Tudo
começou quando ele me provocou:
—
Psiu! Psiu!
Virei-me
para ver quem me chamava tão aflito e logo o encontrei, era um dos retratos que
eu havia pendurado na parede da casa da roça, no corredor que leva aos quartos
de dormir e ao lavabo. Achado, ele prosseguiu:
—
Sou apenas uma foto, nada mais! Avise o pessoal.
Aproximei-me
um pouco mais, e ele repetiu quase gritando:
—
Avise o pessoal! Avise!
Eu
me dirigia ao lavabo antes de ser interpelado, entrei e lavei as mãos. Quando
voltava, ele chamou-me novamente, usando as mesmas palavras, mas agora sem os
psius e em tom menos agressivo. Não me preocupei com aquilo, tinha afazeres:
aplicar vermífugo numa bezerra que nascera dois dias
antes, filha de um nelore de sangue; bicheiras por aqui não têm vez, desde
pequenos, os animais já são benzidos pelo Geraldo Ferro Véio e, na dúvida
quanto às intervenções do além, tratados pelos métodos convencionais; quando
preciso, conto com a EMATER, que está aí para ajudar e sabe o que faz. Nesse
dia, fiz também a primeira adubação de cobertura do pomar, tarefa que gosto de
realizar pessoalmente na estação de chuvas e em três etapas, a primeira em
outubro. Mas ao anoitecer, quando as galinhas já haviam empoleirado, e o sapo
martelo já estava a cravar seus pregos numa ripa imaginária, em um brejo real,
e os vaga-lumes a pisca-piscar, eu voltei para casa e passei novamente pelo
corredor e, dessa vez, não aguentei calado a uma nova chateação daquele abusado
retrato:
—
Psiu! Psiu! Sou apenas uma foto, nada mais! Nada mais!
Repetiu
e realçou o final com ares de quem filosofava, fazendo-me lembrar de refrões
emolduradas pelo prestígio universal: só sei que nada sou; conheça-te
a ti mesmo; penso, logo existo; ser ou não ser, eis a
questão!; tudo que é sólido se desmancha no ar; e nessa linha. Não
sei se por causa do frio que neste ano acontece em época de calor ou se pela
alta de tudo quanto compro e a baixa do pouco que produzo, perdi a calma e
xinguei:
—
Vá pro raio que o parta!
Concomitante
com a praga que eu acabara de rogar, um raio desestabilizou o lugar: fez a
noite virar dia; as galinhas de cima sujarem as de baixo; o martelo do sapo
travar; e o vaga-lume desnortear-se de tanto clarão. O estrondo demorou a
chegar aonde eu estava. Dizem, e eu aceito como verdadeiro, que a luz tem
velocidade tão grande que nos parece instantânea, e o som de um raio se propaga
mais lentamente, a menos de meio quilômetro por segundo. Mesmo
sabendo que minha medição disso é imprecisa, pude estimar distâncias
aproximadas e firmar a convicção de que, apesar de tanto clarão, esse raio
caíra longe. Notei que o retrato continuava impassível, quebrei a calmaria
pós-raio e fui a um suave ataque verbal:
—
Você sabe que é muito mais que uma foto. Pelo menos para nós humanos, que somos
animais simbólicos, nada é tão simples. A maioria de nós adora mistérios,
milagres e dogmas; de ver significados atrás das aparências. Estamos
sempre “a procurar chifre em cabeça de cavalo” e, na maioria das
vezes, nós o encontramos lá.
O
retrato respondeu com jogo de palavras:
—
Você quer que eu me retrate? Mal comecei a falar!
Eu
retruquei à altura:
—
Estou vendo que você é mesmo delicado. Não gosta de provocações nem de
trocadilhos ingênuos e sabe respeitar a hora e o lugar.
O
retrato respondeu à minha ironia com um alongado discurso, parecia querer
exibir sua eloquência ou vingar-se da reprimenda:
—
Não se esqueça, sou um retrato de parede, vivo em plano vertical. Não posso
olhar para você, só posso ouvi-lo, e não teria como perceber ironia, nem riso
fingido, se não fossem palavras vãs, colocando entrelinhas com críticas à minha
conduta. Percebo que você está com raiva. Um homem zangado é mesmo sem graça!
Mas você é sempre meio esquisito, passa aqui na minha frente, várias vezes por
dia, e nada sabe de minha vida. Trata-me como se eu fosse um velho que já
se consumiu por alguém ou por uma causa e que não merece mais a gentileza de
uma atenção. Eu, de minha parte, posso dizer que nunca me doei a ninguém, mas
tenho coisas para contar. E vou direto ao ponto: quis a sina que eu visse e
retratasse apenas uma vez na minha existência. Não sou uma exceção, todos da
minha espécie são assim. Não tenho porque reclamar. Inicialmente eu carregava,
como todo filme virgem, uma carga de diferentes tonalidades, no meu caso
variações do cinza, e podia representar aquilo que se postasse na minha frente.
