação, a visão é bem diferente, o homem acima da canela é outro. Essa impressão não é causada apenas pela roupa limpa e bem passada, há mais adereços que a corroboram, os cabelos são bem penteados, a barba e o rosto bem cuidados. Embaixo, um homem pobre, um mendigo, um pé de pavão; em cima, um homem capaz de posses que tem cultura e hábitos de higiene. Tem aquele jeitão de gente boa, poderia ser até um político, pois uma certa ingenuidade e ares de honesto sempre caem bem e atraem o povo. Mas em alguma parte entre a canela e o umbigo, o mendigo se funde com o remediado, e, se dependesse apenas de atribuir pesos às partes de baixo e às partes de cima e dividir por dois, poderíamos estar na frente de homem, na média, comum, do mesmo modo como um homem com os pés no fogo e a cabeça enterrada na geladeira teria uma temperatura média ambiente. Contudo, essa dualidade física não se sintetiza, ao contrário, mantém-se e se estende para o comportamento em múltiplas idiossincrasias (desculpem o palavrão!).

Zé costuma tratar as coisas inanimadas como se vivas fossem, mas o faz sempre de forma discreta, nisso é mais um romântico do que um excêntrico. Para assentar-se em praças públicas, ele sustenta um certo flerte com o banco, como se fora um primeiro encontro com uma garota bonita, dele se aproxima devagar, quase sempre com rodeios, dá volta completa e costuma repetir a viravolta antes de decidir se abancar. Não fosse dessa beira da zona da zona da mata onde “homi é homi e mué é mué”, Zé poderia ser confundido com um certo tipo delicado ou um almofadinha. Tem trejeitos, mas é tímido e precavido contra pregos. O certo é que ele jamais vai direto com o traseiro ao banco. Nisso é sistemático, só admite uma abordagem direta para bancos de cozinha, varanda ou poltrona da sala com os quais já tenha intimidade anterior, e esses são em profusão, pois muitas são as casas que frequenta. Bancos de praça, públicos e fáceis de serem abordados, fazem-no esquivo. Se perguntado por que é tão cerimonioso, explica com frase pensada: “não aprecio mulheres e bancos oferecidos, se quando a esmola é muita o Santo desconfia quando as tábuas são estreitas as saliências do corpo temem frestas”. Se essa conversa for com gente de casa e do sexo masculino, mostra-se mais aberto e arremata: “quem não protege o próprio saco, o que mais há de proteger. Quero levantar-me inteiro”.

Dizer que Zé é marcha lenta é dar-lhe rapidez superlativa, melhor seria afirmar que ele faz tudo devagar ao extremo e sua vida não conhece o significado da palavra pressa. Certamente se encaixaria bem no anedotário popular e não conseguiria tomar conta de dois bichos-preguiça sem que pelo menos um fugisse. Tem todos os predicados para ser baiano, mas é mineiro da gema. Tem a mania de arregaçar as calças quando se assenta. Antes de descer o traseiro em busca da acomodação do assento, ampara-se, põe um dos pés na base do banco, leva as mãos à bainha da calça e a arregaça, sem afobação, primeiro a perna direita, depois..., trocando vagarosamente de ordem..., a esquerda. Repete esse ritual meticuloso e busca nele a perfeição. Candinho poderia citar Fernando Pessoa, se dele tomasse fé, para justificar tanto esmero: “Dê tudo de ti no mínimo que fizeres”, e bota mínimo nisso! Zé faz questão absoluta, uma obsessão, de que as três dobras que dá em cada perna das calças tenham larguras idênticas. A tarefa que seria simples complica-se, pois além da simetria entre as pernas, Candinho se desafia, por razões extra razão, quer o vinco perfeito. Poderia passar uma vida com os pés cobertos de bicho, mas não consegue dar um passo com calças mal arregaçadas. Para tanto zelo, tem ditado próprio e vulgar: “homem de brio e tesão não deixa a calça se arrastar no chão".

