quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A Usina e a escuridão





     Por Lulu




    Escrito à luz de lamparina pela minha melhor metade.

Dedicado ao amigo Izaltino Gonçalves Filho.

Uma luz que se apagava.

Há amores que não adormecem em nós, e fatos que não deveriam ser esquecidos, assim me parece a história da usina elétrica que, nos anos 50/60 do século XX, servia à comunidade de Senhora de Oliveira, mas era propriedade de Piranga. A partir de 1953, essa geradora passou a ser a causa de querelas entre os habitantes das duas cidades. Enquanto os políticos e cidadãos mais exaltados brigavam pelo direito de usá-la, a usina definhava, como um doente abandonado que aos poucos vai perdendo a energia e a capacidade de transmiti-la aos outros e, já nos estertores da morte, sua forma visível, um tanto esmaecida, brindava-nos com uma luz apagada, uma vela. Nem os adeptos de São Lázaro tinham esperanças de que aquelas máquinas ressuscitariam. Nós, os oliveirenses, fingíamos ter luz; e a cidade de Piranga, que no-la cedia.

Muitos entreveros aconteceram naqueles anos obscuros, alguns nem sei se fruto de invencionices de nossa gente, que é cismada demais, como a história de que alguns populares de Piranga houvessem saído em passeata em direção a Senhora de Oliveira com a intenção de percorrerem os 22 quilômetros que separam as sedes dos dois municípios e de, ao final do percurso, desligarem uma grande chave que deixava passar a energia que ia para o ex-distrito. Mas, até onde se sabe, prevaleceu o bom senso da turma do deixa disso, e a aventura foi abortada.

Piraguara, a melhor costela de Piranga.

Poucos admitem a importância de Piranga no desenvolvimento de Senhora de Oliveira. Não deveria haver controvérsia sobre isso: uma é filha da outra, mas não se reconheciam como tal. Aliás, não fossem todas as provas históricas escritas e faladas de que Piraguara fora distrito de Piranga, bastaria esse nome para servir de testemunha cabal de que as duas cidades tiveram a mesma origem: Piraguara, se lhe acrescenta uma “nga”, nada mais é que Guarapiranga escrita ao contrário e, por sua vez, Guarapiranga é o antigo nome de Piranga. Que Piranga chamava-se Guarapiranga todo mundo sabe ou deveria saber, o que ninguém sabe é por que, em 1923, tiraram o guará (palavra indígena que significa vermelho) da fachada de uma e botaram como rabicho na outra. Muitas piadas caberiam nesse troca-troca de letras, mas, naquele tempo, uma brincadeira com isso poderia levar a óbito. Era um tempo em que os ânimos exaltados prevaleciam sobre o legado que a cidade menor recebera da maior. Menos ainda reconheceriam, os habitantes de Senhora de Oliveira, que a energia elétrica fora instalada no antigo arraial sob a administração de Piranga.


Nos casos de emancipação municipal, é normal que aconteça um olhar enviesado dos moradores da sede do território desmembrado em direção aos beneficiados com a mudança. Na maioria das vezes, as animosidades começam na campanha para a desvinculação, em que as pessoas que desejam a autonomia de governo têm que contrariar seus habituais parceiros, decepcionar os antigos chefes políticos e negar as vantagens da unidade. Uma não quer mais depender da outra para planejar e executar seu próprio desenvolvimento. Essa liberdade, de andar com as próprias pernas, tem seu preço e assim aconteceu neste caso, depois que Piraguara emancipou-se e saiu para o abraço, viu que Piranga continuava com os braços cruzados, numa atitude em que se fechava a uma solução amigável no caso da energia elétrica. Por outro lado, o povo de Senhora de Oliveira não quis compreender que, sob a ótica da antiga sede, cortar a energia de seu ex-distrito não era uma questão de birra, a luz não dava nem para uma das comunidades, alguém tinha que sofrer, e, em casos assim, sofre mais quem pode menos.

Não cortou por quê?