Um filósofo diria que eu era um ser em potencial, um ser por vir. Obviamente
sou limitado pelo estágio de desenvolvimento tecnológico de minha época, sou do
início do século passado, mas há compensações, o tempo fez-me ganhar densidade
histórica. Fui criado para produzir o que vocês hoje chamam de foto em preto e
branco. Nasceria a partir de uma câmara escura e malcheirosa. Minha hora
começaria quando um profissional que chamam de lambe-lambe acionasse um botão
que abriria uma fresta e deixaria passar a luz. Em toda máquina do meu tempo,
esse buraco pequeno, que se abre por apenas alguns segundos em cada produção, é
a única greta que deixa passar, de maneira controlada, ondas de luz suficientes
para que eu possa fixar, no meu corpo umedecido por misturas químicas, tudo que
eu conseguir abarcar num ínfimo lapso de tempo. Acho que você, se já não sabia,
entendeu, essa carga só pode ser liberada uma única vez. Passada essa
oportunidade, singular e rápida, nada mais poderei ver. Mas, felizmente,
continuo com o devir da audição, do entendimento e da sensibilidade. Cada filme
tem uma história, comigo aconteceu o seguinte: ao sair daquela câmara escura,
ainda protegido por uma capa preta que cobria a mim e ao ambulante, fui lambido
no sentido literal, platônico e nojento da palavra, e, após secar-me, passei à
categoria de espectro, um guardador de imagens do passado. A luz nunca mais me
sensibilizará e me transformará, tornei-me imutável na aparência. E se a
inércia fosse uma lei que pudesse ser aplicada à conservação das células, eu
poderia ser eterno na aparência, pois na essência já o sou, nenhuma lei bole no
meu interior.
![]() |
Dois jovens cheios de vida. |
O
retrato calou-se. A luz da sala, interrompida por um lustre velho, projetava
uma sombra diagonal, num dos lados do corredor e dissimulava os cantos
enrugados do papel grosso, onde uma imagem vetusta mostrava o perfil de dois
jovens cheios de vida, em contraste com a paisagem do chão que parecia
ainda impregnada do cheiro de ruas antigas, de urina e bosta de cavalos, de
calçada coberta de musgos.
De repente fomos inundados por um silêncio profundo, nem a ameaça de chuvas e o peso de nuvens carregadas de eletricidade, resvalando umas sobre as outras e fazendo o céu pororocar com chumaços escuros, nada disso parecia importar agora. O falante retrato ficou triste e compenetrado, e a arrogância da manhã e de momentos atrás evaporara. Eu ajustei-me ao clima, tornei-me mais constrito e aberto a esse tipo de conversa e disse:
De repente fomos inundados por um silêncio profundo, nem a ameaça de chuvas e o peso de nuvens carregadas de eletricidade, resvalando umas sobre as outras e fazendo o céu pororocar com chumaços escuros, nada disso parecia importar agora. O falante retrato ficou triste e compenetrado, e a arrogância da manhã e de momentos atrás evaporara. Eu ajustei-me ao clima, tornei-me mais constrito e aberto a esse tipo de conversa e disse:
—
Não sei se entendi bem o que você quer de mim, ou você é um bobo alegre e fica
repetindo o que ouviu por aí, ou de fato é muito profundo para um retrato.
Diga-me, você precisa desabafar, é isso?
Enquanto
ele pensava no que iria responder, dispus-me, pela primeira vez na vida, a
observá-lo com um pouco mais de atenção: estava numa moldura simples, muito
nova para um retrato tão antigo, provavelmente fora comprada numa loja de
descontos. No lugar do vidro havia apenas um plástico grosso, material simples,
mas de boa transparência, a imagem podia ser vista com nitidez. Quantas vezes
eu examinara aquela foto com interesse voltado para o conteúdo, não reparara na
espessura de papel, nas tonalidades, nem nas cores. Sempre gostei do tema que
ela traz impresso, induz-me a pensamentos patéticos: vejo nela poesia; onde
outros, apenas imagem. Mas agora podia notar que ela queria saltar da parede,
virar assunto, falar de si, enquanto objeto e história, e, de coisas que eu
sequer imaginara que uma foto pudesse conhecer. Ela parecia ler os meus
pensamentos, mas se ateve ao que eu havia perguntado:
— Não
se trata de desabafar, você já percebeu isso. Quando vocês humanos trocam
ideias, vocês estão desabafando? Acho que não, vocês chamam isso de
diálogo, pois bem, é disso que sinto falta, troca de opiniões e experiências.
Por trás desta minha condição de retrato, eu tenho casos e causos pra contar. A
verdade é que não vi mais nada desde aquele 7 de setembro de 1926 quando o
lambe-lambe me colocou naquela caixa preta, e, então, nós, ele e eu, ficamos a
esperar por algum freguês. Eu começo nossa conversa a partir daquele
dia: vi o lambe-lambe cochichando com a sua mulher. Essa mulher escondia
sua verdadeira identidade. Ele lhe disse, momentos antes de ela abordar os dois
que você pode ver aqui na minha face, “Amada, estes dois que estão se
aproximando parecem do interior, devem ser peões ou empregados de fazenda rica
e, pelo jeito como olham para a câmera, estão interessados em se verem num
papel desses. Vá lá querida!, desempenhe o seu papel, desperte neles os
narcisos que trazem na alma”. A mulher funcionava como agá do próprio marido e,
pelos seus predicados femininos, tinha grande competência para atrair clientes.
