terça-feira, 1 de novembro de 2011

Eu, Camponês

por Caieira
Eu, Camponês.


Meu primeiro momento ocorreu quando eu ainda não tinha consciência de mim mesmo e abri os olhos. Vi, sem emoção, que eu era um corpo cercado de espaço e contido por outros corpos que se engalfinhavam na disputa pelo mesmo alimento. Embora o mundo fosse um grande peito leiteiro, e houvesse tetas para todos, nós deslembrados de que éramos farinha do mesmo saco, às vezes queríamos a teta em que outro já se abotoara.


Meu segundo momento ocorreu quando minha mãe negou-me a teta e me agarrou pelo pescoço, como se eu fosse um saco de estopas, e levou-me para um lugar seguro. Choraminguei porque o peso de meu corpo fez minha pele esticar, e minhas pernas balançarem no espaço escuro, até que fui suavemente depositado num ninho macio e seguro contra as intempéries e as ameaças que rondam os recém-nascidos. Notei, então, que o mundo era perigoso para os de minha raça e que eu tinha uma mãe para proteger-me, sem ela não sobreviveria.



Meu terceiro momento foi de decepção, percebi que minha mãe era submissa, puxava o saco do dono da casa e da família toda, até do menino que ainda engatinhava e mal dizia "mamã". Foi aí que meus olhos se abriram pela segunda vez, vi que havia um mundo em que uns têm prevalência sobre os outros, um mundo em que nascemos diferentes e com papéis bem definidos. Minha mãe, a troco do alimento e carinho do patrão, tinha que mostrar serviço: agradar a todos e ainda assim só pegar migalhas.



Meu quarto momento foi quando comi de um angu que o patrão havia guardado na despensa. Não sei de que era feito esse angu, nem porque não podia ser comido, mas minha mãe avisara-me: " Filho querido, do angu da despensa não se pode comer. Você pode comer qualquer coisa, tudo que achar no mato, nas árvores, todo tipo de carne, mas não pode, nem que a vaca tussa, comer o angu da despensa, pois aquele é o teste da subserviência". Naquele tempo eu não conhecia o ditado "neste angu tem caroço", se conhecesse não me atreveria à primeira mordida, que é a mãe de todas as mordidas, mas o certo é que mordi aquela água fervida com um fubá grosso e que cheirava a gorgulho, o fato estava consumado. Mal acabara de engolir aquelas pelotas mal assadas, apareceu o patrão, não sei de onde, já com uma vassoura na mão, a gritar: "Cão do diabo!, daqui para frente, eu não o quero mais em minha casa e rogo-lhe uma praga: você terá que procurar sua comida nos matos, viver às custas de sua própria caça"



O patrão nem precisava ter dito tanto, um clarão vindo de não sei onde, veio ao meu encontro e, de repente, tive consciência de minha nudez e destino: eu era um cachorro fadado a andar por aí cheirando o chão poeirento das encruzilhadas; o fiofó dos colegas; os postes para ver se há marcas de xixi de outros cães para em seguida eu mesmo fazer a minha marca. E, triste sina, minhas noitadas de amor não seriam simples como a dos outros animais, um nó necessário me amarraria, por algum tempo, à amada amante, seria bom, mas doloroso, fazer o quê! Minha liberdade pós farra seria limitada e com risco de sermos, eu e ela, apedrejados pelos garotos endiabrados do arraial. Traçado estava meu destino de andar por esses brejos, caçar preá, frango-d 'água, e, se tivesse sorte, conseguiria caça maior, raras na região, mas quem sabe um dia eu podia esbarrar com uma nessas grotas ou nesses vales, talvez um veado, um tamanduá-bandeira, um porco-do-mato e, num dia de loteria, com uma capivara bem gorda. Só não queria topar com o lobo guará, porco-espinho e ouriço-cacheiro que por aqui são comuns; o primeiro, que gosta de inverter o papel de caça para caçador; os dois outros, que são indigestos já na boca.



Tornei-me andarilho por uns tempos, mas minha vida de amaldiçoado começou a melhorar no dia em que esbarrei com um senhor de uns quarenta anos que montava um cavalo preto, ele gritou para meu lado: "Camponês, vem cá! Vem cá camponês!". A minha primeira reação foi: "Camponês! Quem?" A segunda, como não havia outras almas por ali, foi: "Camponês, eu? Bom, tudo bem". Naquele dia ganhei um nome e um salvador que iria ajudar-me a carregar minha cruz. Levou-me para sua casa e fê-la minha. Deu-me angu misturado com carne de boa qualidade, comi à vontade. Pulei pelo terreiro; deitei-me de costas para que me fizesse cafuné na barriga; babei nos panos de chão e pela casa. Esbaldei-me. Nunca entendi bem o nome dele nem de ninguém da família. Estranho, eu podia pensar, entender o meu nome, as conversas que se referiam a assuntos daquela casa, mas o nome das pessoas, nunca entendi bem, devia ser parte de meu castigo. Contentei-me com um ditado que grassa nos meios caninos: os homens reconhecem os outros pelo nome; os cães, pelo cheiro. Sei que aquele homem viajava muito, sempre num cavalo preto, vestindo uma capa de gabardine que quase se arrastava no chão. Em sua casa, criança era mato. Era uma sede de fazenda grande, sem luxo, mas de muitos quartos despensa com latas de gordura, cozinha espaçosa,  fogão grande com descanso de mais de metro.



Foi preciso um salvador para me redimir e, agora, eu tinha uma vida normal de cachorro.



Daquela casa guardo segredos, pois sou um cão de guarda no sentido lato e medo tenho de poucas coisas: de inconfidência, porque traição; de chuva, porque trovão; de festa, porque foguete; e de cachorras assanhadas porque carregam matilhas.



A minha estória podia acabar aqui, e já era muito para um cão tão infeliz na partida e tão feliz no meio, mas nem lhe conto o final, ou conto?



Conto:



O chefe daquela família meteu-se em política, disso sei porque não sou burro, apesar de ter a orelha grande, mas meu focinho é comprido e tenho um faro de primeiríssima, cheiro os acontecimentos. Tanto ele fez que foi eleito prefeito, em 1953, tomou posse no ano seguinte. Eu poderia esquecer aquelas datas, pois cachorro não se comove com eleições, mandatos e poderes humanos. Mas não as esqueço, porque houve muita festa, a cidade ficou nublada com tantos foguetes e de todos os tipos: o de rabo, que é o maior inferno para um cão, pois já na subida cria uma expectativa de estrondo que nos angustia por longos segundos até que haja o estampido, o ecoante ruído fenomenal, o terrível tãummmm..., durma-se com um barulho desses!; o tiro canhão, Deus me livre! Faz abalar os alicerces das melhores casas e quase perfura nossos tímpanos delicados por natureza e capazes de ouvir sons que os humanos não ouvem: um grilo distante, uma pulga sob o pelo do gato que nos tira o apetite, um mosquito voando baixo; somos diabólicas para ouvir sussurros. Como o centro da festa foi numa pensão de uma senhora que tinha uma casa na esquina da rua Nova, eu não tinha outro recurso, corria para o quarto alugado pelo patrão e escondia debaixo da cama. O tumulto foi tanto que escapei para um beco ali perto e acabei entrando numa briga de cachorro grande e, o pior, um dentre eles estava zangado, mordeu-me de leve, arranhou-me, foi o suficiente. Eu, camponês - dá pra acreditar? - não era vacinado e peguei a maldita raiva. O destino do ex-vira-lata estava traçado. O patrão, meu salvador, olhou-me com compaixão, mas dessa não me podia livrar. Poucos dias depois, o meu queixo endureceu e a saliva escorreu cascateando em cima de minha dor. Tinha sede, mas, só de pensar em água, sentia uma dor terrível em minhas mandíbulas. Sem beber água, com o corpo ardendo em febre, e doido por morder alguém e molhá-lo com minha perigosa babugem, era natural que eu fosse isolado, foi o que fizeram. Morri em prisão domiciliar, sou uma assombração de cachorro que acaba de lhe contar a sua estória, triste no início, boa no meio e ruim no fim, como são todas as vidas dos cachorros que conheci.

domingo, 4 de setembro de 2011

Lina e Agripino

por Caieira

Moravam na Rua Nova no tempo em que ela era de fato uma rua nova e de terra vermelha. Viviam numa casa simples: porta de madeira maciça de tábuas estreitas com fechadura de ferro preto e chave grande; janelas pequenas de madeira de boa qualidade com tramelas bem torneadas; a escada da frente, de seis a sete degraus, entrava metro e meio dentro da rua, e não tinha corrimãos, e seu piso era de cimento vermelho diferente do passeio que era da cor areia.

Lina: voz forte tonitruante que a fazia destacar-se em qualquer ambiente em que tivesse que emitir opiniões, e  como gostava! Não negava nem confirmava a assertiva do ditado "quem tem um bom argumento não precisa gritar". Sussurrando ou falando alto ela agradava e convencia o ouvinte. Fossem quais fossem os juízos de valor que emitisse soavam bem aos ouvidos e pareciam lógicos. Tinha a voz melodiosa em que os tons sobem e descem segundo as necessidades momentâneas dela própria, do assunto e, consequentemente, de seus ouvintes.

Agripino: voz comum; um sorriso permanente cravado num rosto comprido e magro; estatura média (tinha lá seus metro e setenta o que o tornava compatível em tamanho com a esposa e com quase todos os homens do lugar). Nenhuma característica física a destacá-lo. Era o homem mais comum da cidade: média das médias.

Desciam juntos, religiosa e diariamente, do alto da Rua Nova até a Igreja Matriz e sempre entravam, sem bater ou gritar 'ó de casa!', direto na cozinha de uma amiga que morava a poucos metros da Igreja na Praça Padre José Justiniano Teixeira. Gostavam de um café quente e simples, não aceitavam quitandas. Foi ali que os conheci;  e os observei; e os admirei; e fiz deles motivo de um juízo sumário, positivo e redutor: eram únicos.

Eram únicos, não apenas singulares. Eram únicos porque eram quase uma só pessoa. Fundiam-se de tal forma e dedicavam-se um ao outro, tão intensamente, que não lhes fora possível, pois a natureza é sábia, colocar entre eles um terceiro, mesmo que fosse um só filho. Casal autossuficiente; casal "o senhor é meu pastor, nada me faltará". Lina e Agripino jamais discutiam, concordavam nas pequenas e nas grandes coisas. Professavam a fé da mesma maneira e tinham a mesma compreensão dos mandamentos e filosofias da Igreja: se um tinha alguma interpretação diferenciada da escritura sagrada; o outro também a tinha. Nunca jamais se viu ou se verá neste país um casal tão uníssono e colado. A felicidade exagerada costuma chatear os semelhantes, enquanto emoção escassa que suscita inveja dos que não a têm, mas não no caso deles, talvez porque exalassem perfume. Se não afetavam os seres humanos, agrediam a concordância verbal: Lina e Agripino não são; Lina e Agripino é.

Lina não chorou quando Agripino morreu. Nem ela soube explicar, apenas comentou: "Não consigo chorar nem se eu passar pimenta nos olhos." Agripino entendeu, concordou e não reclamou.

