quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Jogo de búzios





Por Lulu


Sábado, Tuin Boca de Sapo amanhece na entrada do arraial de Piraguara, onde véspera de domingo é meio feriado. Vem de longa jornada com os olhos inchados de pouco dormir e as mãos lisas de pouca enxada, de cujo cabo se divorciou para pegar coisas mais leves.

Chega pelo lado do Corgo Fundo, onde as lavadeiras debruçam-se sobre trouxas e delas retiram roupas e lençóis que mergulham no açude. A sujeira desce água abaixo em borbulhas amareladas, que denunciam a poeira e o barro do arraial.  Mulheres novas, bonitas e bem acabadas da cabeça à sola dos pés, que embalam suas bacias com canções da moda ou com línguas afiadas contra políticos e vizinhos. O dia mal desponta e lá estão alegres e decididas no afã de esfregar, quarar e secar. O lugar homenageia a limpeza e a natureza: do outro lado da estrada, uma bica lava os pés dos que chegam e refresca quem tem sede ou calor. Potável, clara e quase gelada, essa água desce das terras de Xandi Fidelis, que zela pela sua pureza e temperatura cingindo o filete com plantações de bananeiras, inhames e gravatás.

Boca de Sapo atravessa o Matombô sem reparar nos poucos moradores  que já estão de pé.  Roceiro de pés descalços, chapéu de palha de aba larga, bolsos vazios de dinheiro e lenço, e sorriso amarelo. 
 Lá vai ele com seu jeito desengonçado de andar sobre os pedregulhos que a rua acumula, os quais o vento fez emergirem.Carrega o peso da traição que, como no nono círculo do inferno de Dante, desce ao coração, esfria a alma, endurece o rosto, congela o peito e faz doer músculos, cartilagens e ossos. Segue envolto numa atmosfera em que tudo que o espírito não apazígua transforma-se em gelo e convida o inferno e os que nele habitam. Um corpo em conflito com a consciência, campo de batalha para um silencioso duelo entre trair, um amargo remédio, ou relevar em covarde acomodação.  

Entra na praça. A venda do Jadir ainda está fechada, o caixeiro e os fregueses dormem e sonham com pechinchas e balanças de prato. Dois meninos brincam no átrio da Igreja Sagrado Coração de Jesus, a inocência levanta-se cedo para pular sobre ladrilhos carijós. Gustin dorme enrolado num paletó surrado, falta-lhe o conforto de uma cama com o calor de uma mulher. Com chuva ou frio, este dorme sempre ali, do lado da janela da sacristia, é excêntrico também no filosofar, é dele a cota: “não sei como morre tanta gente e não falta tábua para caixão”; vivesse na época de Sócrates e tomasse banho em plena rua, seria taxado de cínico. A sacristia fica nos fundos da igreja e nela descansa a imagem do Senhor dos Passos, que se resguarda para a semana santa quando representará para os paroquianos, através de chagas e expressões de sofrimento, o martírio de Cristo.

A Igreja está fechada, mas Boca de Sapo nunca se esquece de que lá dentro há uma legenda que mexe com a sua cabeça. Letras enormes dispostas numa fita suspensa por dois anjos, uma forte mensagem religiosa pintada na parede sobre o altar. O que significa aquilo? Por que o incomoda tanto? E agora que passa por ali,  os dísticos surgem impelidos por fantasmas que os movimentam em sua direção, parecem claros, nítidos, e saltam na sua frente numa sensação estranha e dolorosa, quase real, de um martelo a pregar, com 25 estocadas, cada uma das daquelas letras em sua testa:

A d o r o  t e  d e v o t e   l a t e n s   D e i t a s”. 

Boca de Sapo não é de ir à igreja, mas, no pouco que vai, seus olhos não conseguem desgrudar daquela mensagem cujo centro é o sacrário. A intrigante citação é seu mistério; e agora a última palavra, seu algoz: deitas! Deitas! Deitas!  Mas tem pressa, segue seu caminho,  não há como aplicar seu espírito ao compasso do insondável, só pensa em cumprir sua promessa. "Concentre-se, Boca de Sapo!" um espírito rigoroso está a cobrar-lhe. “Vá por você e por eles!” Ele obedece e prossegue a passos firmes.