Zé não tem moradia certa, hospeda-se na casa de alguma alma caridosa que o acolhe. Carrega na ponta da língua uma defesa inquestionável contra as donas de casa que costumam criticar a sua doentia preguiça: “As escrituras sagradas já previam a minha existência: sou como os pássaros, não planto nem colho, mas como do bom e do melhor”, argumento infalível para senhoras devotas, como são as do lugar. Mas não se pode dizer que tenha passado a vida em brancas nuvens, quando jovem, Candinho tinha forças para o trabalho, pagava o pernoite com tarefas leves: rachava lenha, descascava milho, punha o sabugo ao sol e ajuntava gravetos no quintal. Mesmo naqueles tempos, já tinha um pequeno defeito: cochilava no trabalho. Quando as tarefas eram no paiol de milho, não resistia à tentação de uma cama de palha, pegava sono pesado. Muitas vezes era flagrado a madornar minutos depois de entrar no paiol para descascar ou debulhar milho.
Candinho não sabe, mas é socialista puro: quer receber segundo suas necessidades e contribuir segundo suas possibilidades, estas mínimas e aquelas máximas. Gosta do bom e do melhor, mas, em troca, tem pouco a oferecer. Essa indisposição para o trabalho tem aumentado com os anos e já devia tê-lo feito mendigo, mas há nele uma aparência de carência, quase inocente, que desperta a bondade humana e faz com que alguns fazendeiros o protejam. Zé faz emergir o melhor nos que já são melhores. Vive de casa em casa num rodízio casual que garante sua sobrevivência, pois ao sacrificar ora um, ora outro,  acaba por distribuir o peso de sua presença entre os bons que o acolhem. Alguns meses na Casa de Juquinha do Moreira, outros na casa de Sotero, de Sodiga e de tantos outros, e a vida vai passando. Ninguém fica mais pobre por ajudá-lo, alguns até mais ricos, e todos, com certeza, mais felizes. Na casa de Sodiga, que mora na Vargem, há muito trabalho, Candinho agasta-se com o clima dessa fazenda, é frio, bom para ficar poucos dias e de preferência quando não há colheita nem plantio.

Candinho tem humor inato e não preenche expectativas. Tal imprevisibilidade aparece até na maneira de coçar o queixo com movimentos largos, desnecessários e lentos. Tudo nele leva ao riso. É versátil, sabe assoviar como ninguém e usa recursos pouco ortodoxos, como o de dividir o sopro com uma palha de milho do que consegue tirar um incrível som de dobrado capaz de empolgar uma pequena plateia, quase cativa, que sempre está a rodeá-lo nas vendas, nas praças públicas, nos bailes de roça e até nos velórios. Quando dispõe de público maior, cobre um pente com um papel fino e sopra contra ele imitando gaita de boca com perfeição. É vaidoso de suas habilidades artísticas e, sempre que rogado, atende ao público. Diz que detesta molecagem e prefere plateias mais selecionadas, dessas que sabem apreciar um dom e que elogiam e dão uns trocados para pinga. A danada da cachaça... toma só quando está no povoado em temporada de festas. Ainda bem que as festas são poucas, porque bêbado é um sal amargo: risadas esganiçadas, boca suja, braçadas ao ar, nenhum respeito a idosos e mulheres, vomita o que comeu e o que pensa.

Machado, como algumas vezes é chamado, é uma fábrica de tiradas que ficarão na história do lugar e algumas podem ser classificadas como humor fino, como aquela em que perguntado sobre seu prato predileto respondeu: "No Brasil prefiro frango com quiabo". Depois resistiu à chacota dos mal-humorados com uma explicação que aumentou o contrassenso: “Tem graça! Só porque eu nunca saí de Piraguara! Eu não preciso ficar viajando pra lá e pra cá pra saber do que eu gosto mais no mundo, sou definido. Tem gente que não gosta de quiabo e pronto, mesmo se o quiabo melhorar ou a boca mudar de gosto, eles não vão comer quiabo só porque já decidiram que é ruim, e sempre será”.

Repete, sempre que se vê na situação de bobo, o velho adágio: "Eu finjo de bobo para viver" Quando percebe um ingênuo no meio do povo, e se aquele está a caçoar dele, diz entre insonso e pensativo: “O que seria do bobo do Rei se o Rei não fosse meio bobo”. Isso vira uma verdadeira festa quando todos entendem a indireta menos o “Rei meio bobo”.

Perguntado sobre suas namoradas, lista as moças mais bonitas do lugar. Há indícios de que as solteironas gostam de participar dessa relação e que a disputam como forma de publicidade gratuita. Algumas delas até se submetem a andar de bonde com o Candinho, por alguns metros, como forma de constar da lista. Este footing, que anima a praça de Piraguara nas noites de sábado e domingo, só é patético para quem é pateta, mas o certo é que Candinho se alinha à moça e lá vai ele num passeio fugaz, lado a lado (que por aqui é chamado de andar de bonde), sem conversa, sem olhos nos olhos e sem mão na mão.  Anda apenas alguns metros pareado à dama, mas realizou seu fim de semana.

Candinho, você tomou café com o quê? Resposta: “Tomei café com o simples mesmo”.
Tem fala arrastada e sem pressa que combina bem com a sua indolência. É modelo perfeito para um caipira: fosse contemporâneo de Monteiro Lobato, poderia tê-lo inspirado, e teríamos um Jeca-tatu ainda mais representativo.

É atrevido no trato com as pessoas, mas não tem força nem física nem moral para se fazer respeitado. Sabe agredir com palavras, mas faltam-lhe músculos, então, tem que se sujeitar às brincadeiras de mau gosto. Não tem como resistir quando a rapaziada se organiza para lhe dar tratamento, dito, especial.