Assim falou Deolinda II De como Fiquei rica

                                                                                                          Lulu
                                                  À minha mulher que ouviu e contou-me esta história.
Deolinda Maria da Conceição
(3/11/1886 a 20/3/1981)
Assim falou Deolinda: eu era ainda criança no tamanho e no juízo quando perdi minha mãe, em 1897. Meu pai que não dava trela à tristeza logo se casou, achando melhor que eu fosse morar com uma tia muito querida e bondosa. Nunca atinei com todas as razões que o levaram a tomar uma decisão tão penosa para mim, separar-me dele com a idade de onze anos, mas foi o que aconteceu sem traumas de minha parte. Mudei-me da enorme sede da Fazenda dos Pinheiros, onde eu havia nascido e morava, para uma pequena e humilde casinha no Pega Bem. Quando a gente é pequena, a vida corre depressa e criança não se apega a detalhes e, com o tempo, eles escapam da memória; só sei que a Tia, coitada, sofria de diversos males. Os curandeiros das redondezas e até um médico formado, que residia em São José do Xopotó, não conseguiram descobrir a causa de sua doença. Alguns da família diziam que ela era muito cismada, que não tinha doença alguma; contrariada, ela retrucava com um muxoxo  e um sorriso amargo seguidos por uma voz estranhamente grave: "Quando eu morrer escrevam na minha sepultura: cismada é a mãe!" O certo é que ela, aos poucos, definhou-se e de fato morreu. Na ripa da cruz que foi fincada em sua cova rasa escreveram apenas seu nome com as datas de nascimento e morte. E assim, jazida sem jazigo e sem epitáfio, termina a história de minha querida Tia e começa a minha. Fiquei órfã duas vezes em pouco tempo. Tive que voltar imediatamente para a casa de meu pai. Não gostei muito, preferia ficar lá, naquela altura já me acostumara com os primos que acabavam de ficar órfãos.  Não tínhamos problema de relacionamento, éramos felizes. Eles me tratavam muito bem, eram maravilhosos. A mocinha já se apegará a mim mesmo antes de eu vir morar com eles, pois ela e o pai, o Joãozinho, sempre nos visitavam quando minha mãe estava nas últimas. Brincávamos com bonecas e de esconde-esconde. A Fazenda dos Pinheiros era um paraíso para crianças: de frutas e atrativos variados; de pequenos poços, onde podíamos molhar a canela em filetes de águas rasas; onde se pescava cambeva com pauã. Ah... Você não conhece pauã, tem razão, não é coisa de dicionário, é coisa de beira de córrego, e vou explicar-lhe: é uma varinha com uma fieira de minhocas de maneira que os cambevas mordem as minhocas e ficam atarracados na corda em que elas, as minhocas, estão enfiadas, dando tempo para a gente, pescador, tirá-los do córrego e enfiá-los num balde de água; aí eles se desgrudam, entendeu? Mas a vida não era só pescar. Eu e Satita corríamos livres ao redor da grande casa, descíamos até a beira da estrada que ligava e liga até hoje a Posse à Santana e, de vez em quando, atravessávamo-la e subíamos a encosta em frente para ver a cumeeira do casarão e do paiol. Lá de cima a vista era bonita, e podíamos contar e recontar as janelas, mais de trinta. Víamos ora uma pomba ora um marreco estrebuchado no chão, morte por colisão. É que os pássaros confundem os espaços e luzes foscas da natureza com o branco das paredes que ficam com listas azuladas e encardidas pelas águas que escorrem dos beirais e que se juntam as que veem da chuva de vento. Isso embaralha suas vistas e causam essas trombadas, a morte é instantânea e, desconfio, indolor. Chorávamos pelos pássaros mais do que pelas pessoas do lugar que sofriam mortes piores e com mais consciência das perdas e medo da eternidade, é que os pássaros estavam perto e indefesos, e as pessoas longe; só não sei se, indefesas.

Apesar de lembranças tão remotas, não tenho muita certeza se, naquele tempo, eu ajudava a Tia com os serviços caseiros, só sei que eu rezava muito pela família, e a Satita trabalhava em afazeres mais leves: cuidava dos animais domésticos de pequeno porte, coisa de jogar milho e restos de comida para galinhas, perus e patos.

Meu pai tinha uma compreensão do mundo alicerçada em religião, em valores familiares e na tradição, por isso não deixou que eu continuasse a morar na casa da falecida Tia nem mais um dia. "Morreu hoje, sai amanhã", disse. Do velório da Tia tive que voltar para a velha casa dos Pinheiros. Ele tinha suas razões e mas explicou: "Deolinda, eu sei que você é uma boa menina e que o João é respeitador, mas não fica bem com sua idade, já na casa dos doze, morar com ele sem a presença de um parente de sangue. O povo é falador, é bom se precaver". O povo era falador; eu, uma boba que só entendia de bonecas e orações: sabia a ladainha de cor e salteado, contemplava, ajolhelhada em frente ao oratório, os mistérios gozosos,  durante o terço que rezávamos, diariamente, lá nos Pinheiros; e, semanalmente, no Pega Bem. Meu pai sabia justificar suas ordens; mas não, as escolhas que fazia. Não lhe faltavam palavras; mas, coragem. Era um homem consumido pelo respeito humano, nunca falaria de certas coisas com uma menina. "Menina inocente", pensava e com razão, "não vamos maculá-la com conversas de adultos", completava sem razão. É claro que, em minha ingenuidade, eu não havia nem pensado em sexo. Gostava mesmo é de conversar com minhas duas bonecas, as quais tinham nomes de pessoas, Jandira e Chica. Nem argumentei, defender-me de quê? Para mim, todos daquela casa não passavam de gente da família, e todos os meus problemas se resumiam em trocar e embalar as bonecas. Não entendi e nem me preocupei com o que meu pai havia dito, mas o Joãozinho, não sei por que cargas d'água, tomou conhecimento dessas conversas e, talvez, de outras cochichadas na cozinha da Fazenda dos Pinheiro e grassadas por estes córregos, sei lá por que línguas mal dobradas e orelhas envergadas. Ele sabia, pelo exemplo de uma prima que ficara falada, que não se brinca com a fofocas dos invejosos nem dos maledicentes. Aquela menina, a Maria Bernarda, viu-se numa enrascada quando o falatório sobre ela ganhou corpo e correu de boca em boca, alastrando-se como fogo em mato sem aceiro. Num piscar de olhos, não havia mais nenhuma pontinha de Córrego e casa de Rua do Arraial que não soubessem de seu desdito. Ela se viu mal-afamada só porque morava com um primo e, segundo o povo, com ele trocava carícias.

Saí da casa; mas não, da vida deles. Tomava fé de tudo que lá acontecia. Fiquei sabendo que houve um senão naquela casa logo depois da morte da Tia. O Joaquim começou a beber e caiu em depressão, dizia-se que pela  morte da mãe. Passou a usar a bebida além do costume social e viciou-se nela. A pinga, nessas situações, não é paliativo, é veneno. Depois dessa, eu passei a alertar os jovens decaídos: "Cuidado! Pinga, se fosse remédio para a tristeza, seria vendida em farmácia e em picadeiros de circo". Joaquim era cordato e quando entrou na adolescência, mesmo com o aumento da sua dependência ao vício do álcool, carregava uma penca de virtudes que sempre agradaram ao pai: obediente, não gostava de discussões e nem de palavrão. Mas quebrava todas as promessas e juras quando a cachaça tomava as rédeas de sua vida, o que acontecia cada vez com mais frequência: a vontade fraca deixava descer o primeiro gole que abafava as boas intenções com uma densa névoa de dúvidas, e a alma questionadora fazia brotar um dilema em sua consciência debilitada, então, uma voz indagava provocadora em gritos surdos que faziam tremer o seu interior: por que não o segundo? Frouxo! Joga mais um goela abaixo!

O Joãozinho, até então, via-me como de fato eu era, uma criança. Mas o fato de meu pai forçar nosso afastamento repentino, ao levar-me de volta para a Fazenda do Pinheiro, deve ter despertado nele algumas ideias e possibilidades antes nem sonhadas, como diz o ditado "só percebemos o valor da água depois que a fonte seca". O certo é que o jovem viúvo, depois que eu levei chá de sumiço,  passou a me ver com um olhar enviesado.

Depois disso, o mundo continuou girando algum tempo sem acontecimentos de monta, mas, não sendo a ansiedade virtude, a gente não peca por esperar: fatos me aguardavam. O primeiro ato que iria mudar minha vida aconteceu num domingo dia 14 de Outubro de 1900,  o dia  estava ensolarada com promessa de chuva para a noite. Estávamos num ano especial,  falava-se da proximidade da virada do século, e alguns patetas, como sempre acontece nesses anos de muitos zeros à direita, apregoavam o fim do mundo. Nunca mais me esquecerei daquele dia. Voltávamos do arraial, havíamos assistido a missa das dez e a dança dos Congados em que eles sungaram a bandeira do divino e a penduraram num mastro alto fincado a poucos metros da entrada da Igreja velha. Mesmo morando, naqueles dias, na Fazenda dos Pinheiros, eu iria passar uma tarde com a família do Joãozinho, isso porque, depois de muita insistência de minha parte, meu pai me autorizara a ir com eles, prometendo que iria buscar-me ao anoitecer. Já estávamos perto da encruzilhada da Vargem, a qual sempre participou de minha vida de maneira positiva e que tinha e tem até hoje três derivações: uma que segue reta para Lamim, que é uma estrada larga e bem cuidada; outra mais sinuosa que leva à Santana; e a última, a mais estreita, a pior delas e que era praticamente um trilho naquela época, é a que teríamos que seguir até a casa do Pega Bem. Ao longo dessa estradinha, que terminava na cabeceira do Pega Bem, existiam, naquela época, diversas casas a pequenos intervalos à direita e à esquerda. Um lugar ocupado por parentes e onde morava o pai de Joãozinho, Francisco Henriques de Miranda. Este, à esquerda da estradinha, enquanto Joãozinho e os filhos moravam num lugar a que demos o nome de brejo da luz por um motivo que minha timidez e religiosidade não me deixam revelar. Eu e a Satita cavaqueávamos antes de entrar nesse caminho mais estreito. Havíamos acabado de atravessar a ponte sobre o ribeirão que corta a Vargem num talho diagonal que começa no Clemente e acaba no Macuco. Carregávamos nossos sapatos nos embornais a tiracolo, pois era costume tirá-los na estrada de terra para economizar o solado e dar conforto aos pés. Vínhamos numa conversa alegre e descontraída, ela a afirmar que meu irmão, o Joaquim Fidelis, cujo nome de batismo é Joaquim Caetano de Souza, estava arrastando as asas para o lado dela. Satita me sondava sobre as intenções dele. Eu a dizer que pouco ou nada sabia, e que meu irmão não falava comigo sobre namoros e muito menos em casamento, e que suas conversas comigo eram de um adulto para uma criança, como me via, e que me dissera um dia, quando me atrevi a altercar com ele, "pirralha, você só sabe de bonecas!" Eu dizia a ela que só podia afirmar que ele era muito bom e trabalhador, e que  já havia juntado algum dinheiro, e que tinha condições de estabelecer compromissos mais sérios; e que ele era isso, aquilo e aquilo outro. Ponderei, se assim posso dizer, sobre o fato de ele ser ainda muito novo para se casar. Acho que não disse com essas palavras, eu era muito pequena para me expressar assim, mas falei no sentido de que todo angu tem caroço. Ela entendeu, mas não queria saber de caroços. Pedia conselhos sem os querer. Aceitava só aquilo que os flertes já haviam escrito em seu coração: casamento. Ela tinha mais juízo que eu, já não brincava de bonecas, e não sei por que tinha que me ouvir em questão que eu pouco ou nada entendia. Íamos falando de assunto sério que tratávamos de maneira leviana, não por maldade, mas pela falta de vivência. Embora uma ou duas frases pudessem prestar nessa conversa, parecíamos duas mendigas no escambo do que tinham: patavinas. Joãozinho vinha a cavalo ladeado pelo filho que caminhava a pé e descalço. O ar estava parado, nenhum vento para favorecer a propagação do som. Não podíamos ouvi-los e nem eles a nós. Conversavam animadamente, como dois amigos esquecidos do respeito humano e do álcool que os vinham separando nos últimos tempos.
Na vida há coisas que não acontecem aos saltos, mas algumas há que são extremamente sensíveis a pequenas intervenções do destino: uma pedra que rola de um barranco, um raio que resvala pelas cercas de arame farpado; uma árvore que tomba corroída pelo cupim em suas raízes ou pelo encharcado das terras que a sustém ou até pela idade e erosão; coisas assim, casuais, que podem roubar vidas de vegetais, animais e homens. Mas ali, naquele momento sagrado de minha existência, nada quis interromper o curso natural que se avizinhava e, assim, aquele instante, que para muitos ou quase toda a humanidade nada significaria, foi tudo para mim e toda a minha descendência. Ali ocorreram fatos fortuitos revestidos de aparência simples para quem não sabe dos turbilhões que as pessoas trazem escondidos no peito, não para nós: Joãozinho, que não gostava de usar esporas, cutucou o cavalo com os calcanhares para que ele andasse mais depressa, o animal reagiu e, em poucos minutos, Joaquim ficava para trás enquanto o cavaleiro se achegava a nós duas, as tagarelas da frente. Ele, então, com o carinho que sempre dedicou à filha, pediu-lhe, com educação, que acelerasse o passo, queria ter um particular comigo. Mal ela avançara alguns passos, disse-me: "Deolinda, vou direto ao assunto, pois é importante e não precisa de muita conversa para ser dito. Sei que seu pai a procurou e mostrou preocupação com a nossa situação, estou plenamente de acordo com ele e, no lugar dele,  faria o mesmo ou seria mais exigente. Seu pai mostrou o que seria um erro, mas não falou da forma de evitá-lo, eu falo, é um caminho que só pode ser percorrido por duas pessoas, nós: devemos nos casar, isso se você quiser, pois eu, nem preciso dizer, pois se já estou pedindo sua mão. Mesmo sabendo que você é bem mais nova do que eu, acho que o casamento agora não nos iria prejudicar". Eu levei um susto danado com aquela conversa, assim de supetão, esperava tudo, menos aquilo; mesmo sem saber bem o que era casamento, no sobressalto, disse: "Claro" para logo completar com mais entusiasmo "Claro Joãozinho! Claro! Com muito gosto". Mas o chão pareceu fugir, eu dava um passo certo no meu destino, mas na estrada de chão batido, pela primeira vez na vida, entrei na encruzilhada errada, quase ia para Santana, na direção de minha casa paterna. Ainda bem que meu futuro marido, que não tinha caraminholas nem dentro nem fora da cabeça, não tenha achado que aquilo poderia significar alguma vontade secreta de eu não querer sair da casa de Papai Sô Tonho ou de fugir de sua proposta. Ele, que não teve tempo para minhocar, ao notar que eu estava meio atordoada, disse com carinho: "Muito bem minha querida, pode ir preparando suas coisas, vamos nos casar tão logo a igreja cumpra a rotina de proclames; amanhã mesmo vou ao Arraial e tomo as primeiras providências junto ao Padre Painhas.