Não hesita quando passa pelo Morro Cavacado e adentra ao Atrás do Morro. Esta pequena curva é o último portal para uma mudança de decisão, mas não cede àqueles reclames que enfraquecem a vontade. Anda mais alguns metros e bate na porta da delegacia, ninguém quer atender. Insiste. Demoram. Mas finalmente um soldado, com cara de preguiça e alma soberba, abre a boca em enorme bocejo e a porta, mas não a escancara como fizera com aquela. Olha para Boca de Sapo de meia-jota, ostentando pouco caso, e informa que o delegado especial, o Coronel Penacho, ainda não tinha chegado. E para completar a humilhação, o militar recrimina-o: 

— Cidadão, isso são horas de incomodar a autoridade maior! Não sabe que dia é hoje? Por que não desembucha logo, se for o caso, eu anoto e repasso. 

Não é hora para anotações e lembretes, Boca de Sapo sabe que não deve ser muito respeitoso com aquele intrometido: 

— Não converso com baganas quando o assunto é cigarro de palha.

Disse seco e firme.  

O soldado torce a cara enquanto pensa: “sábado cedo, ainda tenho que aguentar um mequetrefe desses com esse estranho palavreado. Um homem, que valoriza tanto o cigarro de palha, só pode ter vindo denunciar algum roubo de fumo de rolo”. Engana-se.

Boca de Sapo espera duas horas numa salinha menor do que a despensa de sua casa, que seria pequena para quarta e meia de milho.   Lá fora a manhã perde a neblina enquanto lá dentro a sala ganha calor que traz sono. Boca de Sapo cochila de pendular na cadeira e, como um carro velho, pega no solavanco, mas não cai. Um segundo de madorna parece um século quando sonhado: vê sua filhinha a abraçá-lo dizendo que o ama pelo que irá fazer “Não há traição, papai”, disse sorrindo. Mensagem tão sucinta, mas cravada nas raízes do ser, um bálsamo fugidio com cheiro de salmo. 

 Da janelinha da delegacia, Boca de Sapo percebe a autoridade maior que caminha pelo meio da rua pisando com zelo a própria sombra, que se deforma sobre um chão irregular. O sol inclina-se no zênite. O delegado entra sala adentro palitando os dentes e sugando fiapos de carne com um repuxão de ar — restos de costelinha da Pensão da Maria Gomes infiltrados entre dentes encavalados —.  Embora não haja nenhuma ocorrência para ocupar a autoridade, o mequetrefe tem que esperar mais alguns dilatados minutos, tudo para apequenar quem já veio humilde.  Sente-se transparente, inútil, esticado sob uma escala de insignificância entre um João-ninguém e um borra-botas. Mas, finalmente, o soldado o convoca:

— Entra cidadão! O delegado o espera. 

— Quero fazer uma denúncia!

Diz mesmo antes de qualquer bom dia ou de o delegado fazer qualquer menção de que irá ouvi-lo.

— Vamos com calma, cidadão! 

Diz o soldado e completa: 

— Espera o doutor Penacho lhe dirigir a palavra. 

Cala-se, é bravo, mas hoje é dia de reter toda raiva, represar toda vontade de xingar, dominar o ímpeto de briga.  Veio para acatar e não para ser reverenciado. “Crista baixa do lado do Penacho” se não pensou, sentiu a necessidade. Frente a frente com o delegado, espera alguns minutos no condensado silêncio do diminuto espaço e já duvida de que a autoridade tenha voz. Tem.  Finalmente o alívio de ouvir sair dali um som cavernoso, um rugido das profundezas do poder: 

— Qual o seu nome, e o que o traz aqui? 

— Meu nome é Antônio Van Hausberg, sou metade brasileiro de sangue quente e metade holandês de sangue azul, mas aqui sou conhecido como Tuin Boca de Sapo ou, simplesmente,  Boca de Sapo. 

 O delegado não teve como conter o riso, o apelido era muito apropriado, pois só agora reparava na boca do cidadão, um extenso vale ligando duas orelhas, também, enormes. “Uma boca assim pode fazer sucesso na política se a cabeça que a controla tiver miolos na mesma proporção de seu comprimento”, pensou.    Mas o cidadão não deixa a autoridade ficar remoendo pensamentos que o divertia, quer ir direto ao ponto: 

— Quero denunciar, com toda minha força e vontade, um grave crime que vem ocorrendo em minha região. O jogo de búzios. Ali o mal enturmou, o diabo entrou, e Deus deixou. 

— Seja mais claro, cidadão! Deus não faz vista grossa pra falta de vergonha na cara. O Delegado não tem o dia inteiro para colocar-se à sua disposição.  

Diz o aplicado soldado.

— Não me acode melhor explicação nem outro desfecho. Uma fila de um e muitos pegos na unha do cão, o demo mesmo!  Não colho outro senso.

— Mas jogo de búzios, aqui nem praia tem, seu Boca!