Sua cabeça movida a calmaria não suporta o uso de latrinas. Prefere bananeiras onde calmamente pode ficar horas para realizar suas necessidades mais sólidas. Embora tal regalia lhe traga constantes dissabores, pois a meninada logo descobre seu esconderijo e esconde suas roupas bem longe, mantem-se convicto de que é a melhor maneira: “Candinho, por que uma bananeira?” Resposta: “Detesto pressa e ter que me justificar todo tempo e ficar gritando: tem gente!”.

Tem algumas respostas interessantes para perguntas do tipo: “Vamos tomar uma pinga e comer um churrasco lá na cachoeira? “É claro”, responde alegre e continua: “Cê já viu tamanduá bandeira recusar formiga cabeçuda!”

Assim era o Candinho. Mais posso contar, só se for perguntado. E fica o desafio: quem souber e quiser pode postar abaixo, como comentário, algum caso ocorrido com o nosso herói.

sábado, 16 de outubro de 2010

Memórias da poeira

Lulu de Sodiga


Maio de 1952. Piraguara está em festas, um palanque foi armado em frente da igreja. Os eclesiásticos montaram arquibancadas de bancos de madeira em sua lateral, aproveitando a inclinação do terreno. A praça agora é um pequeno estádio daqueles que têm assentos de um lado só. Tábuas lisas de tanto serem usadas, prova de fé do povo, a esperar muita gente que virá cantar músicas de igreja e ouvir o sempre empolgante sermão do Padre Arlindo.

Um menino, Carlos de Paiva, amante do arraial desde que se entende por gente, está naquela praça. Como tantos, ele é admirador de tudo que se refere ao lugar, a começar pelo nome adotado a partir de 1923, ano em que a capela foi elevada a categoria de freguesia. Há poucos dias, ele tomou conhecimento de que o arraial está se preparando para a emancipação. Há um movimento político para que o distrito seja elevado a categoria de município, os adultos estão falando sobre o nome a ser adotado pela nova unidade do estado, e a maioria quer a volta daquele que havia sido adotado em 1859, Nossa Senhora de Oliveira. Como sempre, há controvérsias, alguns preferem manter o nome atual. Os que conhecem a história do lugar e sabem que o nome se liga às raízes da terra e à alma da gente mais simples tentam convencer os demais.

“A agitação desta praça é só em tempo de festa, fosse dia de semana, isso aqui ficava parado que nem o Macuco” pensa o garoto.

Do lado de baixo da igreja, um gramado exuberante coloca verde, que é sempre mais belo, no lugar da poeira vermelha que cobre as outras ruas. Quem vive aqui já está acostumado e não tem escolha, na seca come poeira, na invernada, atola no barro. Mas agora é Maio, e a lama virou pó.

Carlos vive uma semana feliz, não só pela festa, respira o privilégio de ter um lugar desses pra passear de vez em quando. Criança daqui tem espaço. Ele acredita não ter lugar no mundo melhor para brincar de bacondê, a meninada pode usar a cidade toda como território do esconde-esconde. Nesse jogo, não é muito fácil encontrar o oponente, que pode estar escondido em qualquer matagal do Matombô à rua do Sapo, é muito chão para escarafunchar, muito beco para pouco menino. Pena que as meninas não gostem destes jogos, elas só querem saber de passar anel em salas iluminadas ou de jogar maré no adro da igreja. Carlos acha que as meninas gostam de brincadeiras muito inocentes, quando convidado a participar, ele até vai, mas se dá ao desfrute de ter segundas intenções.

Carlos não sabe nadar, mas está sempre acompanhando a turma que gosta de tomar banho no “Corgo Fundo”. Apesar de o poço ser a poucos metros da praça, ali todo mundo fica pelado e dá a mínima importância ao fato de estar nu. Ele, algumas vezes, é encarregado de tomar conta das roupas, para evitar, o que frequentemente ocorre, que algum gaiato as leve para longe, ou as esconda no meio de um espinhento gravatá.

Quando a praça fica movimentada, Carlos achega-se à barraca do Zé Santana para observar o comércio e os transeuntes. O ambulante usa um veículo-bazar meio esquisito, um cômodo de madeira com rodas de pau. Carlos nunca viu aquela geringonça em movimento, até duvida que ande, mas para ele o que interessa é o conteúdo: brinquedos, balas, enfeites, pentes de chifre e espelhos com estampa de time de bola. Como são belas as flâmulas do Vasco.