E logo ela achegou-se aos dois e desenvolveu uma espécie de gingado, como se os
chamasse para dançar num baile de ‘Maria Cebola’. A mulher tinha beleza e
curvas apropriadas para o negócio em que se metera, recursos que sabia usar
muito bem no ofício. O seu sotaque e jeito baiano, em que canta quando fala e
encanta quando rebola, eram novidade para os dois rapazes. Ela, com anos
de experiência na malandragem de enganar os incautos, sabia ler os mínimos
detalhes na expressão de futuros clientes, logo percebeu que o exagero no
baianismo lhe traria vantagens. Determinada, avançou sobre eles, como uma
gaivota faminta mergulha sobre os peixes da superfície do mar: colocou
atributos positivos nos rapazes, a maioria que não tinham; exagerou em elogios
aos retratos que o lambe-lambe pendurará nos varais, um era dela própria:
“Viram como eu fiquei bem nesta aqui! Eu estava dançando. Olha como o rapaz
trabalha bem!”, disse, sem revelar a sua condição de parceira do negócio e,
como todo agá que se preze, ela falava como um cliente comum que se empolga com
a beleza e qualidade do trabalho de um profissional: “Meu senhor” disse
dirigindo-se ao ambulante, “o senhor poderia fotografar-me dançando; é sim, eu
mesma, novamente, quero outras posições mais interessantes”. O ambulante,
dentro do jogo de sedução que se armara, respondeu: “Minha Senhora, claro que o
farei, mas vamos dar preferência para estes dois rapazes que parecem estar
cansados da longa jornada. A Senhora, que mora aqui tão perto, não poderia
esperar?”. Enquanto ela dizia “claro, claro!”, o menor dos rapazes encavalava
as falas e respondia: “De fato Senhor, viemos de Piraguara em lombo de cavalo.
O senhor conhece lá? Estamos cansados, mas nem tanto, eu mais ele estamos
acostumados a cavalgar e tocar tropas por essas montanhas e beira de rios. Não
são poucas as vezes em que viajamos dias seguidos, faça sol, chuva ou neblina
de invernada. Peão não costuma reclamar de trote ou galope, a gente reclama de
calmaria”, disse, lançando um olhar para a baiana e completou.” Pois é, não
tenho razão? Estava a esperar alguma resposta da baiana quando o lambe-lambe
interveio: “Se conheço Piraguara! Conheço como a palma da minha mão, já andei
por lá muitas vezes, lugar bom e de gente acolhedora”, disse com intenção de
agradar, não parecia sincero, e completou: “Vou dar preferência para os
senhores, vamos tirar o retrato.” O rapaz, de menor estatura, interrogou-o
preocupado: “Não é muito caro senhor? Somos de poucas posses”. O maior em
estatura, que nem tão grande era, que até então se mantivera afastado da
conversa, gracejou: “De poucas posses, é verdade pura e crua, além disso, este
é muito pão-duro”. O menor entendeu que o gracejo não lhe era ofensivo, ao
contrário, era um ardil para buscar a redução do preço, esperto, socializou a
pobreza para reforçar o apelo: “Pão-duro eu, talvez, mas de poucas posses com
certeza os dois.”
O retrato de parede que começava a se mostrar um sem papas na língua parou um pouco para tomar fôlego, eu aproveitei e perguntei:
—
Afinal, olhando melhor, percebo que esses rapazes, que você tem estampado na
sua face, vestem roupas esquisitas, isso era moda?
O retrato não gostou muito de minha
intervenção e respondeu como um velho rabugento que acha tudo e todos
impertinentes:
—
Você não me deixa arrematar! É claro que dois peões não andariam por aí de
terno e gravata, os tempos não mudaram tanto assim, ou você acha que andariam?
Então, tenha mais calma que eu vou contar a história toda... esses dois
chegaram à cidade com roupas boas e traziam outras limpas nas malas das
cangalhas, mas roupas de peão, e sabiam que elas não eram as melhores para uma
imagem que poderia durar séculos. Mas antes de falar sobre isso, eu quero falar
sobre minha própria história e as de meus colegas aí do lado. Veja este à minha
direita, coitado, é um retrato que eu chamo de pé no chão: pragmático,
carrancudo, uma triste figura. Esse não percebeu ainda que o mundo tem três
dimensões. Ele está no estágio de desenvolvimento que eu estava logo que saí da
caixa preta, há 80 anos. Mas ele é novo, deve ter seus 55, tem tempo para
aprender. Pois bem, quando eu tinha poucos meses, só era revelado no sentido
literal da fotografia, mas não sabia nada do mundo. Pensava que tudo pudesse
ser explicado apenas pelo comprimento e largura. Eu vivia num plano cujo
formato era-me suficiente para retratar aqueles dois, mas insuficiente para ir
além.