Diz o delegado

— A Bahia pode mandar todas as suas milícias para cercarem esse desmando do tinhoso, aqui não tem nem um grão de areia, mas a casquinha de caramujo vai acabar com nossas famílias. 

— Até onde conheço, búzios é coisa de predição nas mãos de orixás. As conchinhas só trabalham no campo da divindade.

— Engano dessa excelência, aqui nesta Piraguara as pessoas desvirtuam. Tudo que tem dois lados e que pode cair aberto ou fechado já dá margem a apostas e ganância. 

— Mas como é isso mesmo, senhor Boca de Sapo?  Os desgraçados estão assim tão viciados no jogo a ponto de prejudicar as famílias? 

— Prejudicar a família é pouco, estão levando a comunidade toda para o abismo do quinto dos infernos!

Disse Boca de Sapo, muito alterado. 

— Me explique isso melhor? Não entendo como pode ser tão grave um joguinho à toa, um passatempo inocente.

— Não diminua o poder do vício, doutor. Não é uma questão só do tempo que se perde lançando aquelas malditas conchinhas e torcendo para que caiam de acordo com as apostas, é dinheiro vivo! Quem vê só o ato e as pessoas debruçadas sobre aqueles restos de caramujos jogados na mesa não percebe o efeito esparramado nas casas.

— Estão apostando dinheiro. O senhor tem certeza?

 —Certeza máxima, mais certa do que estou aqui agora sentado na frente dessa excelência. As famílias já estão passando até fome, ninguém mais trabalha. Os homens só pensam no jogo. Os solteiros transformaram-se em vagabundos; e os casados, além disso, esquecem até as obrigações de servir a patroa nas necessidades camais. 

— O senhor quer dizer, necessidades carnais?

— Não, senhor, camais mesmo, eles chegam às suas casas esfarrapados das noitadas de jogo e mal têm tempo de tomar um café amargoso, e lavar os pés antes de caír no sono, se esquecem de que cama não é só para dormir.

— Tá bom! Tá bom! Já entendi. Estão ficando frouxos! Então vamos ao que interessa, o senhor veio mesmo por quê? Quer que eu prenda esses safados?

—Prender... Prender é pouco, tem que dar uma coça de deixar saudades, deixar esses mandriões trancafiados até se endireitarem.  E tem que ser rápido, porque senão a coisa vai desandar. Não quero aqui me meter a dar conselhos à pessoa de tão alto grau, mas acho que o senhor deve começar pelo chefe, aquele que cede a casa, serve cafezinhos, manda fazer biscoitos para enganar os estômagos no prolongamento do delito e, ainda por cima, cobra o barato de cinco por cento das apostas”.

— Então, Seu Boca de Sapo, me dê a lista dos safados!

— De nós, além do chefe que carrega culpa maior, tem o Machadinho, o Corpo Esticado, o Zangão, o Tiro Certo, o Mão Leve, este além do vício do jogo tem também o do roubo. E mais uma soma de gente. Este Machadinho era homem de missa, de hóstia nos domingos e de terço no meio da semana. Homem bom e trabalhador de fazer gosto,  mas agora merece prisão fechada mesmo, é preciso apertar aquele excomungado. 

— Este Tiro Certo, além do vício do jogo, é também algum pistoleiro?

— Não senhor, é um sujeito pacato até demais, o nome é porque o olho esquerdo dele não abre direito, e sua maneira de olhar lembra alguém a mirar um alvo.

— Entendi, este mundo tem esquisitices. Mas, Seu Boca, alguém já tentou fazer alguma coisa, mandar benzer, fazer novena, jogar sal grosso ou coisa parecida??

—Sal grosso é café pequeno pra esse banco de desocupados, sal grosso só serve para espantar os sapos que gostam de rodear os que jogam, dizemos de brincadeira. Reza pode servir para evitar o inferno ou ajudar a ir para o céu, mas não aborrece o vício. Se essas intervenções para o divino tivessem algum valor, o Machadinho já tinha se endireitado por causa de sua santa mulher, aquela já tem os joelhos escalavrados de tanto baixar no estrado de seu genuflexório, mulher assim devia ser canonizada em vida.

—E o nome do chefe, o senhor tem coragem de dar?

 Tenho demais da conta, sim senhor, esse pode ser preso de imediato e merece sova maior.

— Quem é então, senhor Boca de Sapo?

— Sou eu mesmo, com o lombo a seu dispor, excelência.

***





terça-feira, 8 de novembro de 2016

Era uma vez no pé do morro.