Não sei o que o Joãozinho disse ao padre Painhas na solicitação de urgência nos proclames, mas fiquei sabendo, depois, que enquanto esses corriam, eram três, um em cada semana, alguns fatos inesperados que ainda não eram de nosso conhecimento naqueles dias estavam acontecendo, fatos que mudariam nossas vidas, os quais passo a narrar em detalhes a partir de agora.

À direita da encruzilhada da Vargem, perto da estrada estreita que leva ao Pega Bem, havia uma casinha simples em que morava o padrinho de Joãozinho que o pessoal da cidade chamava de Seu Tal, cujo nome de batismo era Midas. Este homem ficara viúvo há anos e tinha um filho de criação, já de idade, que era tratado por todos pelo apelido de Major da Vargem. Fraco das ideias, um criançola sem nexo, um galalau que, contudo, não oferecia perigo para seu pai e nem para a vizinhança. Ganhara esse apelido num encontro casual com um contingente do famoso Tenente Fonseca que se dirigiu a ele com uma continência, dessas reservadas para os superiores. O gesto foi levado a sério pelo garoto e, como era coxo, tornou-se cômico ao repeti-lo pelas estradas; primeiro apelidaram-no de Major da poeira, depois, de Major da Vargem.

Seu Tal já passava dos oitenta quando começou a se preocupar com o futuro do filho. Perguntava-se: "Como, na minha falta, poderia meu filho tocar a vida sozinho se ele não tem aptidões nem ações?". Matutara por muitos meses antes de tomar uma decisão, ao cabo, levou o assunto ao filho. Explicou que sua vontade era doar, de porteira fechada, tudo que tinha para um dos filhos de Antônio Vieira de Souza, meu pai. Na escolha do beneficiário dessa enorme doação, preferia Joaquim Fidelis a qualquer outro dos irmãos, pois sabia que este já estava a cortejar, com intenção de casamento, a filha de seu amigo e compadre Joãozinho. Major ouviu calado e, como sempre, não opinou.

Apesar de possuir muitos bens, Seu Tal não ostentava riqueza e, aos olhos de muitos, se passava por pobre devido a sua aparência e modo de vida simples. Nada de supérfluos, ao contrário, tudo no limite para uma sobrevivência digna com o mínimo de gastos. Um homem apoucado em todos os aspectos, exceto no que se referia a terras, essas as tinha em quantidade e qualidade superiores a qualquer outro cidadão do arraial da Oliveira, quiça do município de Piranga. Essas propriedades, coisa de trezentos alqueires, estendiam-se pela campina da Vargem, a gema, desciam para os lados do Macuco e subiam para o córrego do Pires. Terras boas para plantio e pastagens e com pequenas reservas de Mata Atlântica nas encostas e cumes dos morros. A letargia do proprietário havia contaminado suas posses transformando-as em riqueza esterilizada, muita poeira e capoeira para nenhum conforto do dono ou de quem quer que seja. O pão-durismo é uma atitude que não incomoda ao que detém a posse de coisas, mas que mexe com a emoção dos vizinhos e faz brotar neles os piores sentimentos contra quem ajunta por ajuntar. O ser humano é esquisito e parece sentir prazer em ver a infelicidade distribuída a todos em partes iguais. Prefere o mesquinho que sofre ao que vive feliz e inconsciente da possibilidade de ter outra vida que não aquela que, se não escolheu, aceita com resignação. Talvez por isso os invejosos se esforçam para que os avaros saibam-se anômalos e se consumam por serem sovinas. O pão-durismo é, nessas bocas negras da vizinhança, propagado como se fosse uma doença contagiosa e terrível, bocas que, sem o suporte de cérebros um pouco acima delas, inventam coisas e fazem chacotas. O velho ancião sabia que pelas suas costas os habitantes do lugar e os falsos amigos diziam: "quem gosta de terra é minhoca e Seu Tal" ou "Aquele é tão pão-duro que tem até prisão de ventre, não solta um pum sequer". Algumas verdades apareciam no meio de tanta maledicência, uns diziam "só pode ser burrice ter tanta riqueza e viver como se fosse um mendigo". Seu Tal tinha personalidade bem formada e ouvia com interesse os conselhos para mudar de vida: alimentar-se melhor; mobiliar a casa; tirar as goteiras; e contratar uma empregada para tomar conta dele e do filho. Era educado, não teimava com ninguém,  para todas essas recomendações tinha algumas respostas prontas: "sim senhor", "O senhor está certo", "muito obrigado pelo conselho", mas nunca seguia tais cabeças, errava ou acertava sozinho. Nunca tomou satisfação com ninguém e nem fez cara feia para os que o desaprovavam. Com uns poucos amigos mais íntimos, comentava: "Mudar de vida pra quê? Estou bem como estou. Quem me ajudou a ganhar que venha ensinar-me como gastar".  Até achou graça quando um viajante, que viera ao seu rancho para pedir pousada, vendo-o maltrapilho pediu-lhe que chamasse o patrão, e ele, humilde, respondeu: "Aqui não existe patrão moço, somos todos filhos de Deus e por iguais nos tomamos". O certo é que essas conversas de invejosos, maldades de quem quer apequenar a virtude da austeridade no viver e aumentar os defeitos dos outros, com Seu Tal fizeram efeito contrário: aumentaram sua riqueza e fortaleceram seu espírito. E agora, tudo que havia amealhado, ano após ano, ia cair nas mãos de um felizardo, tudo dado de mão beijada. Guardou segredo de suas intenções, temendo uma fila de pedintes e parentes em sua porta. O Filho não conseguia entabular conversa séria e, por isso, tornara-se o confidente ideal. Seu Tal, falando alto para que o filho ouvisse, traçou seu plano, noites afora, na solidão do descanso de seu velho fogão, debaixo do toucinho defumado e da negra picumã de fumaça acumulada, em estranhos chumaços. Planos que envolviam contos e contos de reis sob um telhado sem foro de uma cozinha. Esperto, tinha a exata noção de que até os deuses cobram quando dão. Sabia que na vida tudo tem um preço, algumas vezes pequeno para quem paga e grande para quem recebe, a sua doação teria uma cláusula de barganha, essa seria lavrada no ínfimo diâmetro de um fio de bigode e na enorme extensão da palavra empenhada. Todos os bens seriam passados de porteira fechada, incluindo, também, os dois seres humanos, o proprietário e  seu herdeiro natural, o Major da Vargem, ambos, nessa estranha barganha, outorgantes e objetos da outorga. Estava tudo direcionado e certo, mas aquela pedrinha que, como eu disse e repito, costuma rolar numa encosta e mudar o curso das coisas, nesse caso rolou, e isso eu vou contar-lhe tim-tim por tim-tim.

O arteiro do Major gostava muito de brincar na capoeira rala que cingia a pequena casa onde morava. Ali, esquecido de que era coxo, corria desenfreado e descalço sem apreciar os riscos de as estrepes que vêm de baixo, e de os galhos secos que vêm de cima, esses que, ocasionalmente, se despregam das grimpas e aterrizam sem hora, local, velocidade e peso definidos. Estava, pois, sob o risco de tudo que acontece num sorteio da natureza ou cochilo das divindades que governam o topo das árvores, as coivaras e os estrepes venenosos. Quem tanto passa por um mesmo local de perigo, mesmo que o risco seja pequeno por vez que ali se arrisca, acaba transformando o improvável em provável, e se o ciclo se repete muitas e muitas vezes, o improvável torna-se em quase certo, foi o que aconteceu nesse caso: um galho de castanha-de-cutia veio de encontro à cabeça do menino, e digo, de encontro, na perspectiva do pai do rapazinho que se machucou e, ao encontro, na minha, pois esse galho faria meu destino e sorte sem causar um dano permanente ao pobre coitado. O certo é que o menino se esborrachou no chão e logo sobre um monte de excremento de gente, pois ali era local em que os proprietários e empregados costumavam amarrar o gato. Agora, pense você na situação de desconforto para quem o acudiu, algumas horas depois,  aquilo cheirava mal, um nojo de fazer vômito. Demorou a ser encontrado no meio daquela bosta nova e ficou em coma por mais algumas horas. Acordou aos poucos, estrebuchou e gemeu, mas, no frigir dos ovos, deu de si. Para o assombro dos presentes, despertou ao avesso, cheio de convicções, e, o naturalmente tão dissuasivo, transformado num homem convincente, cheio de argumentos bem acabados: "Pai, eu sei que o Senhor já decidiu dar as suas terras para o Joaquim Fidelis, mas acho melhor que Senhor não faça isso. Quem mais precisa é o pai da Satita, o padrinho João, ele também vai se casar por esses dias, o senhor não está sabendo? Pois, então, estou dizendo, vai! Eu posso muito bem morar com meu padrinho, e a Deolinda passa a ser minha madrinha. Ela a gente sabe que é tão boa menina quanto a Satita, e, tenho certeza, a Deolinda vai cuidar muito bem do senhor e de mim. Eu posso viver com eles, posso sim, sem contrariedade alguma. Então, pai, o Joaquim Fideles já tem alguns bens, já adquiriu terras, se é para ajudar o padrinho na pessoa da filha dele, é melhor ajudar ao próprio. Por que ajudar a um terceiro para agradar a um segundo se o senhor pode ajudar, diretamente, a esse segundo?" Seu Tal, branco de emoção, apenas gritou: "Estou ficando caipora! Como não havia pensado nisso!". E mergulhou-se em enome alegria ao pensar que o filho se recuperara definitivamente de sua patetice, mas, para sua decepção, após esse momento, da adolescência até a velhice, nunca mais aquela eterna criança bocejaria frases ou ideias inteligentes. Uma única e bendita vez fora iluminado pelo tronco que despencara de uma sábia grimpa, o suficiente para mudar a vida de muita gente e, a minha.

De todos esses episódios estávamos inocentes enquanto aconteciam. Muitos, até hoje, não acreditam nessa versão, algumas pessoas acham que a gente premeditara tudo e interferira no destino da herança. A verdade foi como contei. Nem preciso falar do susto e emoção que tomaram conta de nós quando Seu Tal trouxe-nos a notícia de sua decisão. Mesmo muito felizes, ficamos espantados quando, além das cláusulas de porteira fechada, o doador fez questão de pedir juras ao Joãozinho de que não deixaria as mulas de João Camilo, um respeitado morador do Vai e Volta, entrarem nas terras que nos doava. Nunca iremos entender o porquê dessa implicância com o vizinho e seus animais. Deixamos nossa curiosidade pendurada no varal do bom senso, seria muito arriscado indagar a respeito de tal capricho exatamente naquele dia.