Pergunta quem lê este apanhado, por que Piranga, sendo a dona da usina, simplesmente não desligou a luz de Senhora de Oliveira, e ponto final. Acontece, caro amigo, caso você ainda não saiba, a usina era fincada, em maciço de pedra, dentro do Município de Senhora de Oliveira e a poucos quilômetros do casario. Essa usina ostentava sua bela figura ali onde hoje, outubro de 2012, está a destilaria de álcool Junivan. Vê-se que evitar uma briga desse tamanho não era só uma questão de bom senso, a dona da usina temia represálias. Não houvesse uma solução amigável, o patrimônio, objeto da disputa, ficaria à mercê do povo prejudicado que, com certeza, não seria um depositário fiel confiável. Questões de ordem prática completavam esse quadro: para desligarem a luz de Senhora de Oliveira, mesmo que atalhassem por Guiné, uma pequena comunidade quase nas divisas entre as duas litigantes, ainda tinham que passar por uma grande faixa de terras que, na nova ordem, pertenciam ao município recém-nascido. Na época, Alcides Fidelis, teria resumido o impasse com a frase: "quem bebe a água que nasce em terras do vizinho de cima só pode brigar com o de baixo".

Um paraíso para as crianças.

Para as crianças daquele tempo, do que sou testemunha ocular, a usina era um local mágico aonde iam com as professoras que as ensinavam um pouco de como se dá a luz — não confundir com como se dá à luz, pois naquela época esse assunto era tabu, e as meninas, pelo recato com que eram educadas, jamais poderiam ouvir sobre essas coisas de uma professora, pois esta correria o risco perder o emprego, no mínimo —. Mas vamos deixar de lado esses detalhes, voltemos ao tema central: pensar na usina é pensar em sô Lauro (que Deus o tenha em sua luz), um gênio que sabia consertar aquelas parafernálias que rodavam a grande velocidade, produzindo correntes misteriosamente elétricas, coisas invisíveis e sem peso, que escapuliam por aqueles fios finos e levavam aquela brasa para as lâmpadas das ruas e das casas. Para as crianças, essa magia tornava-se mais uma atração, pois o local, onde ficava a usina, era também excepcional, mesmo para quem não apreciava adjetivos fortes era: estupendo, maravilhoso, encantador e o escambau. A água do Ribeirão dos Peixes era aprisionada, alguns metros antes de chegar à usina, por um canal cimentado e assim,  escrava do trajeto, como um boi entra no matadouro, ia cair num tubo enorme que se afunilava até chegar à roda dentada, parecida com essas de moinho de fubá, só que em posição vertical. Tanta água espremida pela gravidade só podia descer com força e, assim, chegar à roda, senhora da mágica maior, com enorme pressão, e aquilo zunia, como dissera Chico Filó quando ali excursionara, "Zune em cima e ferve embaixo", e os colegas pensaram que ele se referisse à alguma colega de sala mais falante e assanhada, mas não, filó havia sido literal.

O sucateamento

Mas nós, as crianças, perderíamos aquele paraíso. Dizia-se que o processo de sucateamento da usina começara quando ela servia a outras comunidades. O certo é que, depois de 1953, com a emancipação do distrito de Piraguara, que passou a chamar-se Senhora de Oliveira, as trevas se aproximavam e causavam terror, maior, obviamente, entre as mães de família, principalmente as que tinham meninas moças; estas, as donzelas, nem se importavam, pois a juventude sempre percebe quando um novo tempo de mais liberdade, responsabilidade e amor se aproxima, mas as matriarcas, agarradas nas tábuas do passado, tremiam enquanto pensavam em suas filhas naquela escuridão, naquele apagão intermitente e ao alcance de marmanjos aproveitadores. Enquanto as mães invocavam seus santos em extensas ladainhas cantadas na penumbra da Igreja Sagrado Coração de Jesus, os anos iam passando, e a picuinha entre as duas cidades crescendo: ninguém queria ficar sem luz, então, elas brigavam pelo restinho que ainda podiam ter. Cortar a luz da nova e orgulhosa cidade, como solução paliativa, ocorria com frequência. Às vezes Piranga justificava a cada vez menos esporádica interrupção do fornecimento com argumentos técnicos, mas, com os ânimos acirrados, o povo de Senhora de Oliveira não mais confiava em desculpas. As brigas miúdas eram de conhecimento do povo, mas as mais importantes ocorriam nos bastidores da política, principalmente em Piranga, onde havia gente graúda que não queria uma solução enquanto os adversários estivessem no poder. Nesse tocante, o que ocorria em Senhora de Oliveira era bem diferente.

Era ruim e piorou.