      
Por Lulu

Dedico este texto ao meu irmão que não gosta de  falar batata. 

Era uma vez no pé do morro, havia um rancho: casinha simples e arejada, num lugar bonito como quê! Suas paredes, pintadas de branco encardido, eram de pau-a-pique.  Tinha dois andares na parte da frente e, seguindo a inclinação do terreno e a arquitetura da região, apenas um pavimento na parte de traz, onde ficavam a cozinha e a despensa. Os quartos de dormir ficavam na parte mais alta da construção. A latrina era fora da casa, nos fundos da horta, e resumia-se numa casinha com um buraco no piso de madeira sobre um filete de água corrente que levava os dejetos para o ribeirão; pouca água, mas suficiente para arrastar o que nela conseguisse flutuar, e não era pouca coisa. Do lado da cozinha, a oeste, estendia-se uma esplêndida vargem, onde se entrecortavam estradas e trilhos. Aí iniciaram-se os acontecimentos aqui narrados, cujos diálogos foram escritos no “dialeto” da região, que ali era falado pelo início do século XX, embora as personagens reais não o usassem, o caso aconteceu mais ou menos como relatado. Adotamos essa linguagem para não tirar a beleza e graça do modo como nossa gente fallava. Sendo nossa geração muito próxima daquele tempo e daquele dialeto, podemos ainda compreender o que dizem — caso você, leitor, não entenda alguma palavra, pode inserir seu comentário no rodapé da postagem que responderemos. Aliás, os comentários prestam-se a qualquer impressão ou discordância, somos democráticos e sabemos levar desaforos pra casa (desde que não sejam muitos e impessoais) e estamos sempre aprendendo com os etc. —.

 Assim nivelados, vamos ao causo: 

— Sai da jinela minino, cê vai constipá! Sai já daí!

Disse uma preocupada  mãe  ao seu caçula, que não ligou para a censura e continuou na janela  a olhar na direção da várgea. Mas ao contrário de outras roças, o silêncio ali durava pouco.

— Mãe, óia lá, parece que vem vino uma mué lá na varge, ela já passou pela porteira e entrou na nossa estradinha. Qué vê? — disse o caçulinha apontando o dedo sujo de carvão para a várzea em frente.  

A virtuosa mãe hesitou antes de abrir mão do calor do fogão e arredar-se da chaleira onde fervia água para o  café, mas finalmente cedeu ao apelo do menino.  Abandonou seu céu de picumã, atravessou a cozinha, chegou até o filho encostado na janela,  debruçou-se sobre  o peitoril de madeira e pode, finalmente,  ver que ao longe um borrão contaminava o verde daquele paraíso, então, disse: 

— Fio, num é que parece mêmo uma mué! A esta hora do dia, quem há de sê? É cedo para visita, mas tarde pra arguma neguinha vim pedí leite. Nove hora da manhã; nesta tardura, todo mundo sabe que nóis já tirou leite das vaca e éas já  tão no bem bão do capim gordura.

E completou:

— Quédi a Filó? Êta minina artiosa,  não  para, nem dentro, nem fora de casa.

Uma risadinha estridente, marca de inocência, bondade e da alegria de viver, vinha se avivando dos lados do terreiro da cozinha e, como sempre, anunciava a chegada da menina Filó.

A educadora dona da casa, que já havia colocado o coador no mancebo enquanto se preparava para passar o café,  repreendeu a menina: 

— Buraca! Sempre que preciso de ocê, ocê demora a aparêcê; onde cê tava?

— Uai! A Sinhora num sabe. Eu fisse o qui a Sinhora pidiu. Fui lá na casa do seu Ôrico —  respondeu a humildade em pessoa.

— Quê cê foi cheirá lá? Disse a gloriosa  senhora e esboçou um sorriso sinalizando que estava brincando, mas a menina levou a sério:

— Ué! Banzerando é que eu num tava, fui buscá os ovo que a sinhora emprestou pra mué dele, a Sinhaninha. Fisse como a sinhora mandou.

— Mandei í e vortá, não era pra arranchá lá!

Com essas palavras, que expressavam mais aflição do que  vontade de corrigir a pobre criada, a dona de casa deu por encerrada a   admoestação, pois  agora tinha tarefa importante para ela.

Precavida, como devem ser as criaturas que vivem em locais ermos sob a guarda de Deus, que nem sempre intervém, e onde o vizinho mais próximo fica a mais de légua, a jovem dona de casa mandou a menina investigar: 

—  Filó, ocê dá um pulinho lá na estrada. Vai num pé e vorta noutro. Num fica remanchando. Vê que arma deste fim de mundo vem lá. Não se achegue muito perto dela, nóis num deve de dá confiança nem trela pra vadios de estrada. 