E assim... Como a vida imita, algumas poucas vezes, a história de carochinha, assim aconteceu: Seu Tal ficou pobre, mas com pensão vitalícia para ele e o filho, e nós, eu e o Joãozinho, ficamos ricos de terra e pobres de tudo o mais, exceto de amor e de esperança.
 
Fazenda da Vargem em 2005
E tem mais, nós negamos a ideia de que  a vida anda a passos lentos "de déu em déu sem nunca chegar ao céu", eu brincava de boneca quando me vi de repente casada e fazendeira. Passamos a partilhar, de uma hora para outra, um monte de responsabilidade socialmente bem estabelecidas na região: muitos empregados; muitos pastos; cavalos e vacas e tapumes por fazer. Quando se herda terras de um homem que já não tinha forças nem ânimo para tomar conta delas, as cercas estão caindo por todos os lados, os trilhos invadidos pele carrapicho, os pastos tomados por assa peixes, os vales erodidos e aterrados, os aceiros invadidos pelo mato rasteiro, as árvores frutíferas com as folhas cortadas pelas formigas e os troncos carcomidos por cupins e brocas. Uma montanha de problemas e um montinho de dinheiro. "Ser Rico é isso?" Perguntávamos aos travesseiros, eu e o Joãozinho, cada qual com medo de revelar ao outro que éramos, também, sócios nas fraquezas e decepções.

Em dinheiro vivo nada recebemos, tínhamos que cavar a vida, como qualquer casal novo, com uma diferença, começávamos com uma enorme dívida, não em dinheiro, mas de coisas que não podiam ser adiadas. Um senhor muito inteligente me disse, anos depois, que nossa situação podia ser descrita como a de um empreendimento com passivo altamente coberto. Mas, indiferente a tais coberturas, a fazenda nos cobrava: arrame farpado; mão de obra; ferramentas, desde a enxada a um simples martelo; e casa por retocar, tudo isso exigindo reparos que não podiam ser adiados, era muita coisa a ser reconstruída. Joãozinho decidiu começar pela casa, entendeu logo que nela não cabiam retoques, tínhamos que fazer outra, com urgência.

Nosso casamento vingou porque o Joãozinho era um homem muito bom e, também, porque somos de um tempo em que casamento é para valer. No início era assim, ele trabalhava o dia todo e quando voltava para casa, já tarde, encontrava-me no terreiro brincando com as bonecas ou pulando corda, ele pegava minha mão, levava-me pra cozinha e me ensinava a cozinhar. Nunca levantou a voz para mim. Trabalhava o dia todo e tinha esse carinho que me reservava para as tardes e noites.

Mas, minha filha, num dia desses lhe conto o resto. Antes tenho que lhe dizer: o Major viveu muitos anos, nós cuidamos dele muito bem, que Deus o tenha. Por hoje chega.


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Assim falou Deolinda I - Nosso retrato de 1911

Lulu
À Deolinda Maria da Conceição (03-11-1886 a 20/03/1981)



Assim falou Deolinda: tudo que vou narrar aqui é verdade, não precisa duvidar de mim e se duvidar, adeus corina, mando você passear. Este retrato é de 1911, uma raridade! Que tempos aqueles! A gente sob a influência do pensamento colonialista, tudo que vinha da Europa era bom, e a fotografia, então, era o máximo. Se Dom Pedro II, em toda sua realeza, babou pela imagem impressa, coube-nos imitá-lo, não somos de ficar a tiracolo, e a moda se alastrou. Joãozinho, meu primeiro marido, arrotou importância logo que soube que havia um fotógrafo ambulante no arraial da Oliveira, mandou chamá-lo com uma urgência que traduzia menos a pressa que a vontade de mostrar poder. Aquele marcou data e hora, era do tipo de agenda, fugia aos nossos costumes: nessas roças a gente chega sem aviso, sem precisão de rapapé; "Fresco assim, só pode ser algum almofadinha", pensei. E, como se fosse um Inglês, ele chegou em cima da hora. Quando ele entrou em nossa casa nova da Vargem, a gente já estava embonecada com roupa de missa e cabelos bem penteados. Aglomeramo-nos na cozinha, prontos, ansiosos e com cara de tacho. Não sabíamos bem em que aquilo ia dar, mas não queríamos perder a hora de o passarinho sair daquela caixa, é que comadre Heralda, uma analfabeta que se achava mais, havia dito, uns dias antes, para quem quisesse ouvir: "Cês precisa vê quando ele grita óia o passarinho!".


O ambulante era um sujeito despachado, metido a besta e dado à circunflexão, seu corpo anunciava com alguma antecedência o que a boca despacharia logo a seguir como uma ordem. Ele gostava de nos contrariar, e seu corpo sofria com este vaivém vertical, a figura arqueava-se quase até o chão, como se nos pedisse desculpas por nos causar tanta chateação. Mas, apesar dessa falsa modéstia, agia como se fosse o dono do lugar. Inspecionou a cozinha a procura de canto e piso apropriados, mandou a gente buscar folhas e galhos verdes no terreiro. De galho em galho, depois de muito arquejar, cobrimos uma parede. Ele arranjou a galhada num ritual bem ensaiado, construiu um cenário e transformou nossa cozinha numa rua com arcos verdes. Cobriu a parede com um pano enorme. Abriu as janelas para deixar entrar a luz do lado contrário de onde ficaríamos. Arqueou-se, mais uma vez, e gritou enquanto apontava para a janela do lado do fogão: "Quero a claridade nas minhas costas e nas suas caras, menina, abre esta janela mais!" Sobrou para Florisbela, bem feito para aquela ruiva curiosa que viera lá do Vai e Volta só para bisbilhotar, teve que sacudir a bunda gorda e a saia esgarçada e suja para escancarar a janela até que sua tábua ficasse rente à parede, então, atrelou-a num prego ali chumbado para essa finalidade. O dia entrou na cozinha com uma radiante intensidade, inundou nossa alma de alegria e tomou conta de todos; só não fizemos festa porque a gente se acostuma com a beleza e os milagres da vida. O ambulante esboçou um sorriso de 'até que enfim', botou sua máquina na nossa frente, morgou novamente, pediu que nos ajuntássemos, todos bem colados, como na brincadeira de passar anel. Nos organizou segundo um plano que não entendíamos e, pacientemente, foi lá debaixo daquele pano que cobria sua máquina, deu uma espiadela num buraco que apontava para nosso lado, arrumou pra lá, arrumou pra cá e voltou para nos ajeitar: ora um queixo devia ficar voltado para a objetiva, ora a cabeça tinha que se erguer mais, o pescoço mais ereto, e assim, depois de tanto levantar e baixar golas, abotoar punhos e pentear cabelos, ficamos lindos! Então ele nos disse: "olhem todos aqui!", Levantou a mão e repetiu: "aqui ó!". Esperou até que as crianças entendessem bem para onde olhar e, finalmente, gritou o famoso: "olha o passarinho!". Enquanto disparava uma luz, uma espécie de fogo branco, de muita pólvora concentrada, mas sem estampido, só um traque, menos que estas bombinhas que os meninos soltam nas festas juninas. Por coisa de segundos, aquilo clareou toda a cozinha. Aquela luz colou nossas imagens num papel transparente que havia dentro da caixa preta. Mas ele não se deu por satisfeito: mexeu de novo debaixo daquela coberta, retirou e lambeu o papel transparente, o substituiu por outro novinho e disse, "vamos repetir tudo... Não saiam da posição!... Crianças fiquem aí! Esperem!" e repetiu tudo, três vezes ou mais.

Quem afirma que o único lugar em que a família fica bem é na foto pode entender de fotos; mas não, de família. É verdade que podemos ficar bem na foto, e é o que acontece na maioria das vezes porque nos preparamos para ela, já na família a gente vive cada dia sem muito planejar. Na construção da família quase tudo vem ao acaso, o que dá sentido e fim a esse processo é o amor. O apego dos pais às crianças, as crises da adolescência, as pequenas brigas entre irmãos, tudo não passa de um ensaio geral para a vida, mas o que destaca a convivência familiar é o acolhimento ao que se desgarrou, a ajuda ao que fraquejou, a compreensão e o perdão quando todos os negam. A família é a integração e ganha peso nos momentos em que o ser humano mais precisa: quando todas as luzes se apagam e as nuvens negras escondem a estrela guia, e a bússola não mais aponta o norte, nem o vento sobra, ou o timoneiro não sabe para que porto ir, ou quando o frio invade a alma, lá está ela, a dita cuja, a família, a botar luz e calor no lugar da desesperança e da aflição. A família é uma tábua enxuta que flutua num oceano bravio para servir de boia para um ou mais de seus membros que correm riscos ou passam por dificuldades. Posso dizer, com a experiência de meus noventa anos de vida, que independente de cor e credo, e olha que sou branca e católica, a família é quase tudo e está presente na alegria e na tristeza, como o noivo e a noiva se prometem, olho no olho, durante a cerimônia do casamento. O meu caso é um exemplo disso, se não fosse a família, onde eu estaria agora? Se minha filha e meu genro não me acolhessem, e nem se diga dos outros filhos e filhas, tão carinhosos, e que sempre passam por aqui para me trazerem um presentinho, uma palavra de estímulo, ou em busca de uma bênção. Há de ter dinheiro que pague esse bem-estar derradeiro? E se eu não tivesse netos a quem contar histórias, bisnetos para comigo posarem em fotos coloridas, e tataranetos para me deixarem prosa de minha idade e meus valores? O que seria de mim sem esse baldrame? O que seriam de todos nós? Deus tem sido muito bom comigo e acho que essa ninhada de filhos, netos, bisnetos e tataranetos é a corda que o faz descer até nós. Para mim o solteirismo é como uma pinguela estreita que deixa passar um de cada vez, numa fila indiana, deve ter as suas vantagens. Há gente que vive feliz sozinha; eu, não. Algumas mulheres ficam solteiras porque escolhem demais, sonham com príncipes que só existem na fantasia, outras porque não aceitam cabrestos nem amarras. Duas coisas couberam em minha criação: a religião católica e o casamento. Fui criada para o terço, a missa em latim aos domingos (pena que aportuguesou-se), a procissão da lua cheia na sexta-feira da paixão, e para a aliança. É necessário repetir o ciclo de meus avós e pais, estamos aqui para povoar o mundo com nossos bacuris. Sou cabeça formada desde a infância para me ver nos meus filhos, para construir uma ponte larga e segura que deixa passar montoeiras ao mesmo tempo e abraçados, lado a lado, se quiserem.

Repare bem, não é o melhor começo para uma boa história, apresentar-nos numa foto assim, poderia parecer que nós, os adultos, não dávamos o merecido valor às crianças. Os estranhos à realidade de nossa época poderiam dizer que isto é um contrassenso, que não respeitamos as crianças, que os adultos estão empertigados enquanto as crianças, descalças. Mas reparem bem, é verdade que nossas crianças estão de pé no chão, mas bem vestidas. Essa valorização do sapato só tinha sentido, para nós da roça, no tempo da escravidão, pois servia para distinguir o escravo do liberto. Naquela época, antes de 1988, até branco descalço tornava-se suspeito de ser cativo, mas alguns anos depois, quando meus filhos eram crianças, calçado só servia para fazer calo. Meus meninos detestavam qualquer tipo de botina, bota e até chinelo. O meu filho mais velho era tão avesso à moda da botina que só usou uma em seu próprio casamento e, mesmo agora, já sendo bisavô, anda por ai de pé no chão e tem uma saúde de ferro. Sambanga! Você já o viu de sapatos? Estou falando do Herlindo!

Ah se vocês pudessem ver o que não aparece nesta imagem! À direita do fotógrafo, na hora em que posávamos para a foto, havia um fogão de lenha a crepitar e sobre ele, a fartura de nossa mesa: carne de porco, frango, ovos batidos, couve, ora-pro-nóbis, e o trivial que nunca faltava: arroz, feijão e angu. Ah! Você quer que eu fale da foto, está bem, volto-me para ela. Estes meninos da foto estão todos vivos, exceto um, o mais inteligente de todos, que Deus levaria já adulto e com família criada, destas mortes que não dependem do bom trato na infância, doença moldado ao longo da vida, não se sabe de onde nem por que vem. Independente desse tropicão, que é a morte de um filho, nossa raça se multiplica por este mundo. Gerei muitos, e todos vivem por muitos anos. O mundo é grande, e a gente vai ocupando os espaços com nossa prole.

