quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Os bailes de Senhora de Oliveira

Por Caieira
Se baile é uma reunião cujo fim principal seja a dança, então, os nossos não eram bailes, mas poderiam ser intitulados de patuscadas, embora esse não seja um nome corriqueiro por aqui, mas exprime a ideia. Em nossas reuniões para dançar, a dança era a desculpa mais esfarrapada. A bem da verdade, os meninos estavam atrás de rabo de saia e as meninas, não sei de quê. Aliás, elas que falem por elas e não me venham com subterfúgios, pois, destas coisas que ocorreram na juventude quanto mais idade temos mais nos lembramos dos detalhes e melhor os sabemos interpretar, mas acontece que muitas vezes queremos esquecer e riscar o passado como se fôssemos outros. A vida brota de safra única e é linear, quem quer esquecer uma parte dela, não a viveu na íntegra, deles sinto pena. O melhor é lembrar-se de tudo, cuspir no que não prestou e entronizar, na aba esquerda do peito, o bom. Não é preciso ser poeta nem escritor para enaltecer o que é bom.

A nossa turma era assim: ninguém sabia cantar, ninguém sabia tocar; dançar, quase nada, só queríamos ficar juntos a elas ou, no mínimo, com elas por perto. Reunir a turma, chamar as moçoilas, correr os riscos, enormes para a nossa idade: ser recusado; levar um fora é duro, mas, mesmo assim, valia a pena. E não podíamos dar o troco, por aqui não havia o baile da cebola, em que se invertem os papéis, os homens são tirados para dançar pelas mulheres, e podem então aplicar o famoso chá de cadeira nelas. Nossa realidade era diferente, nós, os homens é que, às vezes, tomávamos o famoso chá de cadeira. Mas, a vontade de atravessar a pinguela era mais forte que o medo da água fria, mesmo os mais feiinhos, os tímidos, os filhos de pai mancueba e os caolhos compareciam. Sempre aparecia algum garoto com uma radiola e alguns discos de vinil; na modernidade de nosso tempo, os discos de latão, já aposentados, haviam virado peças raras de museu.

O salão da prefeitura, onde os vereadores se reuniam semanalmente, para nossa alegria, nunca aos sábados e domingos, era, na ausência de colisão de agenda e de interesses, um bom local. O difícil era encontrar o "Escurinho", o funcionário mais popular da prefeitura e mais importante, pois guardava a chave do lugar. Alias, esse era o único problema capaz de adiar, mas nunca de impedir os nossos "bailes". Percalços ocorriam porque decidíamos tudo na última hora despreocupados com os roteiros, éramos improvisadores. O Prefeito jamais negava o espaço para a juventude bailar, talvez pensando que aqueles pés irrequietos, aqueles badalos incontidos e aquelas coxas macias um dia votariam.

Quanto mais se vive mais se tem a certeza de que ter vivido a infância e a juventude nas ruas de Senhora de Oliveira foi um privilégio. Numa frase a altura de Zé Candin, nós poderíamos dizer: das ruas e bulevares do mundo inteiro, nós preferimos a Praça São Sebastião. E quem era jovem, em nosso tempo, teve a sorte de experimentar, numa só existência, o sabor da evolução em progressão geométrica. Um dia estávamos na idade média --- latrina longe de casa, casa sem luz elétrica, ruas sem calçamento, cidade sem salões de baile, bicas sem água encanado --- e, no outro (maneira de falar encurtando a escala do tempo), já tínhamos televisão parabólica, internet, TV a cabo, estrada asfaltada, ruas calçadas. O bom disso é que a gente não se assusta com o engavetamento das mudanças; acostuma-se, adapta-se, participa, usufrui, mesmo falando mal delas. A igreja local que, naquela época, perseguia nossos "bailes" e botava caraminhola na cabeça das mães de nossas senhoritas, modificou-se, modernizou-se, aceitou o inevitável, dobrou-se frente ao nosso santo calvário de "bailes" e serenatas. Éramos simples, bastavam-nos uma vitrola e algumas pernas de gêneros diferentes.

Para os cosmopolitas excludentes, que acham que apenas as grandes cidades são maravilhosas, digo com certeza absoluta e contida brabeza, ser feliz tem tudo a ver com o estado de espírito e muito pouco com os meios. Ser feliz, principalmente em grupo, depende de um estado de euforia contagiante que não se explica na solidão. Por outro lado, ser feliz na solidão, mais ainda independe dos meios, é uma questão de bastar-se, deixar que multidões de sentimentos, de sensações e de lembranças venham povoar a mente. A solidão, assim, não é absoluta e nem estar só, é estar com multidões de outros sem a presença física de ninguém.