—
Como assim?
Perguntei
num ímpeto, logo me arrependi, pois ele mal acabara de pedir-me que fosse mais
paciente, e eu temia que ele se aborrecesse de vez e abandonasse a história.
Ele, que tinha aquela estranha facilidade de apreender, viu que eu me
recompunha, e por isso continuou como se nada tivesse acontecido:
—
Você já ouviu falar na caverna de Platão?
—
Não me lembro. De que se trata?
—
E sobre a alegoria da caverna, já ouviu alguém mencionar?
—
Também não.
O
retrato, então, atreveu-se a me dizer:
—
Santa ignorância! Pelo jeito, não é só o meu colega aí da parede que está por
fora.
—
Você está se achando, então explique!
Isso
eu disse, sem esconder a irritação. E ele alongou o discurso:
—
Vou explicar: na alegoria da caverna, que pode ser chamada também de caverna de
Platão, aquele famoso filósofo grego usa um diálogo para nos sugerir que
pessoas acostumadas a verem o mundo apenas pelo sentido da visão teriam
dificuldades para compreender a realidade. Na alegoria da caverna, algumas
pessoas nasceram e vivem aprisionadas numa caverna e não podem movimentar-se
para sequer verem quem está do seu lado. Uma luz entra por uma abertura
localizada nas costas deles e projeta suas sombras nas paredes da caverna. A
realidade, para eles, é aquelas sombras. Essas pessoas, se saírem desta
caverna, terão grandes dificuldades para viverem no mundo como humanos
normais. Terão dificuldades de lidar diretamente com a luz, mas depois que a
perceberem não mais quererão voltar para caverna. A caverna passa a ser uma
grande privação de conhecimento, um mundo de ilusão. Entendeu?
—
É claro!
Respondi
secamente, um pouco envergonhado pelas minhas limitações. O Retrato prosseguiu:
![]() |
Este retrato aí do lado está para mim, assim como
você está para o Einstein..
|
— Pois bem, minha situação era
semelhante, vivia num mundo de enganos. Como retrato, tive uma compreensão
repentina e passageira de que havia algo mais que uma caixa escura quando o
diafragma da máquina se abriu. Mas aquela claridade que invadiu o interior daquele
compartimento e fez marcas em mim também me cegou e tornou-me prisioneiro de
duas dimensões, o mundo para mim só tinha dois vetores: a minha largura e o meu
comprimento. Minha limitação era tão grande que eu só conseguia representar e
pensar aquilo que ouvia e sentia num universo de poucos centímetros quadrados.
Tudo em mim ganhava proporção reduzida, não tinha a menor noção de outras
possibilidades, não tinha campo para exercitar. Mas ouvindo e prestando atenção
no que pensavam e falavam aqueles que passaram perto de mim, durante 90 anos,
fui, de migalha em migalha, reunindo informações e cheguei à conclusão da
existência de algo maior, a profundidade. Isso que para vocês é intuitivo, pois
faz parte de suas experiências, para os retratos, não é. Pressentir
outra dimensão é um verdadeiro salto do entendimento, algo transcendental,
para um pobre e finito retrato. Suponha que um dia você depare com a certeza de
que o mundo comporta outras extensões além das que você experimenta no dia a
dia, não seria um choque? Eu me orgulho do que sei. Este retrato aí do lado
está para mim, assim como você está para o Einstein.
Eu o interrompi mais uma vez, não com
o intuito de me agastar com a impertinência daquele pedaço de papel velho que
criava paralelos para me diminuir, ademais, a comparação não era pejorativa,
Einstein é referência grande para qualquer um, eu queria, apenas, chamá-lo ao
tema:
—
Olha aqui! Para quem reclamava de falta de diálogo, você está se saindo um
grande e prolixo monologuista.
O
retrato concordou:
—
Estou mesmo, é que há conceitos difíceis de serem explicados, mas acho que você
entendeu. Pois bem, agora vou contar a história da foto e depois dos
fotografados.
Admirou-me
a menção da foto como personagem e perguntei:
—
Há duas histórias, então?
—
Há, e estão interligadas, pois o meu destino esteve, por muitos anos, preso
àquela mulher e a seu rebolado.
—
Meu Deus! Retrato, você me deixa confuso e curioso. Então, vamos lá, vou
escutar e prestar atenção.
O
retrato foi paternal:
—
Isso é bom, escutar não é para qualquer um, e escutar para valer é o mesmo que
prestar atenção, parabéns!