Você já reparou que estamos todos sisudos nesta foto, explico o porquê: a gente estava pela primeira vez na frente de uma câmera, algo mágico, capaz de guardar as nossas imagens para sempre, ficamos tão encalistrados quanto encantados. E lhe digo que naquela época não se usava mostrar as canjicas à toa. A gente era parte de um povo tímido, esta irreverência e falta de compostura são assanhamentos modernos, estripulias de gente boba que de tanto se exteriorizar acaba fazendo papel feio. Éramos mais reservados e nós, as mulheres, tínhamos um silêncio muito expressivo, uma dádiva dos céus.

Sou muito feliz. Desculpe-me, na minha idade às vezes confundo um pouco a minha história e a misturo com a de minha mãe. Disso sei porque os antigos como eu e de cabeça melhor me falam, mas estou viva e ainda esperta e afirmo que tenho coração fraco já faz muito tempo, se continua batendo, devo isso ao Dr. Liberato Miranda que morava em Rio Espera e agora mora em Divinópolis. Aquele sim era médico dos bons. Agora, quando olho para o rasto que minha vida deixou até aqui e vejo-me no espelho do passado, não mais hesito em afirmar: fui abençoada. Essa ninhada de filhos, todos de mim com o Joãozinho; ah... O nome completo dele era João Henriques de Miranda, o que na foto está de bigode e que passou boa parte de sua curta vida nas terras que lhe deram a alcunha de João da Vargem. Viveu pouco, mas o suficiente para se casar duas vezes e deixar uma marca permanente no mundo. Comigo viveu uma bela história de amor, eu o chamava de Joãozinho, não porque fosse pequenino, eu jamais iria diminuir o meu marido, era a minha forma carinhosa de distingui-lo de tantos Joões e de torná-lo único. Era um homem e tanto, trabalhador, inteligente, esperto mas honesto. Honestidade hoje é qualidade rara, ele viveu num tempo em que a esperteza já estava se tornando sinônimo de desonestidade. Fico triste com essa inversão de valores, é difícil acreditar que um homem como o compadre Hermes, que eu tinha em alta conta, tenha dito de cara lavada: "se era honesto era incompetente"; "Vai pastar seu Hermes!" é o que eu devia ter jogado na cara dele. Diacho, minha educação não deixa, não sou malcriada com ninguém, tem hora que me faz mal ao estômago e vou aguentando calada muita bobice e até desaforos. Dr Liberato disse que isso se chama somatização, acho que ele estava certo, pois a gente vai somando desaforo em cima de desaforo, tudo nas tripas, o que acaba dando no que dá, dores pelo corpo todo e palpitações.

Joãozinho tinha muitas amizades e ainda novo era chamado para resolver contendas entre vizinhos, a maioria por causa de águas. Tinha bom senso, era um louvado e tanto, fazia um montão de amigos e ninharia de inimigos. Entedia do ofício. Não me esqueço do que ele me disse a respeito dessas contendas em torno de águas, pinguelas e brejos: "Deolinda, ninguém se mata por causa dessas ninharias, alguns se acham desrespeitados e desonrados, quando outros os fazem aceitar o que não querem. Essas brigas começam com pequenas discordâncias e vão crescendo até atingirem o lado pessoal, não é mais o metro de terra nem o filete de água que está em jogo, é a honra. Não é uma pequena birra que leva à morte, é o ódio alimentado pela convicção de que o outro quer levar vantagem com suas espertezas. Não gosto de arbitrar essas disputas sem entender o que de fato está em jogo. Na maioria das vezes, quando avocam um louvado, as discórdias já atingiram um nível em que o objeto do litígio transcende o bem material. Prefiro as contendas sobre grandes valores em terras e imóveis a que intervir em pequenas causas alimentadas por anos de ódios e antipatias acumuladas em que cada litigante vê na atitude do outro um desaforo danado.Quase em todos esses casos, tenho que apaziguar as almas, antes de definir locais para cercas e tapumes. Cercar o ódio antes de cercar terras, é o meu lema. Ganho amigos e um pouco mais de dinheiro na divisão de grandes fazendas; e, inimigos nos palmos dos brejos. Os tostões têm o cheiro da morte e os contos de réis, o da ambição; dos dois males, prefiro o segundo. Neste trabalho, quando há discordância das partes, não temos escolhas boas". É preciso falar mais alguma coisa sobre meu primeiro marido, um homem que falava assim era ou não era sábio? Tive sorte no casamento...
 


A foto é de 1911, já disse isso? Desculpe-me, é que essa data é importante para a compreensão de tudo que tenho a dizer, tenho que destacá-la. Mas voltemos à vaca fria, ou seja, à foto velha, nela estão todos os nossos filhos nascidos até aquela data e, ainda, os do primeiro casamento de Joãozinho. Os do primeiro matrimônio se puseram no fundo. A menina quase moça, já noiva quando posou nesta foto, é Satita; não faça confusão com o que falo, estou falando de Satita e, não de Sadita! Pois é, Satita, seu nome de batismo é Maria Joaquina de Jesus. Naquele dia, da foto, ela partiu o cabelo e usou um vestido branco comprido adornado por um cinto preto que combinava bem com a cor de seus cabelos. Linda, de olhar altivo, tudo a denotar o que sabemos dela pela sua história: é mulher de personalidade cujos traços de determinação já estavam, naquela época, gravados em sua fisionomia tranquila.
Agora eu sei, o seu destino estava traçado na delicadeza e suavidade de suas feições: seria esposa e mãe exemplar, viveria para criar muitos filhos e cuidar de netos. Olha do lado direito da foto, ali se encontra o irmão dela, esse rapazinho chamava-se Joaquim Henriques de Miranda. Sua mão direita pousa suavemente sobre o ombro do pai, gesto tão fino e pouco corriqueiro, na época e agora também, um sinal de grande afeição. Esses dois eram amigos de verdade, coisa difícil de acontecer entre pai e filho, pois muitos não conseguem administrar bem a necessidade de educarem com a de amarem os filhos, e aqueles que optam por apenas um desses extremos se tornam pais ditadores ou super protetores. Quando me sento no conforto de minha cama, eu que dormi tantos anos em catres, agarro-me em acontecidos do passado e medito sobre meu povo e, nessa quietude, o pensamento voa e a alma quase se evaporada e desloca do corpo, então, fico a vacilar se aquela mão no ombro pudesse significar algo mais que uma simples posição casual. E pergunto-me, teria o Joaquim pressentido a proximidade da morte dele e do pai. O certo é que isso, a morte de ambos, aconteceria pouco tempo depois. Encabula-me esse gesto, mas pode ser apenas uma bobagem minha, um devaneio da idade ou de quem imagina muito e costuma inventar patetice.Algumas vezes risco fósforo para fogo já formado ou tento apagar o carvão já frio. Por que acender o que já está crepitando ou esfriar a alma com lembranças tão tristes?



Nem parece que essa mulher de preto seja eu. Franzina assim, Parir todos esses meninos antes de completar 25 anos. Criei todos os que estão na frente, e essa no meu colo, e mais três que nasceriam depois. E para testar e dar crédito à minha boa memória, pois preciso contar as coisas como de fato foram e quero que você acredite em mim, vou citar o nome de todos na ordem em que estão na foto: o menino mais da direita é o Herlindo Henriques de Miranda; depois vem o Rosalino Henriques de Miranda, o Loló; O Alípio Henriques de Miranda; O Amantino Henriques de Miranda; e o Francisco Henriques Miranda de Souza, o Chico da Vargem; a do colo, essa menina com menos de um ano, é a Sadita. É isso mesmo! É a minha filha que hoje toma conta de mim e me olha tão bem, o nome dela é Rita Henriques de Miranda.

Quero também fazer um elogio a esta foto que é caprichada, como tantas daqueles tempos, esmerada na centralização da imagem, equilíbrio no arranjo do fundo e na escolha do local: a nossa cozinha calçada com tijolos bem queimados. Meu irmão Franklin, um homem que sempre gostou de retratos e de capricho, e que aprendera muito de balcão e de fotos quando morou em Belo Horizonte, ali pelos idos de 1932, no dia em que a viu, pegou-a com satisfação e exclamou ao seu modo: "Este retrato é superior! Superior! Superior! Não há falhas, o foco é perfeito, tudo que podia obter-se de um retrato foi alcançado nele".

J
oãozinho morreu alguns anos depois desta tomada. Tinha problemas de coração, mas antes enterrou o seu filho Joaquim. Deus que nos havia dado uma sombra muito escura, logo em seguida, a eclipsou com um sol brilhante e quente: nós tivemos a alegria de ver, ainda juntos, nascer a caçula, Maria Henriques de Miranda.

Fiquei viúva nova. Seria difícil preencher o vazio deixado pelo Joãozinho, mas eu sempre fui prática e decidida, mesmo sentindo pontadas no coração pela perda do companheiro, tinha que seguir em frente e logo me casei com Francisco Firmino de Oliveira, o Chiquinho, que me ajudou a criar minhas crianças do primeiro casamento e mais duas meninas que tive com ele, a Enedina e a Amélia. Muitos anos depois, já com a família toda criada e encaminhada,, cada um com o quinhão da partilha depois da morte de Joãozinho, fiquei viúva novamente. O destino assim o quis e não tive como não aceitar, quem tem?

Agora que já lhe falei do retrato, como se fosse uma introdução de minha história, vou narrar alguns fatos de minha vida que pouca gente conhece: de como fiquei rica.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Coro de Senhora de Oliveira em 1988

 Em 1988, numa iniciativa particular e amadora, o coro de Senhora de Oliveira foi filmado durante a missa dominical celebrado pelo padre José Justiniano Teixeira. A filmagem original foi em fita vídeo cassete, posteriormente convertida para DVD, e é agora codificada para formatos compatíveis com os recursos da internet.

O local da filmagem é a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Senhora de Oliveira Minas Gerais, uma pequena cidade da zona da mata mineira, hoje pertencente ao circuito Villas e Fazendas da Estrada Real. Essa igreja foi descrita, por mim, numa publicação no Google Earth: construção de 1931. Corpo longitudinal com partes retangulares: sacristia, duas naves separadas por um grande arco e a tradicional torre sineira com venezianas encimadas por vitrais em meia-lua. Há ainda: o coro tipo varandão, um batistério com a pia batismal guarnecida por grades de madeira e as pinturas em mural que reproduzem santos, cenas religiosas, cortinados e tapetes. Sobre o altar, dois anjos pairando entre nuvens, seguram uma faixa com o primeiro verso do célebre poema-oração de São Tomás de Aquino: "adoro te devote latens deitas". (Eu te adoro com afeto, Deus oculto); sobre o arco que separa as duas naves, o Espírito Santo, representado por uma pomba, é ladeado por dois ícones do cristianismo: à direita, São Paulo empunha uma espada e, do lado esquerdo, São Pedro segura a chave do paraíso. Este patrimônio cultural do município de Senhora de Oliveira - MG foi tombada em 2008 pelo IEPHA e atualmente (Março de 2010) está sendo restaurado.

Nem toda a beleza arquitetônica da pequena igreja aparece no vídeo, mas algumas tomadas da cidade foram feitas, o que quebrou, um pouco, a sua temática que visava mostrar a música sacra e criar um registro histórico do coro.

 Infelizmente, uma boa parte dos cantores que aparecem no vídeo não estão mais entre nós, poucos deles chegaram a assistir a uma única apresentação da gravação que ocorreu, numa televisão local, usando-se vídeo cassete, isso no dia em que foi realizada a filmagem em abril de 1988.
Ao postar este vídeo no blog, espero atender aos que ainda não o viram e aos que dão importância aos registros históricos e culturais da cidade.
                                                                                                       Lulu de Sodiga


domingo, 16 de janeiro de 2011

Confidências de um retrato

Tudo começou quando ele me provocou:


— Psiu! Psiu!

Virei-me para ver quem me chamava tão aflito e logo o encontrei, era um dos retratos que eu havia pendurado na parede da casa da roça, no corredor que leva aos quartos de dormir e ao lavabo. Achado, ele prosseguiu:

— Sou apenas uma foto, nada mais! Avise o pessoal.