Nesta festa, a praça está toda tomada de barraquinhas. Bandeirolas de papel de seda cobrem os pontos de maior animação. A oferta de miudeza é grande. A garotada baba por qualquer bagatela. Os mais simples enfeites despertam fantasias que só os pequenos conseguem ter. Aqui e ali, veem-se meninos e meninas paralisados pela visão de brinquedos coloridos, bonecas bem vestidas, carrinhos de plástico.

— Papai, eu quero dez tostões pra comprar aquele canivete – a voz é de um ruivo, bem pequenininho, dirigindo-se ao pai que mal lhe dá atenção.

—Mamãe, por favor! Aquela bonequinha é barata demais, me dá uma, me dá! — grita uma menina embirrada.

—Seu Zé, o senhor faz um desconto de cinco tostões? — agora quem fala é a mãe, com aparência de vencida. O pai, um pouco atrás, já apalpa a carteira, sua cara de pão-duro é cortada por sulcos de reprovação.

—Faço Sá Maria, faço — Responde o sempre alegre Zé Santana. A cara do pão-duro se definiu, agora, os cantos da boca curvam-se levemente para baixo, resignou-se frente ao inevitável gasto.

Acima da barraca, que está estacionada perto da saída para Piranga, fica a casa paroquial. Um pouco a frente, um menino de chapéu de palha corre atrás de um cavalo que passa em disparada. Mais alguns metros, o caramanchão, onde as meninas gostam de namorar, belas trepadeiras adornadas por buganvílias e rosas.

De vez em quando, Carlos vai jogar dama com o Padre José, mas desconfia que o reverendo, se entende de damas, dever estar escondendo o jogo, pois como explicar que até um pirralho, como o Geraldo, ganhe dele. Este, o Geraldo, é mesmo esquisito, como afilhado do vigário devia dar exemplo, mas é sempre o primeiro a levar tapa na cabeça, quando a turma ri na Igreja. Mas, nisso, ele não está só, todo garoto desta paróquia, pelo menos uma vez na vida, levou um safanão do Vigário, parece que ele age como se fosse um segundo pai e se sente na obrigação de ajudar as mães a educarem estes capetinhas. Ademais, estes meninos do povoado são mesmo patetas e estão sempre a rir de coisas sem a menor graça, qualquer insignificância, quando acontece na igreja, vira a maior piada do mundo. Basta que um olhe pra cara do outro que já desandam o riso, chegam a perder o fôlego. Os marmanjos também sofrem deste mal. Outro dia, no meio da missa, o padre, incomodado com um barulho infernal que vinha de fora da igreja, voltou-se para os fiéis e disse:

— Vocês não estão ouvindo esta sanfona tocando? Por favor! Alguém vai lá fora e peça ao sanfoneiro pra parar de tocar.

Foi então que o Berto gritou lá do meio da igreja:

— Isso não é sanfona não seu Padre! Isso é buzina de caminhão! — Só por isso, o povo caiu na gargalhada, por alguns segundos a igreja parecia um circo. Quem estava perto do altar viu que até o reverendo, sempre tão sério, esboçou um leve sorriso.

Neste mundo tem gente esquisita demais. Outro dia, Carlos ouviu dois homens dizendo que não gostavam do arraial só porque sua luz era pior que lamparina e que o lugar era muito quieto. Ai o Carlos pensou: ”Bobos e exigentes, deviam conhecer a Casinha, lá nem luz tem, e movimento então!” Perto de lá, isto aqui é uma babel. Nesta Missão, ainda não apareceu algum alienado de carteirinha, nem mesmo o simplório do Candinho está no arraial, deve estar doente. Carlos pensa: “Cadê o Gustin Norato e a Sá Marilia?”. Na festa anterior, chegou aqui um tal de Juca do Lamim, o homem é engraçado, anda com as pernas presas, quando caminha costuma perder o equilíbrio, e, se o terreno é a pique, ele tem que correr para não cair. E este tal é perigoso, repete tudo que lhe dizem, age como papagaio, tem memória boa, mas não sabe pensar. Os maldosos colocam em sua cabeça os maiores disparates, coisas absurdas. Depois, sem critério ou freio, ele simplesmente solta o que gravou na presença de qualquer um, basta colocar um papel em branco, ou um jornal velho em suas mãos e pedir que leia. Ele abaixa a cabeça, olha para o papel e dá descarga na memória. Não são poucas as vezes em que um inocente vê o nome da própria mulher, ou da mãe na boca daquele néscio, isso sem nenhuma razão. Sabe-se que lá em Rio Espera, um marido ciumento bateu na mulher por causa das intrigas feitas a partir deste pobre.

Carlos, apesar de novo, é observador, já percebeu que os que ficam zanzando na praça não moram no povoado, são da roça, como ele. O Padre convoca e todo mundo vem pra Rua, de patrões a empregados, não há exceção, as fazendas ficam vazias. A Igreja é respeitada. O menino não entendeu bem, mas dever ser coisa boa, aquilo que ouviu da boca do Amantino, quando este elogiava a obediência do povo:

— Nosso Padre é secular— foi o que disse e repetiu com ares de quem sabia o que falava.

As festas de igreja são a alegria dos da terra, não há outra forma de socialização. A exceção fica por conta de João Pedro da Vargem que vem no primeiro dia e sempre de caminhão, todos chegam de véspera em carros de boi, charretes e a cavalo. Trazem colchões, panelas, cachorro, papagaio e alimentos. É preciso bastantes mantimentos, pois vão ficar uma semana à-toa, sem a menor preocupação. Gente sem serviço e feliz come mais, é o que diz Felipe Tareco, aquele do beiço avantajado.

Quem pode tem uma casa na Rua só pra essas ocasiões. Desta vez, a família de Carlos veio pra ficar a semana toda. Todos estão dormindo na casa da avó. Ele adorou, nesta mesma casa estão arranchados seus três tios e a filharada, meninos e meninas, todos na sua faixa de idade, de sete a dez anos. “Isso é o paraíso!”, Pensa ele, “de dia a rua enfeitada, banda de música e o povo alegre, de noite, depois do foguetório, pipocas, broa de fubá, brincadeiras de casinha com as primas, guerra de travesseiros e farra até tarde.

Fim de festa. Tristeza. Êxodo. Manhã de frio intenso. Uma fila de carros de boi preenche as estradas em todas as direções, suas rodas cantam para embalar a tristeza de Carlos. Ele segue de cabeça baixa, mas a levanta quando passa pela bica do Xandi Fidelis, quer dar uma última espiada. Seu pai, como sempre faz quando passa por ali, tira o chapéu. Nunca disse o porquê desse gesto, mas o menino sabe, é de gratidão para com a natureza, o velho respeita aquela água cristalina que lava os pés de quem chega ao arraial (vêm descalços até ali, e entram na cidade de pés limpos).

A Rua fica para trás. Aos poucos, o cheiro de povoado esmaece, e a torre da igreja some na paisagem, então, alguém grita no carro da frente:

—Hein gente! Vamos pisar firme no orvalho! Ano que vem tem mais!

Um sorriso ilumina a face do menino. Ano que vem tem mais.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Raio




Glória Magalhães Albuquerque

Era Janeiro de 1962,fui passar uns dias na fazenda de meus tios, em Senhora de Oliveira, eu estava grávida, no sexto mês, com uma barriga bem grande.
No fim do mês meu marido voltou sozinho a Belo Horizonte, por uns três dias.
 Segunda-feira, dezessete horas, acabei de jantar, comecei a suar de calor devido aos pratos de sopa fervendo que tomei. Encostei-me na janela da cozinha para receber o ar fresco que vinha do terreiro. Uma chuva fina começou. Levantei o braço esquerdo e apoiei no batente da janela. Eu olhava minha tia Amélia cortando as carnes de um porco que o tio havia matado naquela manhã. As crianças dela estavam sentadas junto a uma mesinha, ao lado do fogão de lenha e jantavam.
— Já jantou Glória? A tia perguntou.
—Comi dois pratos de canjiquinha. Respondi
Naquele exato momento senti um impacto no meu ombro esquerdo, como se fosse um tiro, mas não vi nada, desmaiei, caindo longe da janela, no meio da grande cozinha. Um dos meus sapatos voou e caiu dentro do prato da  minha priminha Beth. Segundo ela, um fogo desceu da minha mão esquerda, isto é, da aliança de ouro, até meu ombro.
Fui carregada pelo meu tio Othorgamim para o quarto e logo voltei a mim. Contaram-me que fui atingida por um raio. Eu fiquei toda molhada e falei com a tia que estava perdendo o neném. Minha tia ficou preocupada e mandou chamar o médico na cidade.  Era meu tio Sô Diga “médico prático”, mas um bom médico.
Minha tinha saiu do quarto e voltou rindo, dizendo:
— Glória, você não está perdendo a criança, a bolsa não rompeu. A cozinha está molhada, mas é de xixi, eu cheirei e senti que é urina, você se molhou toda, de susto.
A chuva continuou, ficou mais forte, anoiteceu e as águas do rio cobriram a ponte, meu tio Sô Diga não pode nem ser avisado.
Em Senhora de Oliveira, no mesmo dia e mesma hora, um raio caiu em outra mulher grávida que se machucou na boca ao ser jogada no chão, pelo impacto.
No quarto eu continuava de repouso  uma hora ou mais, minha barriga ficou dura como pedra, sob forte contração,  e o lado esquerdo estava muito mais quente que o direito. Como toda grávida comecei a pensar bobagem, será que meu filho vai ficar com problemas sérios e esse meu lado esquerdo tão mais quente que o lado direito, meus Deus, o neném vai nascer com um lado queimado e  o  outro branco?
                 Então olhei para o quadro de Nossa Senhora na parede do quarto e fiz uma promessa: “Se meu filho nascer normal, eu vou consagrá-lo para Nossa Senhora e vesti-lo de azul e branco por sete anos”
No dia seguinte meu tio chegou para me visitar e saber da minha saúde e logo perguntou às minhas primas:
 —Onde está a grávida que caiu um raio nela?
— Ela está lá atrás da casa, em cima do pé de  goiaba.  Responderam as meninas.
 Meu tio mandou que eu descesse da goiabeira e me garantiu que um raio, quando não mata nem machuca, pode fazer muito bem, “você vai sarar daquelas dorzinhas na coluna e todo mal-estar da gravidez, e melhor ainda, você vai ter um filho super inteligente, porque a descarga elétrica faz bem para o cérebro”.
“Vou esperar pra ver”, pensei.
Nos dias seguintes, quando começava a chover. Tote meu marido entrava comigo para debaixo da mesa da cozinha para eu não servir de pára-raios, porque é o que  dizem das grávidas.
Três meses depois, em maio, nasceu minha primeira filha, muito inteligente, que vestiu azul e branco por sete anos, mas sempre queria usar outras cores. Até no jardim de infância, São José, ela usou xadrez azul e branco, escolhida a escola pela cor do uniforme. Ao completar quinze anos ela quis usar o vestido, a meia, o sapato, a calcinha, tudo vermelho, para matar a vontade. E ela ganhou tudo, bem vermelho.
Acho que o efeito do raio aconteceu e valeu para os cinco filhos, porque são todos inteligentes.
Obs: O dito popular diz que “Raio não cai duas vezes no mesmo lugar”, mas cai três vezes na mesma família.
1ª. vez – Fazenda Felipe Alves caiu na mãe e filha, Luciene;
2ª. vez – Caiu no segundo filho, Luiz Flávio, na Destilaria de Álcool, através do telefone;
3ª. vez ­­— Há  pouco tempo caiu na Luciene, através do microfone de videokê na Fazenda Malacacheta.
Todas as três vezes, os raios caíram perto de Senhora de Oliveira.

domingo, 26 de setembro de 2010

Gustin Norato - mito ou o quê?

                                                                                                                                 Lulu de Sodiga
Gustin Norado

A vida costuma esconder mistérios onde a loucura é a única manifestação aparente. Há indivíduos incomuns por todos os lados, desajustados de todos os tipos, mas alguns vão além da ficção. O caso aqui narrado fala de um desses e é, na essência, real. 

Na primeira metade do século XX, vivia em Senhora de Oliveira um homem chamado Gustin Norato, um obcecado por carros de boi e que levava consigo, pelas trilhas e estradas de terra, carro, cangas, canzis, correntes e fueiros, tudo produzido pela sua fantasia. Muitos conheciam essa esquisitice; mas não, as suas origens.

Sua anormalidade desenvolveu-se a passos lentos, a partir da primeira infância, como uma erosão que assoreia a alma com confusas percepções e faz a realidade esmaecer. Ainda no colo, Gustin mostrava inclinação para temas boiunos. Suas primeiras palavras, quando todos esperavam fossem “mamã e papa”, foram “vavaca“ e ‘"bobô”. Mal conseguia dar os primeiros passos e já saía de pé-leve, fugindo dos cuidados da mãe, para se abotoar no ubre de uma vaca que, habituada ao moleque, ficava por perto com o peito gotejando e pronto para amamentá-lo.

E assim, como uma flecha procura o alvo desde o arremesso, Gustin buscava, ainda garoto, gado e pastagens. Tinha sonhos, não seria médico ou advogado, não era ambicioso, o que queria estava ali perto, a poucos passos da porta da cozinha. Para perguntas que a mãe lhe fazia do tipo: “Gustin o que você vai ser quando crescer?”; a resposta era invariável: “Quero ser boi carreiro”. Ela, de uma surdez crônica, entendia que o menino queria ser bom carreiro e proclamava feliz aos quatro ventos: “Meu filho, graças a Deus, vai ser carreiro. E se Deus ajudar e São Cristovão o proteger, vai ser bom que nem o avô”.

Crianças da roça dormem cedo para madrugarem descansadas. Gostam de dias esticados para as brincadeiras. Nisso fazem bem, pois aproveitam da infância o melhor, integram-se à natureza, lambuzam-se no barro, comem areia e bosta de vaca, entopem-se de lombrigas e criam anticorpos para as futuras guerras contra os micróbios que a vida lhes reserva. Gustin não era exceção no gênero, mas o era no caso, no tipo de predileção, suas brincadeiras eram extravagantes. Levantava cedo e ia pro curral, juntava os bois no pasto, punha-lhes a canga e saía para o batente antes de o dia clarear. Vocação clara, outro caminho não tinha: fez-se candeeiro, e nem precisa dizer que tinha gosto pelo ofício e intimidade com os bois. Conhecia deles as manhas, distinguia-os pelo mugido, baba, cheiro e quaisquer outros detalhes relativos aos barulhos que faziam ao andarem ou ao realizarem as necessidades fisiológicas. Assim, diferenciando os animais pelas manias, o moleque logo descobriria que havia bois que eram mais espertos de manhã, outros ao meio dia e alguns que só trabalhavam depois de comerem capim meloso. Menino esperto, fazia o gosto dos animais e disso tirava proveito, com ele o gado procedia melhor, produzia mais e não fugia do pasto.

Crescia sob a bênção da velha mãe que não cansava de repetir: “não disse que ele seria bom carreiro! Não disse?” Apaixonou-se pela profissão e por algumas bezerras, mas isso é uma história profana cheia de barrancos e tombos. Por enquanto, fiquemos com sua vidinha em que amava mais os bovinos do que a si próprio e os semelhantes, os humanos. Estranho, se gostasse de uma pessoa, dependendo do sexo e idade, tratava-a por vaca, marruá, novilho, novilha ou bezerro. Só tinha empatia por uma pessoa se a traduzisse em gado. Apelidou a mulher do patrão de vaca-loira. Quando ela se engravidou, pôs-se a falar que estava prenhe e, mais tarde, que estava "mojando" e que o bezerrinho nasceria numa manjedoura.

Nesse devaneio, afirmava que era filho de um touro mestiço, Minotauro, com uma vaca holandesa puro-sangue. “Quem pariu Mateus que o embale”, seguia a vaca pelo pasto até tarde da noite. Minotauro tornou-se o seu melhor conselheiro, ouvia-o nas dúvidas pequenas e grandes. Amava e tinha orgulho do seu pai-boi. Aos que lhe perguntavam, por chacota, por que sendo holandês não era pintado como os da raça, explicava: “sou o primeiro de uma nova linhagem mestiça, vou ser gado de uma pinta só, a preta”. Rebatizava os filhos e as filhas do fazendeiro com nomes de bovídeos. Tratava-os como se fossem boi de carro: “Vamos lá Malhado! Pra fora Comando!”. Para a caçula da fazenda, dizia: “Vem cá Estrela! O tio boi vai dar-lhe uma espiga de milho”. Sua alma, como a de um boi que machuca e mata sem maldade ou intenção, era de uma pureza original. Em sua ingenuidade não cabiam sentimentos perversos ou pecados por veniais que fossem.

A conduta estranha causou mexericos e constrangimentos, e o patrão foi obrigado a chamá-lo à sensatez: “Vem cá Gustin!”; disse-lhe, “Você não pode continuar com essa conversa fiada sobre minha mulher e a dar nome de gado às crianças. Deixa de ser caipora! Já o tolerei mais que devia e quero que você pare com isso de uma vez por todas!” Com fisionomia duplamente política, semblante de boi e postura de paisagem, Gustin ouviu calado tamanho sabão, mas, de repente, como se acordasse de longa letargia de ruminação de pensamentos filosóficos, falou em alto e bom som: “Seu marruá, neste mundo tem dois tipos de gente, da que pasta e da que conta dinheiro. Pra mim, gente e gado é tudo muito parecido, tudo gosta de ser manada e ser tocada de lá pra cá, mas eu sou boi carreiro, que não gosta nem de rebanho nem de conversa mole, não sou boi cornudo e manso que nem o sinhô. Sou boi de canga, de pescoço calejado pelo trabalho, tenho queda e rompante de macho. Sou carreiro e candeeiro, e se o sinhô fosse mais parrudo, eu amansava e botava na lida, o sinhô não tenha dúvida, seria meu boi de coice preferido. Nas perambeiras, eu colocava o sinhô lá atrás, na marra, para não deixar o carro descambar morro abaixo”. Discurso bem elaborado para um boi, ideias muito malucas para um rapaz bem-criado. O distraído fazendeiro que até então não havia dado fé de que Gustin estava possuído por loucura brava caiu na real e não teve outro remédio que não o de despedir o pobre. Fê-lo não por raiva ou por vingança, mas por temer que a demência o levasse à agressividade e a desfechos incontroláveis. Prudente, queria evitar o pior. Temia pela família. Tinha filhas novas e uma mulher ingênua. Estas jamais formulariam conjecturas de perigo. Mais tarde, ainda teve que se justificar para uma atônita patroa que contestou a decisão: “Mandar embora, que ruindade! Que mal pode haver neste pobre coitado? Um menino ainda! Tão madrugador, prestativo e respeitador, de pouca conversava e bem adaptado a este triste destino de agregado”. O marido foi lacônico: “Mulher, você não sabe da missa a metade”. Não disse mais nada e não aceitou mais perguntas.