Faltou
só ele dizer ‘bom menino!’ para me rotular de criança, mas eu aceitei, com
humildade, esse triste papel. Apesar do ato falho dele, não havia mais, em seu
tom, aquela arrogância nem aquela pressa. Mas logo ela, a impaciência, a mãe de
todas as submissões, fez-me capitular. Passei a palavra ao velho retrato que
seguiu seu próprio roteiro:
—
Enquanto o lambe-lambe me lambia, uma imagem ia surgindo em minha superfície,
como se a língua daquele ambulante fosse um pincel mágico e, depois de alguns
minutos, a figura destes dois rapazes estava estampada nesta minha superfície
lisa e aí está até hoje. Não foi uma revelação instantânea, como as atuais, mas
em alguns minutos eu já estava pronto e fui entregue a este que na imagem
aparece do lado direito do observador, é o maior dos dois rapazes, poderíamos
chamá-lo de Deoclécio. De posse de mim, Deoclécio não deixou que o Edgard, esse
da esquerda, visse-me, como era esperado, por mais que ele insistisse. “Depois
eu lhe entrego, depois!”, Dizia. E assim, nesse jogo de empurra, fui parar num
bolso de paletó de couro, juntando-me a fumo de rolo, canivete e escova de
dentes. Mas antes, falo do porquê de vestirem roupas tão esquisitas.
Foi
aí que eu entrei novamente na conversa:
—
Retrato, já estou cansado, você não poderia contar esta história sem tantos
rodeios?
—
Nãaaao!
Assim
disse, na forma da mais dilatada convicção, e continuou:
—
Não se esqueça, sou um retrato, tenho vocação para pormenores, gosto de
sombras, nuanças e de seus entroncamentos. Como eu dizia, os rapazes estão com
roupas que não combinam com as suas profissões. Naquele tempo, como hoje, peões
vestiam roupas rústicas, camisas xadrezes, blusas de couro e calças de brim
curinga. Acontece que o lambe-lambe, que não perdia paroquianos por falta de
indumentária, mantinha um guarda-roupa de propósito para essas ocasiões e ao
gosto do freguês, mas que era limitado quanto aos tamanhos dos manequins.
Assim, o Edgard acabou na manta, pois nada se ajustava à sua altura, tinha um
metro e sessenta. Depois de muito procurar e revirar aquele amontoado de
fatiotas, o ambulante acabou impingindo ao menor um terno de adolescente. Ao Deoclécio,
que tinha estatura, coube um terno de melhor aparência e tamanho mais ajustado.
A exceção da cueca, meias e sapatos, tudo o mais que Edgard vestia, naquela
hora, pertencia ao ambulante. As calças pega-frango só não deixavam as canelas
de fora porque o rapaz usava uma meia de cano comprido. Pelo que sei e ouvi
aqui e ali, o Edgard gostou tanto daquela boina que a manteve em seus intentos
e comprou modelo idêntico logo que pode e a usou na velhice, até os últimos
dias de sua vida, em 1990; aos 80 anos de idade, agarrava-se a ela como se
fosse um emblema; quem sabe, trazia-lhe lembranças de uma juventude rica em
alegrias e aventuras.
—
Meu prezado interlocutor, como posso fugir a uma questão que cala fundo em
minha alma e me empurra para um estado de sofreguidão. — Disse eu, de
propósito, com essa linguagem pedante e arrematei: — E o caso do retrato e seus
encantadores mistérios, como fica?
—
Fica bem, fica muito bem!
Respondeu
solene, como se inebriasse com o som da própria voz e com meu sofrimento, e
continuou, ainda pomposo:
—
Eu, um pobre retrato, percorri uma longa jornada até chegar a esta parede e
ganhar uma posição vertical de destaque, porque a horizontalidade sem público é
pior que uma morte desonrosa. A minha trajetória não faz uma história bonita,
passei anos de solidão em lugares inóspitos. Quando saí daquele bolso, aquele
rapaz, o Deoclécio, que gostava de uma pilhéria, escreveu alguma coisa em
minhas costas, algo que se referia à baiana, aquela bonita amante do ambulante.
Poucas palavras que falavam do requebrado com que ela os recebera e que
exageravam o encantamento que por ela o Edgard tivera. Uma inocente bobagem,
mas que ganhou conotação pejorativa, quando caiu em mãos de parentes do,
segundo estes, ultrajado. Surrupiaram-me do bolso do Deoclécio, tomaram minha
guarda e, dali, fui direto para uma gaveta escura e malcheirosa, condenado ao
limbo por um pecado venial que outro cometerá. Ali vivi cercado de papéis
inúteis e alfarrábios familiares. Frequentei caixas pobres e sem chaves. Não me
deixaram aproximar dos sinais de riqueza daquela casa que residiam em armários
nobres e com cadeados, onde eu sabia existirem muitos documentos de contas a
receber e poucos de contas a pagar, neles se podiam encontrar escrituras de
fazendas e de casas e lotes na cidade de Ouro Preto, e uma gema de valor
incalculável, de cuja origem ouvi a dona da casa dizer: “foi uma prenda de
Deus. Só pode ser isso! Um dia, sem mais nem menos, esta pedra rolou de uma
encosta aqui dos fundos de casa e caiu aos pés do meu marido”. Como você vê, um
dos parentes do fotografado, seu primo-avô, prosperava, e, pelo que escutei dos
que por ali circularam, em tantos anos, a riqueza daquele outro baixinho vinha
de muito trabalho e economia. Era seguro e metódico, um homem bom, bom mesmo!
Você, meu caro roceiro, sabe o que é boca com gosto de guarda-chuva?
Estranhei
aquela mudança repentina. Pelo jeito, o Retrato queria sair do trilho em que se
pusera com seu caso, trocando-o por um caminho enviesado e que pouco me interessava.
Que importância podia haver no gosto que aquele papel sentia? Contudo, guardei
para mim essa opinião e disse:
—
Não, não sei! Não sou como o seu criador que lambe tudo que vê — respondi
gracejando para esconder a zanga. O retrato corrigiu-me com rispidez:
—
Ele não é meu criador! Deu apenas uma ajuda no meu nascimento, assim como a
parteira não é sua criadora, ou é?
Era
tão óbvio que eu estava brincado, será que ele não tinha senso de humor.
Surpreendeu-me reação tão defensiva, eu não pensara no retrato como criatura
comparável ao ser humano. Ávido pela história, eu não tinha interesse em
prolongar qualquer contenda verbal, muito menos por uma ninharia. Lembrei-me do
que meu pai um dia me dissera ao ver-me metido numa disputa menor: “meu filho,
não brigue por tuta-e-meia, brigue por princípios”. Eu não tinha motivos para
refutar aquele papel estampado em preto e branco e achei melhor deixá-lo
prosseguir:
—
Todos aqueles anos, eu sentia esse indefinido, mas horrível, gosto de
guarda-chuva na boca. Naquela gaveta, que compunha um criado-mudo de quarto de
meninas, vivi por mais de trinta anos. Ali, aprendi, inicialmente, sobre tudo
que meninas costumam conversar. Passado algum tempo, elas se tornaram
adolescentes, e eu evoluí sensorialmente com elas e podia também sentir o que
sentiam, aprendi o que adolescentes pensam e falam. No final da adolescência
delas, o movimento do quarto aumentou muito, era um entra-e-sai de meninas da
escola, primeiro do ginasial, depois do colegial e, finalmente, quando elas já
saíam da adolescência, de gente mais letrada, rapazes sofisticados, janotas com
cursos de engenharia de minas, advogados, e gente da alta-roda, alguns
mal-intencionados; elas, bem-educadas, protegiam-se e impunham-se. Pois bem,
embora eu literalmente retrate dois rapazes na imagem, faço parte de um
processo inicial de aprendizado baseado em experiências femininas e, acho que
por isso, tenho alma sensível. Minhas esperanças de sair daquela rotina
renovavam-se sempre que, sem o rigor de uma agenda, a dona da casa fazia uma
faxina geral no quarto, tarefa que nunca delegava a empregadas, e sempre que
esbarrava comigo, dizia: “nós precisamos dar um jeito neste retrato, temos que
encaminhá-lo para um dos filhos do Edgard”. E com o passar dos anos, vieram as
trocas de móveis e de quartos, e fui levado pela correnteza do destino, como um
boi que não escolhe pasto, nem porteiras, nem vacas. Frequentei mãos
curiosas e muitos cômodos e ambientes, viajei pela casa ao Deus dará. Como um
vira-lata que aprende no cheirar as entradas e saídas das igrejas, e lá eram
tantas, eu aprendia com o ouvido e com o sentir, e meu repertório crescia, pois
não era um ser de experiência única, vivia sob uma multiplicidade casual.
Tornei-me uma espécie de memória da família, embora, naquele tempo, não tenha
entrado em contato de terceira dimensão, como ocorre agora. Isso é, de fato,
surpreendente, pois apesar de toda esta conversa com você, esta é a minha
primeira vez, nunca falei com ninguém antes, juro! Talvez eu esteja perto de
atingir o auge de minha evolução, pois o diálogo aguça a lógica, desperta os
mecanismos de defesa e da investida verbal que, se devidamente policiados
contra os arroubos, se transformam em instrumentos a favor do conhecimento.
Após
essa breve alusão a sua condição de viver, sentir e pensar, o retrato deu um
tempo, e eu aproveitei para quebrar o fio do monólogo:
—
Já que você está falando das vantagens do diálogo, permita-me um aparte. Sendo
você tão sábio, pois a sabedoria se revela na capacidade de ouvir, ponderar e
conversar pouco, como lhe acontece há mais de meio século, não haveria o risco
de que você, ao falar agora, possa revelar coisas que não deve, soltar os
podres das famílias, pois seja numa gaveta ou numa parede, um retrato ouve mais
do que o necessário e pode falar mais do que o suficiente. Como você encara a
responsabilidade e necessidade de ser discreto?
O
retrato ponderou:
—
Ir por partes, eis meu desafio! Em primeiro lugar, não me considero obrigado a
um pacto sob a égide da ética humana, não sou compadecido. Mas tenho que
reconhecer que, fora alguma estrutura mental (de foto) que eu possa ter a
priori, todas as minhas experiências em vivência plana se acumularam a partir
de mentes e falas humanas, tenho cabeça e emoções que absorvi de gente. Nisso,
acho que tenho uma responsabilidade, principalmente por não ter sido
autorizado, já que entrei nas vidas sem bater nas portas e sem pedir licença.
—
Falando assim, você parece se considerar um ser quase onipotente, um ser à
imagem de Deus?
O
retrato irritou-se:
—
Não diga absurdos nem blasfêmias! Sou muito limitado, pois se tenho esta
vantagem de estar nos ambientes como espião, por outro lado, tenho uma
limitação muito grande, não posso ver. Posso descrever uma mulher ou qualquer
outra coisa, assim como um cego descreveria uma noite enluarada, ele sem a
experiência da visão; eu, do tato, do olfato e do paladar. Eu posso muito bem
descrever as mulheres em geral e uma em particular, mas jamais saberei, na
prática, o que é uma pele aveludada, que maciez é essa que os poetas tanto
cantam, como são as suas curvas, aquelas saliências que tanto empolgam os
homens e que os levam a loucuras. Tudo que sei, mesmo que refinado pelo dom da
inteligência e da habilidade discursiva, é destituído de objetividade. Você vem
da linhagem simbólica; eu, da abstrata. Sou capaz de lidar com a abstração
levada ao extremo e, por isso, fico à margem da realidade concreta, do amor e
do prazer intenso. Neste aspecto, sou como um homem erudito que empolga suas
plateias com discursos fabulosos, que fala do amor e da caridade, mas que nada
faz a respeito disso e que, na prática, vive às turras com os vizinhos,
despreza os que o amam e ama as coisas materiais e sem valor. Uma vida assim é
desperdiçada em acumular vazios com aparência de fartura, distante da
verdadeira sabedoria e da felicidade.
—
Olha aqui retrato! Você agora me impressionou de fato. Com essa conversa de gente
grande, chega a me comover. Peço-lhe mil desculpas, como sou uma pessoa comum,
estou mais interessado em saber o que o Deoclécio escreveu nas suas costas.
Afinal, o que foi?
— Posso afirmar, uma bobagem! As pessoas que pesaram
aquelas frases eram muito rigorosas, usaram medidas sem o calibre conveniente:
viam redemoinhos, onde havia uma brisa suave; tornados, onde um vento soprava
um pouco mais forte; imaginaram reações improváveis porque tinham uma balança
moral viciada pelo medo da fofoca e da maledicência de vizinhos intrometidos,
coisas que eu pensava ocorressem só em pequenos arraiais de gente sem assunto e
de vidas secas. Naquele texto, Deoclécio brincava, ou melhor, fazia uma
caricatura do ocorrido entre o seu colega de viagens e a falsa baiana. Mas
essas pessoas de Ouro Preto ponderaram que, sendo o rapaz comprometido, aquelas
palavras, caso chegassem aos ouvidos da noiva, poderiam levar a rompimentos.
Precavidas e bem-intencionadas, tamparam a escrita com uma folha de caderno em
branco que foi colada em meu costado com excesso de grude caseiro, cuja
consistência o fazia endurecer depois de imiscuir-se de tal forma que se
arrancada levaria parte da escrita junto com as lascas do papel de que eu sou
feito. Se eu fosse de carne e osso, como você, perderia peles e costelas, como
não sou, perco aparas e fatias de celulose velha. Para ser direto, preferiram a
proteção do segredo que a minha integridade física e o meu legado.
—
E aí, só isso? Você não tem nada importante a me revelar?
O
retrato tinha, e muito:
— O
que posso lhe dizer a mais... Logo depois que esses dois foram fotografados,
passou por ali uma cigana e, sem ser convidada, intrometeu-se, vaticinou a
política e os maiores feitos nas suas vidas, e uma trajetória em que caberiam
sucessos e desavenças. Ela falou de um futuro muito definido para uma cigana
predizer, sem cerimônia e pompas, no meio de uma Praça de Ouro Preto. A meu
ver, coisas sérias assim, que podem determinar o futuro de muitas gerações, só
podiam ser ditas em palanques de luxo, à vista de jurados competentes e capazes
de fazer calar o profeta, caso suas profecias fossem inconsequentes e
degradantes. Lembro-me bem dela e de suas palavras: “O moço de pequena estatura
vai ser um líder em sua terra natal, terá domínio político partidário, será
amado e odiado, como todos que se metem na vida pública. A amizade entre esses
dois nunca terá fim e estará presente na beira da vala de hades quando o maior
for chamado para um encontro inadiável. Haverá o tempo de o senhor menor
proteger a geração do maior, mas haverá também o tempo em que o líder dessa
geração rebelar-se-á, por motivos fúteis, como são consideradas, em longo
prazo, todas as pequenas razões que fazem velhos amigos seguirem caminhos
opostos. Tempos de distensão, em que homens, antes tão cordatos, impelidos
pelos próprios interesses ou pela pressão de seus companheiros, despejam, sem
freios, os argumentos que negam os valores e realçam as debilidades do
adversário. Homens públicos, discretos na compaixão e na consideração,
indiscretos na crueldade e na ingratidão”. Dito isso, a cigana calou-se por
algum tempo. Recobrava forças para novas predições ou abandonaria o tema para
seguir em frente, subir aquelas ladeiras históricas e buscar novas vítimas. O
inesperado, então, aconteceu: numa posição em que ela fazia lembrar um
soldado romano empunhando uma baioneta, pronta para fazer rolar cabeças: ela
avançou em direção ao de menor estatura e com o dedo indicador em
riste enquanto caminhava tesa dizia: “Tu!... Caberás a ti, e a ninguém
mais, dar um rumo para tua terra! Caberás a ti cuidar de teu povo, não os
decepciones. Se não o fizeres terás do poder o mínimo!”,
e, concomitantemente, apontou o indicador em direção ao Edgard para não
deixar dúvidas com quem e de quem falava. O apontado pelo dedo xereta,
irreverente, brincou com a flexão verbal pouco usada na região e, sem ao menos
olhar para aquela pobre mulher, disse no mesmo tom em que ela falara: “Tu!