Aproximei-me um pouco mais, e ele repetiu quase gritando:

— Avise o pessoal! Avise!

Eu me dirigia ao lavabo antes de ser interpelado, entrei e lavei as mãos. Quando voltava, ele chamou-me novamente, usando as mesmas palavras, mas agora sem os psius e em tom menos agressivo. Não me preocupei com aquilo, tinha afazeres: aplicar vermífugo numa bezerra que nascera dois dias antes, filha de um nelore de sangue; bicheiras por aqui não têm vez, desde pequenos, os animais já são benzidos pelo Geraldo Ferro Véio e, na dúvida quanto às intervenções do além, tratados pelos métodos convencionais; quando preciso, conto com a EMATER, que está aí para ajudar e sabe o que faz. Nesse dia, fiz também a primeira adubação de cobertura do pomar, tarefa que gosto de realizar pessoalmente na estação de chuvas e em três etapas, a primeira em outubro. Mas ao anoitecer, quando as galinhas já haviam empoleirado, e o sapo martelo já estava a cravar seus pregos numa ripa imaginária, em um brejo real, e os vaga-lumes a pisca-piscar, eu voltei para casa e passei novamente pelo corredor e, dessa vez, não aguentei calado a uma nova chateação daquele abusado retrato:

— Psiu! Psiu! Sou apenas uma foto, nada mais! Nada mais!

Repetiu e realçou o final com ares de quem filosofava, fazendo-me lembrar de refrões emolduradas pelo prestígio universal: só sei que nada souconheça-te a ti mesmo; penso, logo existoser ou não ser, eis a questão!; tudo que é sólido se desmancha no ar; e nessa linha. Não sei se por causa do frio que neste ano acontece em época de calor ou se pela alta de tudo quanto compro e a baixa do pouco que produzo, perdi a calma e xinguei:

— Vá pro raio que o parta!

Concomitante com a praga que eu acabara de rogar, um raio desestabilizou o lugar: fez a noite virar dia; as galinhas de cima sujarem as de baixo; o martelo do sapo travar; e o vaga-lume desnortear-se de tanto clarão. O estrondo demorou a chegar aonde eu estava. Dizem, e eu aceito como verdadeiro, que a luz tem velocidade tão grande que nos parece instantânea, e o som de um raio se propaga mais lentamente, a menos de meio quilômetro por segundo. Mesmo sabendo que minha medição disso é imprecisa, pude estimar distâncias aproximadas e firmar a convicção de que, apesar de tanto clarão, esse raio caíra longe. Notei que o retrato continuava impassível, quebrei a calmaria pós-raio e fui a um suave ataque verbal:

— Você sabe que é muito mais que uma foto. Pelo menos para nós humanos, que somos animais simbólicos, nada é tão simples. A maioria de nós adora mistérios, milagres e dogmas; de ver significados atrás das aparências.  Estamos sempre “a procurar chifre em cabeça de cavalo” e, na maioria das vezes, nós o encontramos lá.

O retrato respondeu com jogo de palavras:

— Você quer que eu me retrate? Mal comecei a falar!

Eu retruquei à altura:

— Estou vendo que você é mesmo delicado. Não gosta de provocações nem de trocadilhos ingênuos e sabe respeitar a hora e o lugar.

O retrato respondeu à minha ironia com um alongado discurso, parecia querer exibir sua eloquência ou vingar-se da reprimenda:

— Não se esqueça, sou um retrato de parede, vivo em plano vertical. Não posso olhar para você, só posso ouvi-lo, e não teria como perceber ironia, nem riso fingido, se não fossem palavras vãs, colocando entrelinhas com críticas à minha conduta. Percebo que você está com raiva. Um homem zangado é mesmo sem graça! Mas você é sempre meio esquisito, passa aqui na minha frente, várias vezes por dia, e nada sabe de minha vida.  Trata-me como se eu fosse um velho que já se consumiu por alguém ou por uma causa e que não merece mais a gentileza de uma atenção. Eu, de minha parte, posso dizer que nunca me doei a ninguém, mas tenho coisas para contar. E vou direto ao ponto: quis a sina que eu visse e retratasse apenas uma vez na minha existência. Não sou uma exceção, todos da minha espécie são assim. Não tenho porque reclamar. Inicialmente eu carregava, como todo filme virgem, uma carga de diferentes tonalidades, no meu caso variações do cinza, e podia representar aquilo que se postasse na minha frente. Um filósofo diria que eu era um ser em potencial, um ser por vir. Obviamente sou limitado pelo estágio de desenvolvimento tecnológico de minha época, sou do início do século passado, mas há compensações, o tempo fez-me ganhar densidade histórica. Fui criado para produzir o que vocês hoje chamam de foto em preto e branco. Nasceria a partir de uma câmara escura e malcheirosa. Minha hora começaria quando um profissional que chamam de lambe-lambe acionasse um botão que abriria uma fresta e deixaria passar a luz. Em toda máquina do meu tempo, esse buraco pequeno, que se abre por apenas alguns segundos em cada produção, é a única greta que deixa passar, de maneira controlada, ondas de luz suficientes para que eu possa fixar, no meu corpo umedecido por misturas químicas, tudo que eu conseguir abarcar num ínfimo lapso de tempo. Acho que você, se já não sabia, entendeu, essa carga só pode ser liberada uma única vez. Passada essa oportunidade, singular e rápida, nada mais poderei ver. Mas, felizmente, continuo com o devir da audição, do entendimento e da sensibilidade. Cada filme tem uma história, comigo aconteceu o seguinte: ao sair daquela câmara escura, ainda protegido por uma capa preta que cobria a mim e ao ambulante, fui lambido no sentido literal, platônico e nojento da palavra, e, após secar-me, passei à categoria de espectro, um guardador de imagens do passado. A luz nunca mais me sensibilizará e me transformará, tornei-me imutável na aparência. E se a inércia fosse uma lei que pudesse ser aplicada à conservação das células, eu poderia ser eterno na aparência, pois na essência já o sou, nenhuma lei bole no meu interior.

Dois jovens cheios de vida.
O retrato calou-se. A luz da sala, interrompida por um lustre velho, projetava uma sombra diagonal, num dos lados do corredor e dissimulava os cantos enrugados do papel grosso, onde uma imagem vetusta mostrava o perfil de dois jovens cheios de vida, em contraste com a paisagem do chão que parecia ainda impregnada do cheiro de ruas antigas, de urina e bosta de cavalos, de calçada coberta de musgos. 

De repente fomos inundados por um silêncio profundo, nem a ameaça de chuvas e o peso de nuvens carregadas de eletricidade, resvalando umas sobre as outras e fazendo o céu pororocar com chumaços escuros, nada disso parecia importar agora. O falante retrato ficou triste e compenetrado, e a arrogância da manhã e de momentos atrás evaporara. Eu ajustei-me ao clima, tornei-me mais constrito e aberto a esse tipo de conversa e disse:

— Não sei se entendi bem o que você quer de mim, ou você é um bobo alegre e fica repetindo o que ouviu por aí, ou de fato é muito profundo para um retrato. Diga-me, você precisa desabafar, é isso?

Enquanto ele pensava no que iria responder, dispus-me, pela primeira vez na vida, a observá-lo com um pouco mais de atenção: estava numa moldura simples, muito nova para um retrato tão antigo, provavelmente fora comprada numa loja de descontos. No lugar do vidro havia apenas um plástico grosso, material simples, mas de boa transparência, a imagem podia ser vista com nitidez. Quantas vezes eu examinara aquela foto com interesse voltado para o conteúdo, não reparara na espessura de papel, nas tonalidades, nem nas cores. Sempre gostei do tema que ela traz impresso, induz-me a pensamentos patéticos: vejo nela poesia; onde outros, apenas imagem. Mas agora podia notar que ela queria saltar da parede, virar assunto, falar de si, enquanto objeto e história, e, de coisas que eu sequer imaginara que uma foto pudesse conhecer. Ela parecia ler os meus pensamentos, mas se ateve ao que eu havia perguntado:

— Não se trata de desabafar, você já percebeu isso. Quando vocês humanos trocam ideias, vocês estão desabafando? Acho que não, vocês chamam isso de diálogo, pois bem, é disso que sinto falta, troca de opiniões e experiências. Por trás desta minha condição de retrato, eu tenho casos e causos pra contar. A verdade é que não vi mais nada desde aquele 7 de setembro de 1926 quando o lambe-lambe me colocou naquela caixa preta, e, então, nós, ele e eu, ficamos a esperar por algum freguês. Eu começo nossa conversa a partir daquele dia: vi o lambe-lambe cochichando com a sua mulher. Essa mulher escondia sua verdadeira identidade. Ele lhe disse, momentos antes de ela abordar os dois que você pode ver aqui na minha face, “Amada, estes dois que estão se aproximando parecem do interior, devem ser peões ou empregados de fazenda rica e, pelo jeito como olham para a câmera, estão interessados em se verem num papel desses. Vá lá querida!, desempenhe o seu papel, desperte neles os narcisos que trazem na alma”. A mulher funcionava como agá do próprio marido e, pelos seus predicados femininos, tinha grande competência para atrair clientes. E logo ela achegou-se aos dois e desenvolveu uma espécie de gingado, como se os chamasse para dançar num baile de ‘Maria Cebola’. A mulher tinha beleza e curvas apropriadas para o negócio em que se metera, recursos que sabia usar muito bem no ofício. O seu sotaque e jeito baiano, em que canta quando fala e encanta quando rebola, eram novidade para os dois rapazes. Ela, com anos de experiência na malandragem de enganar os incautos, sabia ler os mínimos detalhes na expressão de futuros clientes, logo percebeu que o exagero no baianismo lhe traria vantagens. Determinada, avançou sobre eles, como uma gaivota faminta mergulha sobre os peixes da superfície do mar: colocou atributos positivos nos rapazes, a maioria que não tinham; exagerou em elogios aos retratos que o lambe-lambe pendurará nos varais, um era dela própria: “Viram como eu fiquei bem nesta aqui! Eu estava dançando. Olha como o rapaz trabalha bem!”, disse, sem revelar a sua condição de parceira do negócio e, como todo agá que se preze, ela falava como um cliente comum que se empolga com a beleza e qualidade do trabalho de um profissional: “Meu senhor” disse dirigindo-se ao ambulante, “o senhor poderia fotografar-me dançando; é sim, eu mesma, novamente, quero outras posições mais interessantes”. O ambulante, dentro do jogo de sedução que se armara, respondeu: “Minha Senhora, claro que o farei, mas vamos dar preferência para estes dois rapazes que parecem estar cansados da longa jornada. A Senhora, que mora aqui tão perto, não poderia esperar?”. Enquanto ela dizia “claro, claro!”, o menor dos rapazes encavalava as falas e respondia: “De fato Senhor, viemos de Piraguara em lombo de cavalo. O senhor conhece lá? Estamos cansados, mas nem tanto, eu mais ele estamos acostumados a cavalgar e tocar tropas por essas montanhas e beira de rios. Não são poucas as vezes em que viajamos dias seguidos, faça sol, chuva ou neblina de invernada. Peão não costuma reclamar de trote ou galope, a gente reclama de calmaria”, disse, lançando um olhar para a baiana e completou.” Pois é, não tenho razão? Estava a esperar alguma resposta da baiana quando o lambe-lambe interveio: “Se conheço Piraguara! Conheço como a palma da minha mão, já andei por lá muitas vezes, lugar bom e de gente acolhedora”, disse com intenção de agradar, não parecia sincero, e completou: “Vou dar preferência para os senhores, vamos tirar o retrato.” O rapaz, de menor estatura, interrogou-o preocupado: “Não é muito caro senhor? Somos de poucas posses”. O maior em estatura, que nem tão grande era, que até então se mantivera afastado da conversa, gracejou: “De poucas posses, é verdade pura e crua, além disso, este é muito pão-duro”. O menor entendeu que o gracejo não lhe era ofensivo, ao contrário, era um ardil para buscar a redução do preço, esperto, socializou a pobreza para reforçar o apelo: “Pão-duro eu, talvez, mas de poucas posses com certeza os dois.”