A diligente e gloriosa ajudante, ligeira no passo e esperta no tino, atravessou a cozinha, desceu o terreiro lateral, passou entre o paiol de milho e o esteio de braúna do sobrado e saiu no curral de leite, na frente da casa — um atoleiro de bosta e urina de vaca —, e de lá ganhou a estradinha para a indagação do quem-vem-lá. Nesse entrementes, a mulher que lá vinha ganhara meio caminho, da porteira que fecha as terra da fazenda para a estrada larga até a entrada do curral de leite, e, em passos largos e decididos, chegaria depressa à casa, mas quando viu a menina indo ao seu encontro agarrou de dar umas paradinhas e como uma mula circense bem ensinada dava três pulinhos seguidos por um movimento de jogar alguma coisa para trás. Filó a reconheceu sem precisar se achegar muito; fez meia volta e logo estava, quase sem fôlego, ao lado da patroa. 

— É a Maria Doida, sem tirá nem pô — disse convencida e completou, — Ocês pode esperá que vem encrenca!

— Filó, ocê tem certeza que é ela? — perguntou a patroa. 

— Mais qui certo — respondeu a menina e completou — arguém mais, pressas bandas, anda torcida que nem taboa em tempo de enchente e com os braço tão balançantes? Ela sacode qui nem  um carro de boi com caruncho no cocão.

 Um dos meninos cochichou alguma  maledicência, cuspindo uma gosma preta no ouvido de outro, mas o apurado ouvido da gloriosa serviçal pode escutar, do miúdo ao graúdo, o que o moleque dizia: 

— Será a tar que mija em pé sem arriá a carcinha? 

Perguntara o maldoso Antônio Timódeo, mesmo antes de a menina informar tudo,  ele mesmo  respondeu sem esperar que ela o fizesse:  

— Não arria nem sunga porque não arriou; só pode sê ela. Acho que por debaixo da saia não tem pano argum. 

O sorriso encalistrado da bondosa Filó confirmou a maneira de vestir daquela mulher e, consequentemente, a identificou. A dona da casa, então, preparou-se para o pior e, na dúvida, foi dar uma boa espiada na janela da sala, de onde se podia avistar com largueza e longe, e arredar todo engano na conhecença de quem vinha; e tomou fé: era mesmo a tal, a maluca vezeira em frequentar sua casa e em lhe trazer todo tipo de aborrecimento.  Só de ajuizar a amolação, amuou-se e foi novamente para a cozinha.  Sabia que aquela entraria por lá, nunca viera pela frente da casa. “ Seja tudo pelo amor de Deus!”, pensou.

A amolação entrou pela porta em que era esperada, a da cozinha, e já vinha ensaiando as lamentações de sempre que, contudo, agora pareciam motivadas por justas razões: 

— Acode eu cumadi! Pelo amor do Eterno!

A dona da casa não deixou o que ainda era sereno virar chuva grossa e, antes que começasse a precipitação de lamúrias,  perguntou: 

— Me adesculpe a má prigunta, por que a senhora vem dano umas paradinhas e uns pulinhos, uns aqui outros acolá?  A senhora tá cumprino promessa pra São Longuinho ou tá só jogano  argum trem para trás?

 Maria doida respondeu rapidamente:

 — Nunca aliguei pra São Longuinho, não tenho nada pra perdê e qui dirá pra achá; tava é jogano pra tráis de minha cacunda umas fôia de couve que peguei na horta do cumpadi Zé do Quiabo. A senhora sabe, jogá fôia de couve pra tráis faz caí as berruga, num sabe?

A dona da casa não quis comprometer-se:

 — Sei dessas coisa não senhora. A senhora devia sabê que praticá essas crendice e simpatia é contra a lei da Santa Madre Igreja. Isso é pecado, não passa de babosice.
 Mas a doida, que não o era apenas no apelido ou pra fazer tipo, ao invés de responder, deu mais sustança ao falatório das crianças que tagarelavam ao seu lado do que àquelas admoestações da dona da casa e disse:

— Vamo falano comadi enquanto ês tão latino!

Isso dizia enquanto apontava um dedo ameaçador para as crianças que cochichavam e riam e, logo em seguida, já esquecida da repentina cólera, voltou ao assunto das folhas jogadas ao vento: 

—  antonse, comadi, se as fôia faz caí as berruga, deve de fazê tumbém caí estas feridinha,  que me alastra pelo corpo todo, nas perna, nos meio delas, nas parte, na barriga, no mama e nos braço, cara e pescoço.