Enquanto os mandachuvas brigavam, e os anos passavam, uma depreciação maquinal e maquiavélica, porque tramada, grassava à velocidade da luz, pondo oxidação e trincas naquelas engrenagens, causando um travamento progressivo e contínuo, e a usina gemia, não mais zunia. E as lâmpadas pisca-piscavam a noite inteira e algumas fagulhavam e nem se sabia ao certo se estavam acesas ou apagadas. Para quem gosta do ditado de que é na escuridão que se vê melhor, vivesse na região, nos anos 60 do século XX, e seria um sábio de grande visão e muito tropicão; iluminado à noite, naquela época, só mesmo o céu, é claro. Mas assim como não serve ao progresso a filosofia da escuridão e nem ao sábio "o vamos esperar para ver", alguém ou alguns teriam que vir em socorro à população e vieram: na beira do rio Piranga, uma cabeça mais pensante do que as outras teve uma ideia que um dia Geraldo Vandré imortalizaria com o refrão: "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer".


A criação ao contrário: faça-se a escuridão, e a escuridão se fez.


Izaltino Gonçalves Filho,
o Titino, foi testemunha
ocular da histórica queda
de postes. Na foto ele
aparece de calça preta,
camisa branca e óculos
escuros. (Clique para
ampliar esta foto)
O fim desta história de usina acabou, para Piranga, da seguinte forma: algumas lideranças, dessa histórica, bonita e importante cidade, cansadas de esperarem por uma solução política, já que as forças da oposição amarravam a entrada de Cemig, isso porque não queriam entregar os louros desse feito ao Prefeito da situação, resolveram agir. Convencidos de que é melhor uma escuridão passageira que um lusco-fusco pelo resto da vida, cerca de cem homens rumaram decididos até as divisas de Senhora de Oliveira e de lá voltaram derrubando postes, enrolando fios, e assim passaram o dia inteiro. À noite entraram em Piranga com caminhões carregados de fios de cobre, transformadores e outros equipamentos menores usados como isolantes, jogaram tudo na frente da Prefeitura e na Praça. Conseguiram a mudança na marra. A partir de então, nenhuma força política teria como atrasar a entrada da luz na cidade.

Em Senhora de Oliveira, algum tempo depois, aconteceria algo também um tanto fora do comum, a usina seria levada água abaixo. Pode parecer até uma piada, mas é a mais pura verdade: sem mais nem menos tudo ruiu: tubos pesados, paredes de concretos, máquinas, tudo perdido de um minuto para outro. Suspeitas de sabotagem? É claro, mas o líquido e certo é que aquelas águas não mais tocariam rodas e nunca mais zuniriam em cima e ferveriam embaixo. A perda da usina representou um prejuízo incalculável para Senhora de Oliveira, caso tivesse sido mantida, o município, a exemplo de outros que assim fizeram, poderia vender sua energia para a Cemig e assim reduzir seus custos com economia substantiva para toda a população da cidade e da zona rural. 

E antes que a escuridão do tempo assoreie as nossas mentes e encubra de vez nossa história e nos afaste de qualquer vestígio de verdade, escreveu-se essa versão dos fatos, outros que abram as comportas de suas versões. Lembrem-se de Carlos Drummond de Andrade a sussurrar em nossos ouvidos "A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade".



quarta-feira, 27 de junho de 2012

Bichoca-de-cana-caiana.




Gentil e Neném, gêmeos idênticos.



Dedicado àqueles que têm certas 
incertezas quanto a estarem vivos.



Por Lulu


Esta é a história dos gêmeos idênticos, Gentil e Neném, que trabalhavam num engenho puxado a cavalo. Ali eles operavam os equipamentos de extração da garapa de cana-de-açúcar e cuidavam do cavalo durante a jornada diária. Pequenos, mas exímios em tarefas que exigissem força física, só tinham dificuldades para alcançar objetos altos.
Dois moleques que faziam uma dupla respeitada pelos adultos, pois viviam em perfeita harmonia, sem discussões e mamparras, o que favorecia o trabalho. Além de serem iguais na aparência, tinham os mesmos traços psicológicos: dóceis; bom caráter, embora em formação; alegres desde o berço de taquara, onde a mãe os embalara ao ritmo da mão de pilão — recurso de mãe pobre, uma mão para o carinho, outra para o pão.
Precoces em força e agilidade, cedo foram colocados sob o peso das ordens de um patrão que expressava seu motivo econômico, repetido diariamente, no início de cada jornada de trabalho, com palavras espalhafatosas que eles não entendiam: "A limpeza e a organização no ambiente da obrigação é o melhor meio para se produzir cada vez mais com cada vez menos". Talvez até sem o perceber, o patrão dava sempre um acento mais forte ao falar “cada vez mais com cada vez menos”.
Eram de uma família humilde que morava numa casinha de sapé, com piso de chão batido e paredes de pau a pique rebocadas com barro cru.  Nas noites frias, adultos e crianças embolavam-se ao redor de um fogo no centro da cozinha. Enquanto as chamas crepitavam, os marmanjos contavam casos de assombração que as crianças ouviam aterrorizadas, mas logo esqueciam essas histórias e, entre risos e deboches, brincavam com  aquele lema do engenho e cantarolavam-no como se fosse um refrão de carnaval: "Cada vez mais com cada vez menos... Cada vez mais com cada vez menos... Cada vez mais com cada vez menos...”. O eco do engenho invadia a vida privada com novos significados, mas ninguém via mal nisso. 
Os cavalos do engenho eram domados para charrete, portanto, aceitavam viseiras. O proprietário, JB, usava a  viseira como trampolim para criar uma linguagem de comunicação com os garotos, dizia-lhes: "animais e crianças, quando em serviço, não podem ficar olhando para os lados; meninos precisam se concentrar e cavalos não podem se assustar". E, para fechar com chave de ouro, completava solene: "Mantenham um olho no cavalo e outro nas moendas", instrução que as crianças entendiam num sentido muito literal e, por isso, não tinham como praticá-la, não sendo zarolhos não podiam olhar para lados opostos ao mesmo tempo.

Acostumados a essa lida e sem noção de outras possibilidades, nem os meninos, nem seus pais tinham motivos para reclamações, não conheciam livros nem notícias de um mundo melhor. Para os meninos, tudo que cabia em seus sonhos estava à mão: um bom engenho, um raro patrão que xingava pouco,   um alazão forte e preparado para a moagem de canas encorpadas, e equipamentos bem lubrificados.
Mas chegou o dia em que a natureza fez o bagaço liberar um cheiro, curiosamente agradável, de garapa em fermentação. Um mundo ideal despertara, havia um brilho especial no canavial. A cerração se dissipava. O sol esparramava sua luz sobre a beleza do lugar e fazia a vida mais alegre e, pelo contraste, a morte mais triste pelo que com ela se poderia perder. Deus estava presente no vento, nas últimas gotículas de neblina, na vegetação e na claridade alaranjada que tomava conta das grotas mais próximas; e o diabo espreitava pelo buraco da bichoca-da-cana-caiana.
Um pouco mais tarde, o lugar esquentou e a vida latejava forte. O engenho entrou no seu normal: o cavalo no caminhar em círculo; a moenda a engolir as canas; o bagaço caindo seco num balaio; a garapa escorrendo para a grande tacha de rapadura. O sol atingia o ponto mais alto do céu quando o menino que alimentava a moenda distraiu-se do trabalho porque chupava, com fome e gulodice, um pedaço de cana caiana que descascara com seu canivete de bolso . Lambuzava-se como se fosse a última doçura que a vida lhe daria. Com a mão direita, segurava o gomo que chupava e; com a esquerda, a cana que depositaria na moedora. Essa falha foi o primeiro elo da corrente de acontecimentos que levaria ao acidente; mas não, à causa única. O menino da moenda não estava, naquele momento, trabalhando corretamente, pois engenhos que se prezam gostam de duas canas de cada vez porque não se desperdiça a capacidade do equipamento e nem se nega o objetivo econômico "cada vez mais com cada vez menos".
Quando o irmão observou aquilo, gritou:

— Manoooo, não é hora de merenda, põe mais cana!


Sempre literal e obediente, mal ouvira a reclamação, jogou longe o gomo que chupava, abraçou um feixe de cana e o soltou de supetão na moenda. E, faceiro, gritou para o irmão:
— Simbora! Cada vez mais! Cada vez mais!
E o cavalo que roda o dia inteiro na trilha do próprio rabo e em cima do que debaixo dele pode cair — coitado, será sempre o primeiro a cheirar as próprias necessidades fisiológicas — agora sentiu o impacto da moenda travando. Empacou. E aí veio o "acaso" a atrapalhar aquele dia maravilhoso e  o ambiente de trabalho em que nada se perdia nem o bagaço. Essa era uma fazenda, como tantas, onde os ganhos eram sacralizados sem preocupação com os riscos.   E isso trouxe à luz uma tragédia  e deu à escuridão uma criança, triste inversão.

—Manoooo dê uma olhada para ver se algum trem está prendendo a manjarra no telhado ou na viga?
Disse o guia do cavalo ao que cuidava da moenda.
O da moenda, confiante em sua destreza, subiu sobre a anca do cavalo, enfiou a cabeça entre uma viga e a manjarra. A cabeça entrou, mas não podia ser virada para a outra direção, tal era o estreitamento daquela vão e, como dizem por aí, aonde entra a cabeça entra o resto, então, ele enfiou também o braço direito para apalpar onde não podia ver. Esperava achar ali alguma saliência, algum parafuso que pudesse ter se desatarraxado e prendido a manjarra na viga ou nas ripas do telhado. Nessa tentativa de entrar aonde não cabia, chegou a uma posição de impasse e de pouco equilíbrio ficando preso entre a viga, que sustenta o telhado do engenho, e a manjarra, que liga as engrenagens à força do cavalo.  Bastou um  impulso para mais uma apalpadela, e o "acaso" se revelou por inteiro: perdeu o apoio do pé esquerdo, que estava sobre o traseiro do animal, que entrou debaixo do rabicho e na culatra. O cavalo  assustou-se ao sentir a repentina invasão de sua região mais sensível, e, num impulso vigoroso, venceu as forças que faziam o travamento. A manjarra subiu um pouco e avançou rapidamente não dando tempo para o menino tirar a cabeça daquele vão. Tudo que ligava a cabeça ao tronco rompeu-se enquanto o cavalo desenfreado arremetia-se. Em segundos tudo estava consumado.

Um derradeiro grito abafado
; o barulho da arrancada do cavalo; o estalo da manjarra; toda essa algazarra fez surgir, como por um encanto, variega gente que não parecia estar tão perto. As marcas da tragédia não se faziam tanto pelo sangue, mas pelo cenário assustador que não merece descrição porque impróprio.
O patrão chegou assustado e, sem saber qual dos iguais havia morrido,  perguntou para o menino que segurava o cavalo.

- Gentil, pelo amor de Deus! Qual de vocês morreu?

Estaria o patrão rebatizando aquele menino?  Para uma pergunta desastrosa, a resposta tinha que ser imediata, irrefletida, ilógica e apatetada:

— Meu patrão, pela Virgem Nossa Senhora! Eu acho que não foi o Neném quem morreu.

E assim, aquele que o povo passou a tratar por Gentil, talvez fosse o irmão, pois ele mesmo nunca soube esclarecer. E a partir daquele dia, quando lhe perguntavam:

— Gentil, foi você ou seu irmão quem morreu?

A resposta era invariavelmente educada:

— Meu senhor, até hoje não sei bem, tem hora que acho que foi o Gentil.

Assim, negava-se Descartes, "Penso, logo existo", mas confirmava-se Shakespeare, "Ser ou não ser, eis a questão".

É quem quiser aprenda a lição: o diabo mora no detalhe, como diz o provérbio alemão, mas costuma esconder na bichoca-da-cana-caiana e fingir de "acaso,", como aconteceu no engenho JB.


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Os bailes de Senhora de Oliveira

Por Caieira
Se baile é uma reunião cujo fim principal seja a dança, então, os nossos não eram bailes, mas poderiam ser intitulados de patuscadas, embora esse não seja um nome corriqueiro por aqui, mas exprime a ideia. Em nossas reuniões para dançar, a dança era a desculpa mais esfarrapada. A bem da verdade, os meninos estavam atrás de rabo de saia e as meninas, não sei de quê. Aliás, elas que falem por elas e não me venham com subterfúgios, pois, destas coisas que ocorreram na juventude quanto mais idade temos mais nos lembramos dos detalhes e melhor os sabemos interpretar, mas acontece que muitas vezes queremos esquecer e riscar o passado como se fôssemos outros. A vida brota de safra única e é linear, quem quer esquecer uma parte dela, não a viveu na íntegra, deles sinto pena. O melhor é lembrar-se de tudo, cuspir no que não prestou e entronizar, na aba esquerda do peito, o bom. Não é preciso ser poeta nem escritor para enaltecer o que é bom.

A nossa turma era assim: ninguém sabia cantar, ninguém sabia tocar; dançar, quase nada, só queríamos ficar juntos a elas ou, no mínimo, com elas por perto. Reunir a turma, chamar as moçoilas, correr os riscos, enormes para a nossa idade: ser recusado; levar um fora é duro, mas, mesmo assim, valia a pena. E não podíamos dar o troco, por aqui não havia o baile da cebola, em que se invertem os papéis, os homens são tirados para dançar pelas mulheres, e podem então aplicar o famoso chá de cadeira nelas. Nossa realidade era diferente, nós, os homens é que, às vezes, tomávamos o famoso chá de cadeira. Mas, a vontade de atravessar a pinguela era mais forte que o medo da água fria, mesmo os mais feiinhos, os tímidos, os filhos de pai mancueba e os caolhos compareciam. Sempre aparecia algum garoto com uma radiola e alguns discos de vinil; na modernidade de nosso tempo, os discos de latão, já aposentados, haviam virado peças raras de museu.

O salão da prefeitura, onde os vereadores se reuniam semanalmente, para nossa alegria, nunca aos sábados e domingos, era, na ausência de colisão de agenda e de interesses, um bom local. O difícil era encontrar o "Escurinho", o funcionário mais popular da prefeitura e mais importante, pois guardava a chave do lugar. Alias, esse era o único problema capaz de adiar, mas nunca de impedir os nossos "bailes". Percalços ocorriam porque decidíamos tudo na última hora despreocupados com os roteiros, éramos improvisadores. O Prefeito jamais negava o espaço para a juventude bailar, talvez pensando que aqueles pés irrequietos, aqueles badalos incontidos e aquelas coxas macias um dia votariam.

Quanto mais se vive mais se tem a certeza de que ter vivido a infância e a juventude nas ruas de Senhora de Oliveira foi um privilégio. Numa frase a altura de Zé Candin, nós poderíamos dizer: das ruas e bulevares do mundo inteiro, nós preferimos a Praça São Sebastião. E quem era jovem, em nosso tempo, teve a sorte de experimentar, numa só existência, o sabor da evolução em progressão geométrica. Um dia estávamos na idade média --- latrina longe de casa, casa sem luz elétrica, ruas sem calçamento, cidade sem salões de baile, bicas sem água encanado --- e, no outro (maneira de falar encurtando a escala do tempo), já tínhamos televisão parabólica, internet, TV a cabo, estrada asfaltada, ruas calçadas. O bom disso é que a gente não se assusta com o engavetamento das mudanças; acostuma-se, adapta-se, participa, usufrui, mesmo falando mal delas. A igreja local que, naquela época, perseguia nossos "bailes" e botava caraminhola na cabeça das mães de nossas senhoritas, modificou-se, modernizou-se, aceitou o inevitável, dobrou-se frente ao nosso santo calvário de "bailes" e serenatas. Éramos simples, bastavam-nos uma vitrola e algumas pernas de gêneros diferentes.

Para os cosmopolitas excludentes, que acham que apenas as grandes cidades são maravilhosas, digo com certeza absoluta e contida brabeza, ser feliz tem tudo a ver com o estado de espírito e muito pouco com os meios. Ser feliz, principalmente em grupo, depende de um estado de euforia contagiante que não se explica na solidão. Por outro lado, ser feliz na solidão, mais ainda independe dos meios, é uma questão de bastar-se, deixar que multidões de sentimentos, de sensações e de lembranças venham povoar a mente. A solidão, assim, não é absoluta e nem estar só, é estar com multidões de outros sem a presença física de ninguém.

E os nossos insubstituíveis bailes, nisso a evolução fez pouco: a felicidade, a alegria, o prazer da conversa ao pé do ouvido, nada disso mudou com todas essas evoluções. Os bailes com orquestras a acompanhar Frank Sinatras não nos impressionavam. Resolvidos, adaptados, reais, pé no chão, tudo somado é o que sentimos quando pensamos aquele tempo.

O que mais um adolescente pode fazer nessa terra? Perguntávamos só por perguntar, pois a resposta não era importante. Lembro-me de que chegamos a nos reunir, quando o piso do segundo andar da prefeitura ameaçava ruir, até na oficina de carpintaria do Izaltino Trindade. Não sei quem conseguiu a autorização, mas aconteceu, na Rua Nova, a segunda ou terceira casa da direita da primeira esquina de quem sobe, sem contar o beco do Palmital.