O retrato de parede que começava a se mostrar um sem papas na língua parou um pouco para tomar fôlego, eu aproveitei e perguntei:

— Afinal, olhando melhor, percebo que esses rapazes, que você tem estampado na sua face, vestem roupas esquisitas, isso era moda?

O retrato não gostou muito de minha intervenção e respondeu como um velho rabugento que acha tudo e todos impertinentes:

— Você não me deixa arrematar! É claro que dois peões não andariam por aí de terno e gravata, os tempos não mudaram tanto assim, ou você acha que andariam? Então, tenha mais calma que eu vou contar a história toda... esses dois chegaram à cidade com roupas boas e traziam outras limpas nas malas das cangalhas, mas roupas de peão, e sabiam que elas não eram as melhores para uma imagem que poderia durar séculos. Mas antes de falar sobre isso, eu quero falar sobre minha própria história e as de meus colegas aí do lado. Veja este à minha direita, coitado, é um retrato que eu chamo de pé no chão: pragmático, carrancudo, uma triste figura. Esse não percebeu ainda que o mundo tem três dimensões. Ele está no estágio de desenvolvimento que eu estava logo que saí da caixa preta, há 80 anos. Mas ele é novo, deve ter seus 55, tem tempo para aprender. Pois bem, quando eu tinha poucos meses, só era revelado no sentido literal da fotografia, mas não sabia nada do mundo. Pensava que tudo pudesse ser explicado apenas pelo comprimento e largura. Eu vivia num plano cujo formato era-me suficiente para retratar aqueles dois, mas insuficiente para ir além.

— Como assim?

Perguntei num ímpeto, logo me arrependi, pois ele mal acabara de pedir-me que fosse mais paciente, e eu temia que ele se aborrecesse de vez e abandonasse a história. Ele, que tinha aquela estranha facilidade de apreender, viu que eu me recompunha, e por isso continuou como se nada tivesse acontecido:

— Você já ouviu falar na caverna de Platão?

— Não me lembro. De que se trata?

— E sobre a alegoria da caverna, já ouviu alguém mencionar?

— Também não.

O retrato, então, atreveu-se a me dizer:

— Santa ignorância! Pelo jeito, não é só o meu colega aí da parede que está por fora.

— Você está se achando, então explique! 

Isso eu disse, sem esconder a irritação. E ele alongou o discurso:

— Vou explicar: na alegoria da caverna, que pode ser chamada também de caverna de Platão, aquele famoso filósofo grego usa um diálogo para nos sugerir que pessoas acostumadas a verem o mundo apenas pelo sentido da visão teriam dificuldades para compreender a realidade. Na alegoria da caverna, algumas pessoas nasceram e vivem aprisionadas numa caverna e não podem movimentar-se para sequer verem quem está do seu lado. Uma luz entra por uma abertura localizada nas costas deles e projeta suas sombras nas paredes da caverna. A realidade, para eles, é aquelas sombras. Essas pessoas, se saírem desta caverna, terão grandes dificuldades para viverem no mundo como humanos normais. Terão dificuldades de lidar diretamente com a luz, mas depois que a perceberem não mais quererão voltar para caverna. A caverna passa a ser uma grande privação de conhecimento, um mundo de ilusão. Entendeu?

— É claro!

Respondi secamente, um pouco envergonhado pelas minhas limitações. O Retrato prosseguiu:

Este retrato aí do lado está  para mim, assim como
você  está para o Einstein..


— Pois bem, minha situação era semelhante, vivia num mundo de enganos. Como retrato, tive uma compreensão repentina e passageira de que havia algo mais que uma caixa escura quando o diafragma da máquina se abriu. Mas aquela claridade que invadiu o interior daquele compartimento e fez marcas em mim também me cegou e tornou-me prisioneiro de duas dimensões, o mundo para mim só tinha dois vetores: a minha largura e o meu comprimento. Minha limitação era tão grande que eu só conseguia representar e pensar aquilo que ouvia e sentia num universo de poucos centímetros quadrados. Tudo em mim ganhava proporção reduzida, não tinha a menor noção de outras possibilidades, não tinha campo para exercitar. Mas ouvindo e prestando atenção no que pensavam e falavam aqueles que passaram perto de mim, durante 90 anos, fui, de migalha em migalha, reunindo informações e cheguei à conclusão da existência de algo maior, a profundidade. Isso que para vocês é intuitivo, pois faz parte de suas experiências, para os retratos, não é. Pressentir outra dimensão é um verdadeiro salto do entendimento, algo transcendental, para um pobre e finito retrato. Suponha que um dia você depare com a certeza de que o mundo comporta outras extensões além das que você experimenta no dia a dia, não seria um choque? Eu me orgulho do que sei. Este retrato aí do lado está para mim, assim como você está para o Einstein.

Eu o interrompi mais uma vez, não com o intuito de me agastar com a impertinência daquele pedaço de papel velho que criava paralelos para me diminuir, ademais, a comparação não era pejorativa, Einstein é referência grande para qualquer um, eu queria, apenas, chamá-lo ao tema:

— Olha aqui! Para quem reclamava de falta de diálogo, você está se saindo um grande e prolixo monologuista.

O retrato concordou:

— Estou mesmo, é que há conceitos difíceis de serem explicados, mas acho que você entendeu. Pois bem, agora vou contar a história da foto e depois dos fotografados.

Admirou-me a menção da foto como personagem e perguntei:

— Há duas histórias, então?

— Há, e estão interligadas, pois o meu destino esteve, por muitos anos, preso àquela mulher e a seu rebolado.

— Meu Deus! Retrato, você me deixa confuso e curioso. Então, vamos lá, vou escutar e prestar atenção.

O retrato foi paternal:

— Isso é bom, escutar não é para qualquer um, e escutar para valer é o mesmo que prestar atenção, parabéns!

Faltou só ele dizer ‘bom menino!’ para me rotular de criança, mas eu aceitei, com humildade, esse triste papel. Apesar do ato falho dele, não havia mais, em seu tom, aquela arrogância nem aquela pressa. Mas logo ela, a impaciência, a mãe de todas as submissões, fez-me capitular. Passei a palavra ao velho retrato que seguiu seu próprio roteiro:

— Enquanto o lambe-lambe me lambia, uma imagem ia surgindo em minha superfície, como se a língua daquele ambulante fosse um pincel mágico e, depois de alguns minutos, a figura destes dois rapazes estava estampada nesta minha superfície lisa e aí está até hoje. Não foi uma revelação instantânea, como as atuais, mas em alguns minutos eu já estava pronto e fui entregue a este que na imagem aparece do lado direito do observador, é o maior dos dois rapazes, poderíamos chamá-lo de Deoclécio. De posse de mim, Deoclécio não deixou que o Edgard, esse da esquerda, visse-me, como era esperado, por mais que ele insistisse. “Depois eu lhe entrego, depois!”, Dizia. E assim, nesse jogo de empurra, fui parar num bolso de paletó de couro, juntando-me a fumo de rolo, canivete e escova de dentes. Mas antes, falo do porquê de vestirem roupas tão esquisitas.

Foi aí que eu entrei novamente na conversa:

— Retrato, já estou cansado, você não poderia contar esta história sem tantos rodeios?

— Nãaaao!

Assim disse, na forma da mais dilatada convicção, e continuou:

— Não se esqueça, sou um retrato, tenho vocação para pormenores, gosto de sombras, nuanças e de seus entroncamentos. Como eu dizia, os rapazes estão com roupas que não combinam com as suas profissões. Naquele tempo, como hoje, peões vestiam roupas rústicas, camisas xadrezes, blusas de couro e calças de brim curinga. Acontece que o lambe-lambe, que não perdia paroquianos por falta de indumentária, mantinha um guarda-roupa de propósito para essas ocasiões e ao gosto do freguês, mas que era limitado quanto aos tamanhos dos manequins. Assim, o Edgard acabou na manta, pois nada se ajustava à sua altura, tinha um metro e sessenta. Depois de muito procurar e revirar aquele amontoado de fatiotas, o ambulante acabou impingindo ao menor um terno de adolescente. Ao Deoclécio, que tinha estatura, coube um terno de melhor aparência e tamanho mais ajustado. A exceção da cueca, meias e sapatos, tudo o mais que Edgard vestia, naquela hora, pertencia ao ambulante. As calças pega-frango só não deixavam as canelas de fora porque o rapaz usava uma meia de cano comprido. Pelo que sei e ouvi aqui e ali, o Edgard gostou tanto daquela boina que a manteve em seus intentos e comprou modelo idêntico logo que pode e a usou na velhice, até os últimos dias de sua vida, em 1990; aos 80 anos de idade, agarrava-se a ela como se fosse um emblema; quem sabe, trazia-lhe lembranças de uma juventude rica em alegrias e aventuras.

— Meu prezado interlocutor, como posso fugir a uma questão que cala fundo em minha alma e me empurra para um estado de sofreguidão. — Disse eu, de propósito, com essa linguagem pedante e arrematei: — E o caso do retrato e seus encantadores mistérios, como fica?

— Fica bem, fica muito bem!

Respondeu solene, como se inebriasse com o som da própria voz e com meu sofrimento, e continuou, ainda pomposo:

— Eu, um pobre retrato, percorri uma longa jornada até chegar a esta parede e ganhar uma posição vertical de destaque, porque a horizontalidade sem público é pior que uma morte desonrosa. A minha trajetória não faz uma história bonita, passei anos de solidão em lugares inóspitos. Quando saí daquele bolso, aquele rapaz, o Deoclécio, que gostava de uma pilhéria, escreveu alguma coisa em minhas costas, algo que se referia à baiana, aquela bonita amante do ambulante. Poucas palavras que falavam do requebrado com que ela os recebera e que exageravam o encantamento que por ela o Edgard tivera. Uma inocente bobagem, mas que ganhou conotação pejorativa, quando caiu em mãos de parentes do, segundo estes, ultrajado. Surrupiaram-me do bolso do Deoclécio, tomaram minha guarda e, dali, fui direto para uma gaveta escura e malcheirosa, condenado ao limbo por um pecado venial que outro cometerá. Ali vivi cercado de papéis inúteis e alfarrábios familiares. Frequentei caixas pobres e sem chaves. Não me deixaram aproximar dos sinais de riqueza daquela casa que residiam em armários nobres e com cadeados, onde eu sabia existirem muitos documentos de contas a receber e poucos de contas a pagar, neles se podiam encontrar escrituras de fazendas e de casas e lotes na cidade de Ouro Preto, e uma gema de valor incalculável, de cuja origem ouvi a dona da casa dizer: “foi uma prenda de Deus. Só pode ser isso! Um dia, sem mais nem menos, esta pedra rolou de uma encosta aqui dos fundos de casa e caiu aos pés do meu marido”. Como você vê, um dos parentes do fotografado, seu primo-avô, prosperava, e, pelo que escutei dos que por ali circularam, em tantos anos, a riqueza daquele outro baixinho vinha de muito trabalho e economia. Era seguro e metódico, um homem bom, bom mesmo! Você, meu caro roceiro, sabe o que é boca com gosto de guarda-chuva?

Estranhei aquela mudança repentina. Pelo jeito, o Retrato queria sair do trilho em que se pusera com seu caso, trocando-o por um caminho enviesado e que pouco me interessava. Que importância podia haver no gosto que aquele papel sentia? Contudo, guardei para mim essa opinião e disse:

— Não, não sei! Não sou como o seu criador que lambe tudo que vê — respondi gracejando para esconder a zanga. O retrato corrigiu-me com rispidez:

— Ele não é meu criador! Deu apenas uma ajuda no meu nascimento, assim como a parteira não é sua criadora, ou é?