Despedido, Gustin não se fez de rogado, entendeu logo que não teria mais as vantagens de um pasto fixo, “Daqui pra frente vou ser boi de estrada”, pensou e agiu, nem voltou em casa para pegar seus molambos e seus canecos de coité. Pé na estrada e alma nas capoeiras, sem medo da nova vida. Ganhou o mundo, sem rumo e intentos. Naquele dia, morreu o restinho de gente que ainda habitava aquele corpo e nasceu o Gustin Norato do resto da vida, ícone do carreiro da mitologia local que criou, ao seu redor, um mundo repleto de bois, de carros, de cangas e acessórios que acompanham todo carreiro que se preze. A criatura encontrou finalmente seu destino, perdeu totalmente a noção da realidade e em seu lugar colocou um obscuro imaginário. Todas estas transformações eram, ainda, insuficientes: Gustin, que já era carreiro, tinha que ser boi, mas queria ser carro. Alguma coisa cerebral quebrou-se nos interiores do "homo sapiens”, alguma alma penada de boi carreiro ocupou, de forma enigmática, todos os espaços não humanos do cérebro de Gustin Norato. Essa metamorfose produziu uma nova espécie.

Quem o via por aquelas estradas não sabia dizer o que predominava nele, se o boi, se o carreiro ou se o carro? Gustin finalmente se tornou uma trindade: carro, boi e homem. Pra boi só faltava chifre; pra carro, rodas e para homem, a consciência do Ser.

Livre de fazendas e rebanhos, Gustin carreava quando queria, exceto na invernada, e explicava: “Bois escorregam demais no barro e ainda não inventaram ferradura pra boi, é que seu casco não aceita cravo”. Gostava mais dos carretos no mês de maio, estradas secas; mais poeira, menos calor e suor.

Encontrar Gustin Norato nas estradas era uma experiência única, anunciava-se com estardalhaço à grande distância: primeiro ouvia-se a cantiga da roda do carro, em seguida a gritaria: “Entra Queimado! Pra fora Dourado! Ôa! Ôa! Ôa!”. Quando a comitiva se aproximava, o barulho das correntes arrastadas pelos bois tornava-se mais nítido. No primeiro contato com esse tipo bizarro, qualquer pessoa teria um choque de expectativas: esperava-se um carro completo, aparecia um homem solitário e franzino a arrastar uma corrente com uma canga. Geraldo Ferro Véio, que não conhecia o fenômeno, custou a entender que ao invés de encontrar-se com um carro lotado, puxado por pelo menos duas juntas de bois, apareceu-lhe um único homem, magro quase esquelético, carregando uma canga atada a uma corrente e fazendo uma grande algazarra. A cena o impressionou tanto que teve insônia por duas semanas. Interrogava-se: “Tive uma visão ou fui acometido por algum mal súbito e perdi a consciência?”. Sua inquietação só veio a cessar quando João Pedro o acalmou: “Ferro Véio, o que você viu não foi assombração, não se incomode tanto! O que você viu existe em carne e osso e está vivinho da silva! É o Gustin Norato”.


Galdino, o filósofo da região, deu significado a essa vida tão inusitada:
— O que vocês pensam que são? Acham-se melhores? Quantos de vocês têm uma existência dedicada a uma missão? Gustin tem e a realiza com sucesso. Vocês, parvos e pobres de espíritos!.... Vocês acreditam em destino? Não conseguem encontrar uma razão cósmica para um homem passar a vida inteira a berrar por estas estradas poeirentas. Se são adeptos da causalidade, eu poderia dizer para engolirem sua racionalidade. Um homem como esse tem mais ou menos sucesso que grandes vultos da história? Não estão todos a buscar uma diferenciação que os distinga e os tire da vala comum e das estreitas possibilidades humanas? Loucura sem propósitos? Não posso afirmar. E o rasto que deixa na imaginação das crianças? Vidas ao vento, objetividade da existência, Napoleões, Césares, expoentes da história, o que deixaram maior ou menor? Gustin deixou suas pegadas, você as deixará? Seria a vida um passar de Noratos: alegrias, ilusões, gritos e gemidos. Pensem bem nisso! É fácil ser gado sem ser de rebanho?

“Ô Sinhô, seu pessoal da Leoa
que não sabe fazer macarronada.
A madrinha Carolina
dá notícia da tia Maria”.

Gustin cantarolava esses versos quando mostrava seus traços humanos e suas origens: nasceu no início de século XX num córrego chamado Leoa que fazia parte da grande Rio Espera, cidade bonita de Minas Gerais.