E assim, encharcado de modernidade e gostando de tudo de bom que há hoje, não desprezo o meu passado, não nego as minhas memórias e não deixo sobejos. Quem me provocar, verá!

O dono da bola

por Caieira

Chega com ela debaixo do braço, alisando-a só por alisar, sem segundas intenções, ou teria? Oito anos bem vividos; peito estufado; cabeça e olhos grandes; quase dentuço com direito à falha do meio; "filho de peixe peixinho é", seu pai joga muito; sorriso de vencedor; é o dono da pelota e ainda por cima é bom de bola. Mas ninguém diz: "Oh!"

Ali perto, pedras esperam para serem quebradas no martelo e medidas em latas de banha ou querosene. A base da nova Igreja Matriz precisa de muitas latas de brita. Ganha-se um cruzeiro por lata cheia, não há criança da cidade que não queira quebrar pedras, a meninada vai ficar bem de bolso, o bar dos Lanas vai ficar cheio, vai sair menino pelo ladrão; a geladeira a querosene foi acesa, muitos picolés serão vendidos. Por enquanto nada de Igreja, parece que a comissão da construção foi desfeita, alguém cavaqueou, e o Padre pôs o pé no freio. A esplanada e o campo de Futebol, onde os meninos jogam bola, foram doados para a construção da Igreja, o benfeitor chama-se João Camilo Milagres. Todos na Cidade sabem disso, mas ninguém diz: "Oh!"

Mas agora é hora de a pelada começar, logo se estabelecem as regras do jogo, como normalmente ocorre, dois jogadores, tipo cabeça de grupo, irão escolher, em sucessivas intercalações, os jogares que irão compor os dois times. O dono da redonda se define como um dos melhores, e nisso não há injustiça alguma, mas ele não se contenta com sua metade do espetáculo, define também o cabeça de grupo do time rival, e nisso já não é tão justo; mas ninguém diz: "Oh!"

A praxe, um sorteio na porrinha ou no par ou ímpar define, entre os dois cabeças de grupo, qual escolhe primeiro; mas hoje não será assim, o dono da bola quer escolher primeiro e já disse: "meu time é o de camisa". E assim, esses cabeças de grupo vão formando os times. Quem é escolhido pelo adversário do dono da bola tira a camisa e a joga no monte de pedras mais perto. Os últimos a serem escolhidos são os pernas-de-pau, ninguém se sente humilhado, ser ruim de bola não é tão ruim assim. Algazarra e camisas jogadas nas pedras, lagartixas correm assustadas e procuram novos montes de pedras; mas ninguém diz: "Oh!"

Começa o jogo, foi ou não foi falta: há uma pequena discussão, o dono da bola se acha justo o suficiente e obedecido mais que suficiente para afirmar: “foi”; e para o lado de lá. Todos agora sabem que o dono da bola, além de ser jogador do time de camisa, é o juiz da partida. Vamos à peleja: uma bola espirrada escapa pela lateral, "bola nossa.", apressa-se em dizer o dono da bola; mas ninguém diz: "Oh!"
E assim, a partida segue normal, até que o dono da bola diz que sofreu uma falta, quem a teria cometido não concorda com o julgamento, não aceita. Um rápido bate-boca. Alguém diz: "Oh!" O dono da bola bota a bola debaixo do braço e diz, Uai! O que teria cometido a falta, ofendido e chorando, sete anos, sai do jogo e vai embora, tão pequeno e tão renitente; e nem bola tem. Mais ninguém diz: "Oh!"

O Dono da bola bate a falta. Duas pedras delimitam a meta, não há balizas, a bola passou alta, mas ninguém contesta, o juiz diz: "foi dentro". O Jogo continua, os adversários do dono da bola estão perdendo, mas querem jogar, agora eles estão em minoria, perderam o jogador renitente, nem tanta falta faz, será que é por isso que ninguém disse: "Oh!"?

Uma senhora bonita, alegre e jovial debruça-se no parapeito da pequena varanda a poucos metros dali. O dono da bola tem mãe? Tem e ela diz, "Uai!" Todos dizem: "Oh!".

O jogo acabou.

Ele sai com ela debaixo do braço alisando-a só por alisar, é o dono da bola.