Por Lulu
Escrito à luz de lamparina pela minha melhor metade.
Dedicado ao amigo Izaltino Gonçalves Filho.
Uma
luz que se apagava.
Há amores que não adormecem em nós, e
fatos que não deveriam ser esquecidos, assim me parece a história da usina
elétrica que, nos anos 50/60 do século XX, servia à comunidade de Senhora de
Oliveira, mas era propriedade de Piranga. A partir de 1953, essa geradora
passou a ser a causa de querelas entre os habitantes das duas cidades. Enquanto
os políticos e cidadãos mais exaltados brigavam pelo direito de usá-la, a usina
definhava, como um doente abandonado que aos poucos vai perdendo a energia e a
capacidade de transmiti-la aos outros e, já nos estertores da morte, sua forma
visível, um tanto esmaecida, brindava-nos com uma luz apagada, uma vela. Nem os
adeptos de São Lázaro tinham esperanças de que aquelas máquinas ressuscitariam.
Nós, os oliveirenses, fingíamos ter luz; e a cidade de Piranga, que no-la
cedia.
Muitos entreveros aconteceram naqueles
anos obscuros, alguns nem sei se fruto de invencionices de nossa gente, que é
cismada demais, como a história de que alguns populares de Piranga houvessem
saído em passeata em direção a Senhora de Oliveira com a intenção de
percorrerem os 22 quilômetros que separam as sedes dos dois municípios e de, ao
final do percurso, desligarem uma grande chave que deixava passar a energia que
ia para o ex-distrito. Mas, até onde se sabe, prevaleceu o bom senso da turma
do deixa disso, e a aventura foi abortada.
Piraguara,
a melhor costela de Piranga.
Poucos admitem a importância de Piranga
no desenvolvimento de Senhora de Oliveira. Não deveria haver controvérsia sobre
isso: uma é filha da outra, mas não se reconheciam como tal. Aliás, não fossem
todas as provas históricas escritas e faladas de que Piraguara fora distrito de
Piranga, bastaria esse nome para servir de testemunha cabal de que as duas cidades
tiveram a mesma origem: Piraguara, se lhe acrescenta uma “nga”, nada mais é que
Guarapiranga escrita ao contrário e, por sua vez, Guarapiranga é o antigo nome
de Piranga. Que Piranga chamava-se Guarapiranga todo mundo sabe ou deveria
saber, o que ninguém sabe é por que, em 1923, tiraram o guará (palavra indígena
que significa vermelho) da fachada de uma e botaram como rabicho na outra.
Muitas piadas caberiam nesse troca-troca de letras, mas, naquele tempo, uma
brincadeira com isso poderia levar a óbito. Era um tempo em que os ânimos
exaltados prevaleciam sobre o legado que a cidade menor recebera da maior.
Menos ainda reconheceriam, os habitantes de Senhora de Oliveira, que a energia
elétrica fora instalada no antigo arraial sob a administração de Piranga.
Nos casos de emancipação municipal, é
normal que aconteça um olhar enviesado dos moradores da sede do território
desmembrado em direção aos beneficiados com a mudança. Na maioria das vezes, as
animosidades começam na campanha para a desvinculação, em que as pessoas que
desejam a autonomia de governo têm que contrariar seus habituais parceiros,
decepcionar os antigos chefes políticos e negar as vantagens da unidade. Uma
não quer mais depender da outra para planejar e executar seu próprio
desenvolvimento. Essa liberdade, de andar com as próprias pernas, tem seu preço
e assim aconteceu neste caso, depois que Piraguara emancipou-se e saiu para o
abraço, viu que Piranga continuava com os braços cruzados, numa atitude em que
se fechava a uma solução amigável no caso da energia elétrica. Por outro lado,
o povo de Senhora de Oliveira não quis compreender que, sob a ótica da antiga
sede, cortar a energia de seu ex-distrito não era uma questão de birra, a luz
não dava nem para uma das comunidades, alguém tinha que sofrer, e, em casos
assim, sofre mais quem pode menos.
Não
cortou por quê?