Enquanto falava ia mostrando o corpo.  As crianças riam daquela nudez morena enfeitada com pintas vermelhas, ela os recriminava: 

— Deixe ês mostrá as canjica e nóis vai mostrano nosso má, não aliga não cumadi!

A dona de casa, Sá Miritita, criada e forjada no sopro dos foles da idade média, na fé e na moral cristã, aborrecida com a falta de compostura da Maria Doida, deu dois passos para trás; recatada, temia que as crianças pecassem pela visão da nudez, e havia também o risco de que pegassem a doença das pintinhas. Aquilo podia ser mais do que uma simples sarna ou alergia,  e era, como constatou o dono da casa, um sabido das coisas de medicina, que afirmou tão logo deitou os olhos na seminua doida: 

— A senhora, Dona Doida, está com varicela, e isso pega mais que visgo de gameleira-branca. 

E logo se cogitou que ela deveria permanecer em cômodo separado, bem longe dos da casa, no catre que foi colocado às  pressas no sobrado debaixo da salinha de jantar. Quando a levava para seus aposentos, Filó perguntou-lhe: 

— A senhora trouxe arguma coisa limpa pra vestí? 

E ela respondeu comovida: 

— Truxe não, num aliga não, boa minina Filó, pru meu uso me abasta uma camisola branca e um trabisseiro de paina, eu posso drumi até no chão duro.

Filó fofou as palhas do colchão, estendeu os lençóis, pôs fronha num surrado travesseiro de paina. E deixou do lado, sobre um banquinho de madeira, um baixeiro e duas mantas de arreio para o caso de alguma eventualidade.  E nesse improviso, nada faltava para a higiene pessoal que negasse à paciente o sagrado direito de lavar as mãos, a cara e os pés. Nesse fim de mundo, mais do que isso era luxo só para médicos e padres.

E assim, já acomodada, a impaciente paciente logo quis tomar as rédeas do próprio trato e ampliou as lamúrias, que se tornariam rotina. Enquanto ali arranchava, dia e noite, a doida gritava: 

— Cumadi dona da casa! Sá Miritita!  Acode que tou nas garra da tinhosa, morro e não vorto! Boa Filó, acode que morro à mingua! 

Por mais que lhe servissem boa comida, roupas limpas, cobertores, água potável e um penico esmaltado — esvaziado, areado e enxaguado todo santo dia — a doida continuava a pedir cada vez mais: 

— Ah cumadi! Tou sentido farta de um pedaço de frango, uma moela, um asa magra, um osso pra roer ou um pescoço pra chupá. Ah cumadi! Pode sê o sobre... Que vontade de comê um sobre! 

E, no delongar daquela estada, o galinheiro caminhava para o esvaziamento, pois a dona da casa temia o remorso e o falatório do arraial caso a doida morresse à míngua — certo é que poucos ajudam, mas todos metem a colher da pau quando a piedade alheia falha —; e assim: dá-lhe caldo de galinha, que não faz mal a  ninguém; sopa de inhame, que é bom pra pele; cuscuz de fubá, que revigora os tutanos; e angu bem cozido para dar liga em tudo que é líquido e tem que ser comido com as mãos, como a doida fazia. 
Depois de alguns dias nesse lesco-lesco e sobe-e-desce no terreiro da cozinha, que era o caminho para o quarto improvisado, Filó gemeu mais que perguntou: 

— Êta carvário sem fim. Nossa despensa há de aguentá essa mué se entrouxando desse jeito? 

E, quando tudo parecia muito ruim, ainda coube um tiquinho de piora: enquanto as pintas secavam na doida, elas iam aparecendo nos três menores da casa.

Filó achou que era hora de atitude e sugeriu:

— Sá Miritita, não é mió a gente fazê um mingau prus meninos? É modi apazigua as lumbriga e deixá saí tudo quanto é pinta, pra não eternizá essa saideira. 

Emanuel, o caçulinha, logo  opinou:

—Eu mais Lordino queremu mingau de zé gome, serve também o de maisena; Antônio Timóteo não qué nada,  perdeu a fome depois que botaru uma camisola branca nele. 

E como Filó não obteve resposta da dona da casa, nem mesmo um muxoxo de discordância, e foi acolhida por duas das crianças, fez o mingau de legumes, pois entendera que o zé gome não passava de legumes,  e empanturrou os meninos.
A comida, se não fez bem, matar não matou. As camisolas, essas sim, não desceram bem em nenhum deles; é que os mais velhos da casa começaram a caçoar dos pequenos e chamá-los de mulherzinhas. A bem da verdade, diziam: 

— home de camisola, que vergonha danada, home sem carça é  mué de sordado.

Lordino, o bom de briga, retrucou renitente e já armando pescoção: 

— Bobo é o que ocês é! Mué de sordado é aquele que chega derradeiro numa corrida de estrada ou de rua. Nóis tá de camisola é modi as pinta num agarrá nas camisa e carça. Mamãe qué nóis são depressa e sem pereba no corpo. 

E nesse contrassenso e desgarramento de tudo quanto é piedoso, os maiores abusavam do perrengue dos três pequenos:

— mué é mué, homi é homi e chulé é chule; quem tem pinta não tem pinto. Todas essas chacotas tiveram fim quando Antônio Timóteo, o quebra  ossos,  jogou praga nos marmanjos: 

— Deus tá veno ocês; com a fé de Deus, do Pai, do Filho e do Divino Isprito Santo, essas pintinhas vai secá ni nóis e  vai nascê nas bunda de ocês. 

Foi como se um balde de água esparramasse sua umidade fria sobre um fogo de palha, nem cinza restou. Se por medo da praga ou se porque o dono da casa podia castigá-los com umas boas palmadas pelas bundas brancas — quem há de saber! — os marmanjos enfiaram a viola no saco e foram cantar na freguesia do: — Ó mãe, óia o que os minino tão dizendo. A sinhora não disse pra gente não rogá praga. Manda papai passá umas boas combreadas nês, manda! 

E assim, acabadas as galinhas e no frigir dos ovos, a doida aprumou-se em poucos dias e já almoçava na cozinha junto aos de casa. 

— Não aliga não cumadi. Vamo puxá cumadi!  Enquanto ês tão latino nóis vamo cumeno. Não aliga não!

 E, nesse lenga-lenga de doida, a esbaforida maluca dos cabelos crespos pegava pelo braço a franzina dona da casa e a arrastava para a beirada fogão e enchia uma cuia com angu, feijão, arroz e carne de lata. Depois de servir-se sem os limites da boa educação, acocorava-se no canto mais escuro possível e refestelava-se comendo com as próprias mãos, usava os dedos em vez do garfo, e os dentes no lugar da faca.

Os meninos, agora já contaminados e ainda doentes, não tinham mais o que temer e, à moda da roça, empuleiravam-se no descanso do fogão enquanto apreciavam aquele palavreado bizarro e engraçado. Nem conversando estavam e a doida os denunciava com aquela repetição, agora sem ênfase: 

— enquanto ês tão latino, nóis vamo cumeno.

Sã que nem coco, depois de alguns dias daquela hospitalidade de luxo, mesmo assim, Maria doida, caso não fosse pressionada, não arredaria mais o pé daquele conforto. Mas a inteligente Filó deu seu jeitinho ao dizer-lhe:

— Pru que a sinhora não aproveita que melhorou e vai simbora daqui? Ou será que a sinhora num sabe que essa doença pode inté  matá, isso se pegá de novo em quem está saino da perenguice.

A doida logo pegou sua trouxa, engordada com as roupas presenteadas pela dona de casa, e ganhou chão. Mas, numa repetição que não conseguia controlar, propagava, agora, aos quatro ventos: 

— Ô povo ruim que qué me matá a mingua e ainda inventa doença que repega. Ô povo ruim, povo ruim, povo ruim! Povo ruim mesmo!...

E assim termina a história dessa pobre louca... Quem quiser que conte outra.


sábado, 29 de outubro de 2016

Muito além do horizonte.


A nave desceu suave, silenciosa. Ajustou-se  e acoplou-se
 à estrutura da torre sineira, tornou-se transparente e quase 
invisível.






