Caberás a ti arredar para lá! Pois muito bem sabes que ‘praga de urubu não
mata-cavalo gordo’. Deoclécio levou a mulher mais a sério, queria
esclarecimentos, temia pelo futuro e perguntou: ‘Cigana, se assim for, seremos
amigos até o dia em que ele morrer?” Ela resmungou o que parecia um enigma: ‘Se
um morre amigo de quem fica vivo, o outro guardará eternamente este sentimento,
pois as desavenças entre descendentes não retroagem e nem pesam sobre o
túmulo”. Com essa resposta, deixou no ar aquilo que mais o senhor Deoclécio
queria saber: se ele seria o primeiro a morrer. E a errante mulher, ao concluir
com esse triste presságio que falava da morte dos amigos e das desavenças entre
seus descendentes, tomou seu rumo. Caminhou devagar sobre as pedras rústicas e
escorregadias que cobriam aquelas ladeiras íngremes. Vestia saias longas e
coloridas e carregava, a tiracolo, um penico de seu uso, velhos tachos de cobre
e outras bugigangas. Ofegava quando parou ao lado do requintado Chafariz dos
Contos.
—
Retrato, se você não enxerga, como podia saber as cores da saia dela? —
Perguntei, mais por curiosidade de que para ofender ou duvidar, aliás, a esta
altura do campeonato, já não havia rusgas entre nós.
Ele
foi detalhista e convincente nos esclarecimentos:
—
Como você já deve ter entendido bem, Deus me deu o talento da percepção para
compensar a falta da visão. Contudo, considero sua pergunta conveniente, pois,
se vamos nos tornar amigos, temos que manter um relacionamento que nos faça
desenvolver uma confiança mútua e alicerçada na verdade. No caso do vestido, eu
só fiquei sabendo dos detalhes porque aqueles rapazes revelaram-nos através de
seus pensamentos, o maior ao pensar “essa deve ser cigana de fato, pois usa
esses vestidos longos, como todas elas”, o menor ao se interessar pelas cores
berrantes daquela mesma saia. Quanto ao chafariz, foi a própria cigana que me
mostrou, quando nele chegou arquejante. Esclarecido, ou quer mais detalhes?
Eu
não tinha como ter dúvidas e concordei:
—
Não precisa falar mais nada, já percebi, é desse mesmo jeito, alguém servindo
de rádio transmissor, que você ficou sabendo que o chafariz era
requintado.
—
Pois é.
O
retrato afirmou e continuou como se falasse para si mesmo
—
Eu mesmo, no princípio, tinha minhas dúvidas quanto a essa capacidade de
perceber o que acontecia ao meu redor, mas com o tempo, com o acumular de
acertos comprovados pelos cotejos sucessivos entre o previsto e o ocorrido,
minhas dúvidas dissiparam-se. Hoje tenho certeza, eu seria mais completo e
feliz se tivesse a visão, mas o universo ou Deus, como queira, não me negou o
alcance da sabedoria humana. Esses fatos ocorridos no início de minha vida só
tomaram forma completa anos depois. Naquela oportunidade, apenas ficaram
registrados numa consciência destituída de estruturas linguística, mas depois,
com meu aprendizado, pude interpretar tudo que ali aconteceu.
Eu
já estava cansado e disse-lhe:
—
Prezado amigo, Retrato, amanhã a gente se fala, vou dormir agora. Fui!
E
ele:
—
Fiquei!
Lulu,
ResponderExcluirPois é, os retratos falam, nisto não há a menor controvérsia. Eu já participei de um estranho diálogo com um deles nos moldes dos romances de Carolina Nabuco, A Sucessora, e de Daphne de Maurier, Rebecca, e por isso a eloquência do retrato neste conto não me causou tanta surpresa. Surpresa maior me causa a sua alma de lambe-lambe que fixa os instantâneos de sua família e de sua querida Senhora de Oliveira em páginas tão eloquentes de memórias e sentimentos, coloridas de “coisas da pequena cidade e da sua gente de vida rica”.
Esse velho retrato preso numa parede de recordações de âmbito familiar deixa assim o seu pequeno nicho para se soltar pelo mundo como uma bela página literária.
Siovani