Pergunta quem lê este apanhado, por que
Piranga, sendo a dona da usina, simplesmente não desligou a luz de Senhora de
Oliveira, e ponto final. Acontece, caro amigo, caso você ainda não saiba, a
usina era fincada, em maciço de pedra, dentro do Município de Senhora de
Oliveira e a poucos quilômetros do casario. Essa usina ostentava sua bela
figura ali onde hoje, outubro de 2012, está a destilaria de álcool Junivan.
Vê-se que evitar uma briga desse tamanho não era só uma questão de bom senso, a
dona da usina temia represálias. Não houvesse uma solução amigável, o
patrimônio, objeto da disputa, ficaria à mercê do povo prejudicado que, com
certeza, não seria um depositário fiel confiável. Questões de ordem prática
completavam esse quadro: para desligarem a luz de Senhora de Oliveira, mesmo
que atalhassem por Guiné, uma pequena comunidade quase nas divisas entre as
duas litigantes, ainda tinham que passar por uma grande faixa de terras que, na
nova ordem, pertenciam ao município recém-nascido. Na época, Alcides Fidelis,
teria resumido o impasse com a frase: "quem bebe a água que nasce em
terras do vizinho de cima só pode brigar com o de baixo".
Um
paraíso para as crianças.
Para as crianças daquele tempo, do que
sou testemunha ocular, a usina era um local mágico aonde iam com as professoras
que as ensinavam um pouco de como se dá a luz — não confundir com como se dá à
luz, pois naquela época esse assunto era tabu, e as meninas, pelo recato com
que eram educadas, jamais poderiam ouvir sobre essas coisas de uma professora,
pois esta correria o risco perder o emprego, no mínimo —. Mas vamos deixar de
lado esses detalhes, voltemos ao tema central: pensar na usina é pensar em sô
Lauro (que Deus o tenha em sua luz), um gênio que sabia consertar aquelas
parafernálias que rodavam a grande velocidade, produzindo correntes
misteriosamente elétricas, coisas invisíveis e sem peso, que escapuliam por
aqueles fios finos e levavam aquela brasa para as lâmpadas das ruas e das
casas. Para as crianças, essa magia tornava-se mais uma atração, pois o local,
onde ficava a usina, era também excepcional, mesmo para quem não apreciava
adjetivos fortes era: estupendo, maravilhoso, encantador e o escambau. A água
do Ribeirão dos Peixes era aprisionada, alguns metros antes de chegar à usina,
por um canal cimentado e assim, escrava do trajeto, como um boi entra no
matadouro, ia cair num tubo enorme que se afunilava até chegar à roda dentada,
parecida com essas de moinho de fubá, só que em posição vertical. Tanta água
espremida pela gravidade só podia descer com força e, assim, chegar à roda,
senhora da mágica maior, com enorme pressão, e aquilo zunia, como dissera Chico
Filó quando ali excursionara, "Zune em cima e ferve embaixo", e os
colegas pensaram que ele se referisse à alguma colega de sala mais
falante e assanhada, mas não, filó havia sido literal.
O
sucateamento
Mas nós, as crianças, perderíamos aquele
paraíso. Dizia-se que o processo de sucateamento da usina começara quando ela
servia a outras comunidades. O certo é que, depois de 1953, com a emancipação
do distrito de Piraguara, que passou a chamar-se Senhora de Oliveira, as trevas
se aproximavam e causavam terror, maior, obviamente, entre as mães de família,
principalmente as que tinham meninas moças; estas, as donzelas, nem se
importavam, pois a juventude sempre percebe quando um novo tempo de mais
liberdade, responsabilidade e amor se aproxima, mas as matriarcas, agarradas
nas tábuas do passado, tremiam enquanto pensavam em suas filhas naquela
escuridão, naquele apagão intermitente e ao alcance de marmanjos
aproveitadores. Enquanto as mães invocavam seus santos em extensas ladainhas
cantadas na penumbra da Igreja Sagrado Coração de Jesus, os anos iam passando,
e a picuinha entre as duas cidades crescendo: ninguém queria ficar sem luz,
então, elas brigavam pelo restinho que ainda podiam ter. Cortar a luz da nova e
orgulhosa cidade, como solução paliativa, ocorria com frequência. Às vezes Piranga
justificava a cada vez menos esporádica interrupção do fornecimento com
argumentos técnicos, mas, com os ânimos acirrados, o povo de Senhora de
Oliveira não mais confiava em desculpas. As brigas miúdas eram de conhecimento
do povo, mas as mais importantes ocorriam nos bastidores da política,
principalmente em Piranga, onde havia gente graúda que não queria uma solução
enquanto os adversários estivessem no poder. Nesse tocante, o que ocorria em
Senhora de Oliveira era bem diferente.