Era tão óbvio que eu estava brincado, será que ele não tinha senso de humor. Surpreendeu-me reação tão defensiva, eu não pensara no retrato como criatura comparável ao ser humano. Ávido pela história, eu não tinha interesse em prolongar qualquer contenda verbal, muito menos por uma ninharia. Lembrei-me do que meu pai um dia me dissera ao ver-me metido numa disputa menor: “meu filho, não brigue por tuta-e-meia, brigue por princípios”. Eu não tinha motivos para refutar aquele papel estampado em preto e branco e achei melhor deixá-lo prosseguir:

— Todos aqueles anos, eu sentia esse indefinido, mas horrível, gosto de guarda-chuva na boca. Naquela gaveta, que compunha um criado-mudo de quarto de meninas, vivi por mais de trinta anos. Ali, aprendi, inicialmente, sobre tudo que meninas costumam conversar. Passado algum tempo, elas se tornaram adolescentes, e eu evoluí sensorialmente com elas e podia também sentir o que sentiam, aprendi o que adolescentes pensam e falam. No final da adolescência delas, o movimento do quarto aumentou muito, era um entra-e-sai de meninas da escola, primeiro do ginasial, depois do colegial e, finalmente, quando elas já saíam da adolescência, de gente mais letrada, rapazes sofisticados, janotas com cursos de engenharia de minas, advogados, e gente da alta-roda, alguns mal-intencionados; elas, bem-educadas, protegiam-se e impunham-se. Pois bem, embora eu literalmente retrate dois rapazes na imagem, faço parte de um processo inicial de aprendizado baseado em experiências femininas e, acho que por isso, tenho alma sensível. Minhas esperanças de sair daquela rotina renovavam-se sempre que, sem o rigor de uma agenda, a dona da casa fazia uma faxina geral no quarto, tarefa que nunca delegava a empregadas, e sempre que esbarrava comigo, dizia: “nós precisamos dar um jeito neste retrato, temos que encaminhá-lo para um dos filhos do Edgard”. E com o passar dos anos, vieram as trocas de móveis e de quartos, e fui levado pela correnteza do destino, como um boi que não escolhe pasto, nem porteiras, nem vacas.  Frequentei mãos curiosas e muitos cômodos e ambientes, viajei pela casa ao Deus dará. Como um vira-lata que aprende no cheirar as entradas e saídas das igrejas, e lá eram tantas, eu aprendia com o ouvido e com o sentir, e meu repertório crescia, pois não era um ser de experiência única, vivia sob uma multiplicidade casual. Tornei-me uma espécie de memória da família, embora, naquele tempo, não tenha entrado em contato de terceira dimensão, como ocorre agora. Isso é, de fato, surpreendente, pois apesar de toda esta conversa com você, esta é a minha primeira vez, nunca falei com ninguém antes, juro! Talvez eu esteja perto de atingir o auge de minha evolução, pois o diálogo aguça a lógica, desperta os mecanismos de defesa e da investida verbal que, se devidamente policiados contra os arroubos, se transformam em instrumentos a favor do conhecimento.

Após essa breve alusão a sua condição de viver, sentir e pensar, o retrato deu um tempo, e eu aproveitei para quebrar o fio do monólogo:

— Já que você está falando das vantagens do diálogo, permita-me um aparte. Sendo você tão sábio, pois a sabedoria se revela na capacidade de ouvir, ponderar e conversar pouco, como lhe acontece há mais de meio século, não haveria o risco de que você, ao falar agora, possa revelar coisas que não deve, soltar os podres das famílias, pois seja numa gaveta ou numa parede, um retrato ouve mais do que o necessário e pode falar mais do que o suficiente. Como você encara a responsabilidade e necessidade de ser discreto?

O retrato ponderou:

— Ir por partes, eis meu desafio! Em primeiro lugar, não me considero obrigado a um pacto sob a égide da ética humana, não sou compadecido. Mas tenho que reconhecer que, fora alguma estrutura mental (de foto) que eu possa ter a priori, todas as minhas experiências em vivência plana se acumularam a partir de mentes e falas humanas, tenho cabeça e emoções que absorvi de gente. Nisso, acho que tenho uma responsabilidade, principalmente por não ter sido autorizado, já que entrei nas vidas sem bater nas portas e sem pedir licença.

— Falando assim, você parece se considerar um ser quase onipotente, um ser à imagem de Deus?

O retrato irritou-se:

— Não diga absurdos nem blasfêmias! Sou muito limitado, pois se tenho esta vantagem de estar nos ambientes como espião, por outro lado, tenho uma limitação muito grande, não posso ver. Posso descrever uma mulher ou qualquer outra coisa, assim como um cego descreveria uma noite enluarada, ele sem a experiência da visão; eu, do tato, do olfato e do paladar. Eu posso muito bem descrever as mulheres em geral e uma em particular, mas jamais saberei, na prática, o que é uma pele aveludada, que maciez é essa que os poetas tanto cantam, como são as suas curvas, aquelas saliências que tanto empolgam os homens e que os levam a loucuras. Tudo que sei, mesmo que refinado pelo dom da inteligência e da habilidade discursiva, é destituído de objetividade. Você vem da linhagem simbólica; eu, da abstrata. Sou capaz de lidar com a abstração levada ao extremo e, por isso, fico à margem da realidade concreta, do amor e do prazer intenso. Neste aspecto, sou como um homem erudito que empolga suas plateias com discursos fabulosos, que fala do amor e da caridade, mas que nada faz a respeito disso e que, na prática, vive às turras com os vizinhos, despreza os que o amam e ama as coisas materiais e sem valor. Uma vida assim é desperdiçada em acumular vazios com aparência de fartura, distante da verdadeira sabedoria e da felicidade.

— Olha aqui retrato! Você agora me impressionou de fato. Com essa conversa de gente grande, chega a me comover. Peço-lhe mil desculpas, como sou uma pessoa comum, estou mais interessado em saber o que o Deoclécio escreveu nas suas costas. Afinal, o que foi?

— Posso afirmar, uma bobagem! As pessoas que pesaram aquelas frases eram muito rigorosas, usaram medidas sem o calibre conveniente: viam redemoinhos, onde havia uma brisa suave; tornados, onde um vento soprava um pouco mais forte; imaginaram reações improváveis porque tinham uma balança moral viciada pelo medo da fofoca e da maledicência de vizinhos intrometidos, coisas que eu pensava ocorressem só em pequenos arraiais de gente sem assunto e de vidas secas. Naquele texto, Deoclécio brincava, ou melhor, fazia uma caricatura do ocorrido entre o seu colega de viagens e a falsa baiana. Mas essas pessoas de Ouro Preto ponderaram que, sendo o rapaz comprometido, aquelas palavras, caso chegassem aos ouvidos da noiva, poderiam levar a rompimentos. Precavidas e bem-intencionadas, tamparam a escrita com uma folha de caderno em branco que foi colada em meu costado com excesso de grude caseiro, cuja consistência o fazia endurecer depois de imiscuir-se de tal forma que se arrancada levaria parte da escrita junto com as lascas do papel de que eu sou feito. Se eu fosse de carne e osso, como você, perderia peles e costelas, como não sou, perco aparas e fatias de celulose velha. Para ser direto, preferiram a proteção do segredo que a minha integridade física e o meu legado.

— E aí, só isso? Você não tem nada importante a me revelar?

O retrato tinha, e muito:

— O que posso lhe dizer a mais... Logo depois que esses dois foram fotografados, passou por ali uma cigana e, sem ser convidada, intrometeu-se, vaticinou a política e os maiores feitos nas suas vidas, e uma trajetória em que caberiam sucessos e desavenças. Ela falou de um futuro muito definido para uma cigana predizer, sem cerimônia e pompas, no meio de uma Praça de Ouro Preto. A meu ver, coisas sérias assim, que podem determinar o futuro de muitas gerações, só podiam ser ditas em palanques de luxo, à vista de jurados competentes e capazes de fazer calar o profeta, caso suas profecias fossem inconsequentes e degradantes. Lembro-me bem dela e de suas palavras: “O moço de pequena estatura vai ser um líder em sua terra natal, terá domínio político partidário, será amado e odiado, como todos que se metem na vida pública. A amizade entre esses dois nunca terá fim e estará presente na beira da vala de hades quando o maior for chamado para um encontro inadiável. Haverá o tempo de o senhor menor proteger a geração do maior, mas haverá também o tempo em que o líder dessa geração rebelar-se-á, por motivos fúteis, como são consideradas, em longo prazo, todas as pequenas razões que fazem velhos amigos seguirem caminhos opostos. Tempos de distensão, em que homens, antes tão cordatos, impelidos pelos próprios interesses ou pela pressão de seus companheiros, despejam, sem freios, os argumentos que negam os valores e realçam as debilidades do adversário. Homens públicos, discretos na compaixão e na consideração, indiscretos na crueldade e na ingratidão”. Dito isso, a cigana calou-se por algum tempo. Recobrava forças para novas predições ou abandonaria o tema para seguir em frente, subir aquelas ladeiras históricas e buscar novas vítimas. O inesperado, então, aconteceu: numa posição em que ela fazia lembrar um soldado romano empunhando uma baioneta, pronta para fazer rolar cabeças: ela avançou em direção ao de menor estatura e com o dedo indicador em riste enquanto caminhava tesa dizia: “Tu!... Caberás a ti, e a ninguém mais, dar um rumo para tua terra! Caberás a ti cuidar de teu povo, não os decepciones. Se não o fizeres terás do poder o mínimo!”, e, concomitantemente, apontou o indicador em direção ao Edgard para não deixar dúvidas com quem e de quem falava. O apontado pelo dedo xereta, irreverente, brincou com a flexão verbal pouco usada na região e, sem ao menos olhar para aquela pobre mulher, disse no mesmo tom em que ela falara: “Tu! Caberás a ti arredar para lá! Pois muito bem sabes que ‘praga de urubu não mata-cavalo gordo’. Deoclécio levou a mulher mais a sério, queria esclarecimentos, temia pelo futuro e perguntou: ‘Cigana, se assim for, seremos amigos até o dia em que ele morrer?” Ela resmungou o que parecia um enigma: ‘Se um morre amigo de quem fica vivo, o outro guardará eternamente este sentimento, pois as desavenças entre descendentes não retroagem e nem pesam sobre o túmulo”. Com essa resposta, deixou no ar aquilo que mais o senhor Deoclécio queria saber: se ele seria o primeiro a morrer. E a errante mulher, ao concluir com esse triste presságio que falava da morte dos amigos e das desavenças entre seus descendentes, tomou seu rumo. Caminhou devagar sobre as pedras rústicas e escorregadias que cobriam aquelas ladeiras íngremes. Vestia saias longas e coloridas e carregava, a tiracolo, um penico de seu uso, velhos tachos de cobre e outras bugigangas. Ofegava quando parou ao lado do requintado Chafariz dos Contos.
— Retrato, se você não enxerga, como podia saber as cores da saia dela? — Perguntei, mais por curiosidade de que para ofender ou duvidar, aliás, a esta altura do campeonato, já não havia rusgas entre nós.

Ele foi detalhista e convincente nos esclarecimentos:

— Como você já deve ter entendido bem, Deus me deu o talento da percepção para compensar a falta da visão. Contudo, considero sua pergunta conveniente, pois, se vamos nos tornar amigos, temos que manter um relacionamento que nos faça desenvolver uma confiança mútua e alicerçada na verdade. No caso do vestido, eu só fiquei sabendo dos detalhes porque aqueles rapazes revelaram-nos através de seus pensamentos, o maior ao pensar “essa deve ser cigana de fato, pois usa esses vestidos longos, como todas elas”, o menor ao se interessar pelas cores berrantes daquela mesma saia. Quanto ao chafariz, foi a própria cigana que me mostrou, quando nele chegou arquejante. Esclarecido, ou quer mais detalhes?

Eu não tinha como ter dúvidas e concordei:

— Não precisa falar mais nada, já percebi, é desse mesmo jeito, alguém servindo de rádio transmissor, que você ficou sabendo que o chafariz era requintado.

— Pois é.

O retrato afirmou e continuou como se falasse para si mesmo

— Eu mesmo, no princípio, tinha minhas dúvidas quanto a essa capacidade de perceber o que acontecia ao meu redor, mas com o tempo, com o acumular de acertos comprovados pelos cotejos sucessivos entre o previsto e o ocorrido, minhas dúvidas dissiparam-se. Hoje tenho certeza, eu seria mais completo e feliz se tivesse a visão, mas o universo ou Deus, como queira, não me negou o alcance da sabedoria humana. Esses fatos ocorridos no início de minha vida só tomaram forma completa anos depois. Naquela oportunidade, apenas ficaram registrados numa consciência destituída de estruturas linguística, mas depois, com meu aprendizado, pude interpretar tudo que ali aconteceu.



Eu já estava cansado e disse-lhe:

— Prezado amigo, Retrato, amanhã a gente se fala, vou dormir agora. Fui!

E ele:

— Fiquei!