Por Lulu
Chega pelo lado do Corgo Fundo, onde as lavadeiras debruçam-se
sobre trouxas e delas retiram roupas e lençóis que mergulham no açude. A
sujeira desce água abaixo em borbulhas amareladas, que denunciam a poeira e o barro
do arraial. Mulheres novas, bonitas e
bem acabadas da cabeça à sola dos pés, que embalam suas bacias com canções da
moda ou com línguas afiadas contra políticos e vizinhos. O dia mal desponta e lá
estão alegres e decididas no afã de esfregar, quarar e secar. O lugar homenageia a limpeza e a natureza: do outro lado da estrada, uma bica lava os pés dos que
chegam e refresca quem tem sede ou calor. Potável, clara e quase gelada, essa água desce das terras de Xandi Fidelis, que zela pela sua pureza e temperatura cingindo o
filete com plantações de bananeiras, inhames e gravatás.
Boca de Sapo atravessa o Matombô sem reparar nos poucos moradores que já estão de pé. Roceiro de pés descalços, chapéu de palha de aba larga, bolsos vazios de dinheiro e lenço, e sorriso amarelo. Lá vai ele com seu jeito desengonçado de andar sobre os pedregulhos que a rua acumula, os quais o vento fez emergirem.Carrega o peso da traição que, como no nono círculo do inferno de Dante, desce ao coração, esfria a alma, endurece o rosto, congela o peito e faz doer músculos, cartilagens e ossos. Segue envolto numa atmosfera em que tudo que o espírito não apazígua transforma-se em gelo e convida o inferno e os que nele habitam. Um corpo em conflito com a consciência, campo de batalha para um silencioso duelo entre trair, um amargo remédio, ou relevar em covarde acomodação.
Entra na praça. A venda do Jadir ainda está fechada, o caixeiro e
os fregueses dormem e sonham com pechinchas e balanças
de prato. Dois meninos brincam no átrio da Igreja Sagrado Coração de Jesus, a
inocência levanta-se cedo para pular sobre ladrilhos carijós. Gustin dorme
enrolado num paletó surrado, falta-lhe o conforto de uma cama com o calor de
uma mulher. Com chuva ou frio, este dorme sempre ali, do lado da janela da
sacristia, é excêntrico também no filosofar, é dele a cota: “não sei como morre
tanta gente e não falta tábua para caixão”; vivesse na época de Sócrates e
tomasse banho em plena rua, seria taxado de cínico. A sacristia fica nos fundos
da igreja e nela descansa a imagem do Senhor dos Passos, que se resguarda para
a semana santa quando representará para os paroquianos, através de chagas e expressões de sofrimento, o martírio de Cristo.
A Igreja está fechada, mas Boca de Sapo nunca se esquece de que lá
dentro há uma legenda
que mexe com a sua cabeça. Letras
enormes dispostas numa fita suspensa por dois anjos, uma forte mensagem religiosa pintada na parede sobre o altar.
O que significa aquilo? Por que o incomoda tanto? E agora que passa por
ali, os dísticos surgem impelidos por fantasmas que os movimentam em sua direção, parecem claros,
nítidos, e saltam na sua frente numa sensação estranha e dolorosa, quase real,
de um martelo a pregar, com 25 estocadas, cada uma das daquelas letras em sua
testa:
“A d o r o t e d e
v o t e l a t
e n s D e i t a s”.
Boca de Sapo não é de ir à igreja, mas, no pouco que vai, seus olhos
não conseguem desgrudar daquela mensagem cujo centro é o sacrário. A intrigante citação é seu mistério; e agora a última palavra, seu
algoz: deitas! Deitas! Deitas! Mas tem pressa, segue seu caminho, não há
como aplicar seu espírito ao compasso do insondável, só pensa em cumprir sua
promessa. "Concentre-se, Boca de Sapo!" um espírito rigoroso está a
cobrar-lhe. “Vá por você e por eles!” Ele obedece e prossegue a passos firmes.
Não hesita quando passa pelo Morro Cavacado e adentra ao Atrás do
Morro. Esta pequena curva é o último portal para uma mudança de decisão, mas não
cede àqueles reclames que enfraquecem a vontade. Anda mais alguns metros e bate
na porta da delegacia, ninguém quer atender. Insiste. Demoram. Mas finalmente
um soldado, com cara de preguiça e alma soberba, abre a boca em enorme bocejo e a porta, mas não
a escancara como fizera com aquela. Olha para Boca de Sapo de meia-jota,
ostentando pouco caso, e informa que o delegado especial, o Coronel Penacho, ainda
não tinha chegado. E para completar a humilhação, o militar recrimina-o:
— Cidadão, isso são horas de incomodar a autoridade maior! Não
sabe que dia é hoje? Por que não desembucha logo, se for o caso, eu anoto e
repasso.
Não é hora para anotações e lembretes, Boca de Sapo sabe que não
deve ser muito respeitoso com aquele intrometido:
— Não converso com baganas quando o assunto é cigarro de
palha.
Disse seco e firme.
O soldado torce a cara enquanto pensa: “sábado cedo, ainda tenho
que aguentar um mequetrefe desses com esse estranho palavreado. Um homem, que
valoriza tanto o cigarro de palha, só pode ter vindo denunciar algum roubo
de fumo de rolo”. Engana-se.
Boca de Sapo espera duas horas numa salinha menor do que a
despensa de sua casa, que seria pequena para quarta e meia de milho. Lá
fora a manhã perde a neblina enquanto lá dentro a sala ganha calor que traz
sono. Boca de Sapo cochila de pendular na cadeira e, como um carro velho, pega
no solavanco, mas não cai. Um segundo de madorna parece um século quando
sonhado: vê sua filhinha a abraçá-lo dizendo que o ama pelo que irá fazer “Não
há traição, papai”, disse sorrindo. Mensagem tão sucinta, mas cravada nas raízes
do ser, um bálsamo fugidio com cheiro de salmo.
Da janelinha da delegacia, Boca de Sapo percebe a autoridade
maior que caminha pelo meio da rua pisando com zelo a própria sombra, que se
deforma sobre um chão irregular. O sol inclina-se no zênite. O delegado entra
sala adentro palitando os dentes e sugando fiapos de carne com um repuxão de ar
— restos de costelinha da Pensão da Maria Gomes infiltrados entre dentes
encavalados —. Embora não haja nenhuma ocorrência para ocupar a
autoridade, o mequetrefe tem que esperar mais alguns dilatados minutos, tudo
para apequenar quem já veio humilde. Sente-se transparente, inútil, esticado
sob uma escala de insignificância entre um João-ninguém e um borra-botas. Mas,
finalmente, o soldado o convoca:
— Entra cidadão! O delegado o espera.
— Quero fazer uma denúncia!
Diz mesmo antes de qualquer bom dia ou de o delegado fazer
qualquer menção de que irá ouvi-lo.
— Vamos com calma, cidadão!
Diz o soldado e completa:
— Espera o doutor Penacho lhe dirigir a palavra.
Cala-se, é bravo, mas hoje é dia de reter toda raiva, represar
toda vontade de xingar, dominar o ímpeto de briga. Veio para acatar e não
para ser reverenciado. “Crista baixa do lado do Penacho” se não pensou, sentiu
a necessidade. Frente a frente com o delegado, espera alguns minutos no
condensado silêncio do diminuto espaço e já duvida de que a autoridade tenha voz.
Tem. Finalmente o alívio de ouvir sair
dali um som cavernoso, um rugido
das profundezas do poder:
— Qual o seu nome, e o que o traz aqui?
— Meu nome é Antônio Van Hausberg, sou metade brasileiro de sangue
quente e metade holandês de sangue azul, mas aqui sou conhecido como Tuin Boca
de Sapo ou, simplesmente, Boca de Sapo.
O delegado não teve como conter o riso, o apelido era muito
apropriado, pois só agora reparava na boca do cidadão, um extenso vale ligando
duas orelhas, também, enormes. “Uma boca assim pode fazer sucesso na política
se a cabeça que a controla tiver miolos na mesma proporção de seu comprimento”,
pensou. Mas o cidadão não deixa a autoridade ficar remoendo
pensamentos que o divertia, quer ir direto ao ponto:
— Quero denunciar, com toda minha força e vontade, um grave crime
que vem ocorrendo em minha região. O jogo de búzios. Ali o mal enturmou, o
diabo entrou, e Deus deixou.
— Seja mais claro, cidadão! Deus não faz vista grossa pra falta de
vergonha na cara. O Delegado não tem o dia inteiro para colocar-se à sua
disposição.
Diz o aplicado soldado.
— Não me acode melhor explicação nem outro desfecho. Uma fila de
um e muitos pegos na unha do cão, o demo mesmo! Não colho outro senso.
— Mas jogo de búzios, aqui nem praia tem, seu Boca!
Diz o delegado
— A Bahia pode mandar todas as suas milícias para cercarem esse
desmando do tinhoso, aqui não tem nem um grão de areia, mas a casquinha de caramujo
vai acabar com nossas famílias.
— Até onde conheço, búzios é coisa de predição nas mãos de
orixás. As conchinhas só trabalham no campo da divindade.
— Engano dessa excelência, aqui nesta Piraguara as pessoas desvirtuam. Tudo que tem dois lados e que pode cair aberto ou fechado já dá margem a apostas e ganância.
— Mas como é isso mesmo, senhor Boca de Sapo? Os desgraçados estão assim tão viciados no jogo a ponto de prejudicar as famílias?
— Prejudicar a família é pouco, estão levando a comunidade toda
para o abismo do quinto dos infernos!
Disse Boca de Sapo, muito alterado.
— Me explique isso melhor? Não entendo como pode ser tão grave um
joguinho à toa, um passatempo inocente.
— Não diminua o poder do vício, doutor. Não é uma questão só do tempo que se perde lançando aquelas malditas conchinhas e torcendo para que
caiam de acordo com as apostas, é dinheiro vivo! Quem vê só o ato e as pessoas
debruçadas sobre aqueles restos de caramujos jogados na mesa não percebe o efeito esparramado nas casas.
— Estão apostando dinheiro. O senhor tem certeza?
—Certeza máxima, mais certa do que
estou aqui agora sentado na frente dessa excelência. As famílias já estão
passando até fome, ninguém mais trabalha. Os homens só pensam no jogo. Os
solteiros transformaram-se em vagabundos; e os casados, além disso, esquecem
até as obrigações de servir a patroa nas necessidades camais.
— O senhor quer dizer, necessidades
carnais?
— Não, senhor, camais mesmo, eles chegam às
suas casas esfarrapados das noitadas de jogo e mal têm tempo de tomar um café amargoso, e lavar os pés antes de caír no sono, se esquecem de que cama não é só para dormir.
— Tá bom! Tá bom! Já entendi. Estão
ficando frouxos! Então vamos ao que interessa, o senhor veio mesmo por quê?
Quer que eu prenda esses safados?
—Prender... Prender é pouco, tem que dar uma coça de deixar saudades, deixar esses mandriões trancafiados
até se endireitarem. E tem que ser
rápido, porque senão a coisa vai desandar. Não quero aqui me meter a dar conselhos
à pessoa de tão alto grau, mas acho que o senhor deve começar pelo chefe,
aquele que cede a casa, serve cafezinhos, manda fazer biscoitos para enganar os
estômagos no prolongamento do delito e, ainda por cima, cobra o barato de cinco
por cento das apostas”.
— Então, Seu Boca de Sapo, me dê a lista
dos safados!
— De nós, além do chefe que carrega culpa
maior, tem o Machadinho, o Corpo Esticado, o Zangão, o Tiro Certo, o Mão Leve, este
além do vício do jogo tem também o do roubo. E mais uma soma de gente. Este Machadinho
era homem de missa, de hóstia nos domingos e de terço no meio da semana. Homem
bom e trabalhador de fazer gosto, mas
agora merece prisão fechada mesmo, é preciso apertar aquele excomungado.
— Este
Tiro Certo, além do vício do jogo, é também algum pistoleiro?
— Não
senhor, é um sujeito pacato até demais, o nome é porque o olho esquerdo dele
não abre direito, e sua maneira de olhar lembra alguém a mirar um alvo.