Escrito por Lulu
Revisão: ET-vino


— Gaia, estou indo, como te disse ontem. 
Esperou uma resposta, não houve, insistiu:
— Gaia, estou saindo, tu vens?
— Homem!  De novo me amolas com essa bobagem. Já não te disse que não gosto que me metas nisso.
A voz grave e rouca insistiu: 
— Essas coisas não acontecem todo dia, se perdes uma, talvez estejas perdendo a única oportunidade de toda a vida. Eu fico triste de ver uma irmã tão querida ficar fora dum evento que não se repetirá tão cedo. Deixes dessa rabugice, vamos! Tu entras se quiser, ninguém é obrigado a embarcar contra a vontade. 
— De novo tu repetes essa ladainha. Não me faças passar por boba, nós já não estamos em boa conta na Rua, ainda mais agora que o vigário passou a implicar comigo, e eu nem posso tocar mais no coro. Já perdi meu piano e agora queres que eu perca o respeito dessa gente. 
Fez-se silêncio, mas Gaia ainda tinha o que dizer:                                       
— E tu continuas a acreditar  nessas besteiras, em coisas que não existem. Acho que a mulher do Adão Lino está fazendo sua cabeça. Aquela age na surdina, mas é uma praga em sua vida. Finge que acredita, instiga-o e ri por trás.
Novo intervalo, um galo cantou no terreiro, a voz grossa ainda inistiu com uma metáfora antiga e com despedidas que soavam como uma ameaça de quem dá uma última oportunidade a uma criança:
— Lavo minhas mãos! Até logo, ouviu Gaia! Estou indo!
— Vá com Deus! Eu quero dormir um pouco mais, mereço paz. Não te esqueças de taramelar a porta e de verificar se ficou bem fechada. 
Passo curto e lento, saiu para a Praça São Sebastião, atravessou a calçada, encostou-se na mureta ao lado de onde haviam colado uma foto grande de Ciro Maciel sob a sigla PR escrita em letras garrafais. Pousou seu olhar na torre da Igreja. "Devia haver um relógio encravado na torre sineira no lugar onde colocaram aquele vitral redondo", pensou. Relógio... falta não fazia agora, não havia dúvidas de que eram cinco e dez.  A pontualidade era o forte daquele relacionamento intergaláctico, e a telepatia,  mãos invisíveis a dedilharem, em código binário e preciso, as horas, minutos, segundos e nanossegundos em seu cérebro.
O homem voltou-se para a encosta a procura de sinais da nave. Passou as mãos sobre os cabelos ligeiramente crespos, cara bexiguenta, pele frisada como a face da lua cobrindo um rosto sério, a confiança mora ali; mas não, a paciência. Sorriu complacente com os incrédulos da terra que não acreditavam que ele pudesse ter um pacto com as estrelas. Ensaiou um pensamento de “bem feito pra eles!”, o pensamento escapou. Esperou alguns segundos, espantou o frio com um esfregar de mãos e puxou a gola da blusa de lã até o queixo. Cuspiu de lado, gosma grudenta, nojo escorrido pelas folhas da grama que vicejava estreita entre as pedras daquela saída de rua; tudo com cuidado, sem barulho, sem movimentos bruscos. O momento era sagrado; e o silêncio, um arauto. 
Nenhuma dúvida quanto à pontualidade, eles nunca falhavam. A certeza de que estariam ali dentro de segundos era a mesma de que o penico estaria debaixo da cama quando levasse a mão para pegá-lo nas madrugadas das frequentes insônias, em que os pensamentos repletos de viagens espaciais nunca o deixavam descansar como devia; um pensamento leva a outro: pensou na distância entre a latrina e a casa, pensamento desconexo, nada a ver com a grandeza do momento, descarte imediato. Girou o pescoço e ombros, em movimentos bruscos, como se fosse um robô, até perscrutar toda a Praça, ninguém. Tudo pronto, a Praça preenchida pela solidão era necessária.
A nave desceu suave, silenciosa, iluminada. Ajustou-se e acoplou-se à estrutura da torre sineira, tornou-se transparente e quase invisível, é-lhes proibido perturbar a beleza ou a feiura dos lugares. Luzes inteligentes flutuaram em direção ao homem da Praça, exemplar único naquele espaço. Adentraram em seu cérebro, aderiram, incrustaram-se, fecharam-se circuitos; e voltaram para nave e ela, para as estrelas. 
Um pedaço de gente com um sorriso de confiança congelado e com o mesmo semblante de calma permaneceu ali na Praça. Passaram-se alguns nanossegundos, tempo que não se mede pelos parâmetros da terra, e, novamente, a nave pousou na Praça, no mesmo silêncio, na mesma solidão necessária, com a mesma transparência, com a mesma acoplagem. As luzes agora adentram no cérebro para reverterem o processo: desincrustam-se, desfizeram-se elos, rearranjo geral, e voltaram para a nave, que parte definitivamente. 
Na Praça, o mesmo homem, o mesmo sorriso de robô, mas agora um ser inteiro e viajado. Tem casos para contar: viagens interplanetárias irão povoar as cabeças das crianças e de, alguns poucos, adultos.
Quando voltou para casa, entrou direto. Mal havia taramelado a porta, a irmã perguntou: 
— Uai! Não vais?

Ele deu um sorriso de “coitada, não sabe de nada!” e, vingativo, não respondeu.