E os nossos insubstituíveis bailes, nisso a evolução fez pouco: a felicidade, a alegria, o prazer da conversa ao pé do ouvido, nada disso mudou com todas essas evoluções. Os bailes com orquestras a acompanhar Frank Sinatras não nos impressionavam. Resolvidos, adaptados, reais, pé no chão, tudo somado é o que sentimos quando pensamos aquele tempo.

O que mais um adolescente pode fazer nessa terra? Perguntávamos só por perguntar, pois a resposta não era importante. Lembro-me de que chegamos a nos reunir, quando o piso do segundo andar da prefeitura ameaçava ruir, até na oficina de carpintaria do Izaltino Trindade. Não sei quem conseguiu a autorização, mas aconteceu, na Rua Nova, a segunda ou terceira casa da direita da primeira esquina de quem sobe, sem contar o beco do Palmital.

E assim, encharcado de modernidade e gostando de tudo de bom que há hoje, não desprezo o meu passado, não nego as minhas memórias e não deixo sobejos. Quem me provocar, verá!

O dono da bola

por Caieira

Chega com ela debaixo do braço, alisando-a só por alisar, sem segundas intenções, ou teria? Oito anos bem vividos; peito estufado; cabeça e olhos grandes; quase dentuço com direito à falha do meio; "filho de peixe peixinho é", seu pai joga muito; sorriso de vencedor; é o dono da pelota e ainda por cima é bom de bola. Mas ninguém diz: "Oh!"

Ali perto, pedras esperam para serem quebradas no martelo e medidas em latas de banha ou querosene. A base da nova Igreja Matriz precisa de muitas latas de brita. Ganha-se um cruzeiro por lata cheia, não há criança da cidade que não queira quebrar pedras, a meninada vai ficar bem de bolso, o bar dos Lanas vai ficar cheio, vai sair menino pelo ladrão; a geladeira a querosene foi acesa, muitos picolés serão vendidos. Por enquanto nada de Igreja, parece que a comissão da construção foi desfeita, alguém cavaqueou, e o Padre pôs o pé no freio. A esplanada e o campo de Futebol, onde os meninos jogam bola, foram doados para a construção da Igreja, o benfeitor chama-se João Camilo Milagres. Todos na Cidade sabem disso, mas ninguém diz: "Oh!"

Mas agora é hora de a pelada começar, logo se estabelecem as regras do jogo, como normalmente ocorre, dois jogadores, tipo cabeça de grupo, irão escolher, em sucessivas intercalações, os jogares que irão compor os dois times. O dono da redonda se define como um dos melhores, e nisso não há injustiça alguma, mas ele não se contenta com sua metade do espetáculo, define também o cabeça de grupo do time rival, e nisso já não é tão justo; mas ninguém diz: "Oh!"

A praxe, um sorteio na porrinha ou no par ou ímpar define, entre os dois cabeças de grupo, qual escolhe primeiro; mas hoje não será assim, o dono da bola quer escolher primeiro e já disse: "meu time é o de camisa". E assim, esses cabeças de grupo vão formando os times. Quem é escolhido pelo adversário do dono da bola tira a camisa e a joga no monte de pedras mais perto. Os últimos a serem escolhidos são os pernas-de-pau, ninguém se sente humilhado, ser ruim de bola não é tão ruim assim. Algazarra e camisas jogadas nas pedras, lagartixas correm assustadas e procuram novos montes de pedras; mas ninguém diz: "Oh!"

Começa o jogo, foi ou não foi falta: há uma pequena discussão, o dono da bola se acha justo o suficiente e obedecido mais que suficiente para afirmar: “foi”; e para o lado de lá. Todos agora sabem que o dono da bola, além de ser jogador do time de camisa, é o juiz da partida. Vamos à peleja: uma bola espirrada escapa pela lateral, "bola nossa.", apressa-se em dizer o dono da bola; mas ninguém diz: "Oh!"
E assim, a partida segue normal, até que o dono da bola diz que sofreu uma falta, quem a teria cometido não concorda com o julgamento, não aceita. Um rápido bate-boca. Alguém diz: "Oh!" O dono da bola bota a bola debaixo do braço e diz, Uai! O que teria cometido a falta, ofendido e chorando, sete anos, sai do jogo e vai embora, tão pequeno e tão renitente; e nem bola tem. Mais ninguém diz: "Oh!"

O Dono da bola bate a falta. Duas pedras delimitam a meta, não há balizas, a bola passou alta, mas ninguém contesta, o juiz diz: "foi dentro". O Jogo continua, os adversários do dono da bola estão perdendo, mas querem jogar, agora eles estão em minoria, perderam o jogador renitente, nem tanta falta faz, será que é por isso que ninguém disse: "Oh!"?

Uma senhora bonita, alegre e jovial debruça-se no parapeito da pequena varanda a poucos metros dali. O dono da bola tem mãe? Tem e ela diz, "Uai!" Todos dizem: "Oh!".

O jogo acabou.

Ele sai com ela debaixo do braço alisando-a só por alisar, é o dono da bola.