—
Entendi, este mundo tem esquisitices. Mas, Seu Boca, alguém já tentou fazer alguma coisa,
mandar benzer, fazer novena, jogar sal grosso ou coisa parecida??
—Sal grosso é café pequeno pra esse banco
de desocupados, sal grosso só serve para espantar os sapos que gostam de rodear
os que jogam, dizemos de brincadeira. Reza pode servir para evitar o inferno ou ajudar a ir para o céu, mas não aborrece o vício. Se essas intervenções para o divino
tivessem algum valor, o Machadinho já tinha se endireitado por causa de sua
santa mulher, aquela já
tem os joelhos escalavrados de tanto baixar no estrado de seu
genuflexório, mulher assim devia ser canonizada em vida.
—E o nome do chefe, o senhor tem coragem
de dar?
Tenho demais da conta, sim senhor,
esse pode ser preso de imediato e merece sova maior.
— Quem é então, senhor Boca de Sapo?
— Sou eu mesmo, com o lombo a seu dispor,
excelência.
***
Lulu,
ResponderExcluirgostei muito. Aquele ambiente pacato e matreiro da cidade transborda no texto pelo desenrolar muito bem elaborado e pelos apelidos. Se é vero, vai muito além da ficção.
Grato, Siovani, vero na essência, forjado nos apelidos e nomes.
ExcluirQue maravilha ! Adorei o texto . grata .
ResponderExcluirObrigado, Fátima, um grande abraço!
ResponderExcluirlindo,vale apena ler! Adorei.
ResponderExcluirMuito interessante! Me senti passando por essa estrada...Parabéns
ResponderExcluirGostei muito Lulu! Faz lembrar a infância!
ResponderExcluirAdorei o texto . grata .
ResponderExcluirAgora eu. lembrei de voçê é o Lulu do tio Sodiga abraço
ResponderExcluirVocê é o autor ? Que bacana ! Parabéns ! Eu não sabia que o Lulu era Luiz Alfenas ..,
ResponderExcluirO conto está muito bem elaborado. Você conseguiu unir um polo a um hemisfério, ou seja, as duas pontas, como dizia nosso saudoso Ti Piula, do araiá, com as presepadas do hilário Bertor dos Zaranhas que entregou a si próprio ao famigerado tenente Fonseca. O corgo fundo ficava na chegada de quem vem de Lafaiete e o jogo de búzios era feito com grãozinhos de milho, pintados com caneta esferográfica e fadados a ser devorados pelas galinhas do próprio Bertor. Isto acontecia lá nos Zaranhas, caminho para quem vai para Brás Pires. As lavadeiras do corgo fundo, das quais sinto uma saudade danada, eram como uma banda marcial sob a batuta de Lordina Vira Copos. Enquanto equilibravam uma trouxa de mais ou menos vinte quilos na cabeça, ainda se exibiam numa dança meio sem pé nem cabeça . O melhor é que tudo isso é a expressão da mais pura verdade, ainda mais valorizado com as peculiaridades estilísticas do excelente autor. Valeu!
ResponderExcluirResposta ao comentário de Edgard Miranda Alfenas.
ResponderExcluirEdgard, seu comentário mostra o quanto você conhece a história e os casos da terra. Ao autenticar a realidade do fato, com seu carimbo que carrega qualidade cartorial, você vem ilustrar essa mistura de ficção com o acontecido em nosso arraial de Piraguara. Acredito que com isso você tornou o conto mais interessante. Coloquei o Boca de Sapo entrando no arraial do lado do Corgo Fundo por uma razão muito simples, é um lugar que minha criança conhece melhor. Naquela bica, que é eterna, jorra a poesia de um Fernando Pessoa, e naquele corgo, que será sempre fundo mesmo que assoreado um dia possa estar, lavam-se muito mais que roupas. As coisas que se tornam eternas na perspectiva humana, nem o tempo, nem as cirscuntâncias podem mudar.
Obrigado pelos seus comentários, que enriquecem qualquer texto e assim foi neste.
Quanta saudade, fiz uma grande viagem ao passado tão presente em minha memória!
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