Era
ruim e piorou.
Enquanto os mandachuvas brigavam, e os
anos passavam, uma depreciação maquinal e maquiavélica, porque tramada,
grassava à velocidade da luz, pondo oxidação e trincas naquelas engrenagens,
causando um travamento progressivo e contínuo, e a usina gemia, não mais zunia.
E as lâmpadas pisca-piscavam a noite inteira e algumas fagulhavam e nem se
sabia ao certo se estavam acesas ou apagadas. Para quem gosta do ditado de que
é na escuridão que se vê melhor, vivesse na região, nos anos 60 do século XX, e
seria um sábio de grande visão e muito tropicão; iluminado à noite, naquela
época, só mesmo o céu, é claro. Mas assim como não serve ao progresso a
filosofia da escuridão e nem ao sábio "o vamos esperar para ver",
alguém ou alguns teriam que vir em socorro à população e vieram: na beira do
rio Piranga, uma cabeça mais pensante do que as outras teve uma ideia que um
dia Geraldo Vandré imortalizaria com o refrão: "Quem sabe faz a hora, não
espera acontecer".
A
criação ao contrário: faça-se a escuridão, e a escuridão se fez.
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Izaltino Gonçalves Filho,
o Titino, foi testemunha
ocular da histórica queda
de postes. Na foto ele
aparece de calça preta,
camisa branca e óculos
escuros. (Clique para
ampliar esta foto) |
O fim desta história de usina acabou,
para Piranga, da seguinte forma: algumas lideranças, dessa histórica, bonita e
importante cidade, cansadas de esperarem por uma solução política, já que as
forças da oposição amarravam a entrada de Cemig, isso porque não queriam
entregar os louros desse feito ao Prefeito da situação, resolveram agir.
Convencidos de que é melhor uma escuridão passageira que um lusco-fusco pelo
resto da vida, cerca de cem homens rumaram decididos até as divisas de Senhora
de Oliveira e de lá voltaram derrubando postes, enrolando fios, e assim
passaram o dia inteiro. À noite entraram em Piranga com caminhões carregados de
fios de cobre, transformadores e outros equipamentos menores usados como
isolantes, jogaram tudo na frente da Prefeitura e na Praça. Conseguiram a
mudança na marra. A partir de então, nenhuma força política teria como atrasar
a entrada da luz na cidade.
Em Senhora de Oliveira, algum tempo
depois, aconteceria algo também um tanto fora do comum, a usina seria levada
água abaixo. Pode parecer até uma piada, mas é a mais pura verdade: sem mais nem menos tudo ruiu: tubos pesados, paredes de concretos, máquinas, tudo
perdido de um minuto para outro. Suspeitas de sabotagem? É claro, mas o líquido
e certo é que aquelas águas não mais tocariam rodas e nunca mais zuniriam em
cima e ferveriam embaixo. A perda da usina representou um prejuízo incalculável
para Senhora de Oliveira, caso tivesse sido mantida, o município, a exemplo de
outros que assim fizeram, poderia vender sua energia para a Cemig e assim
reduzir seus custos com economia substantiva para toda a população da cidade e
da zona rural.
E antes que a escuridão do tempo
assoreie as nossas mentes e encubra de vez nossa história e nos afaste de
qualquer vestígio de verdade, escreveu-se essa versão dos fatos, outros que
abram as comportas de suas versões. Lembrem-se de Carlos Drummond de Andrade a
sussurrar em nossos ouvidos "A porta da verdade estava aberta, mas só
deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a
verdade, porque a pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade".