Por Lulu Alfenas
Depois de muitos e insistentes convites, elas chegaram de improviso como sempre acontece com as melhores e mais queridas visitas, pois há as que não precisam de prévio aviso, e outras que não são bem-vindas nem com anúncio bordado a ouro.
Ordália, Elza, Quita e Edinho, quatro unidades de carbono carregadas de alegrias vindas da Rua, que fica logo ali do outro lado da montanha, a dois quilômetros por terra plana. Vieram iluminar a nossa roça, que já conhecia as primeiras sombras do anoitecer. Cá estávamos Cátia, Edgard; Rose, Siovani, Marquinho; e os de casa, Maria e Eu.
Uma sopa de abóbora e um feijão reforçado com torresmo já estavam na mesa. Como aqui não temos gavetas ao modo de Mariana (modus comedere), sempre nos sobra uma reserva de comida que nos tem evitado constrangimentos. Aquela sopa era suficiente para um exército inteiro, então, ficamos tranquilos, tínhamos sustança para todos. Mas as visitas, logo que viram as panelas na mesa, concluíram que aqui não se janta tão cedo e nos avisaram, algumas com menos convicção, de que já tinham comido.
Voltando ao curso dos acontecimentos daquela noite, lembro-me que Elza e Ordália nos devem um dia de quitanda, e faz tempo. Explico, elas ficaram de vir um dia para fazer biscoito de polvilho, cubu, broa de fubá e tudo que um forno de cupim gosta de assar e a gente de comer - tudo em memória de nossa amizade e dos laços de nossos antepassados.
De início, como eu vinha dizendo, as visitas negaram-se a participar de nosso leve jantar, mas como o horário foi avançando, acho que, ou a fome chegou, ou fomos muito insistentes, acabaram comendo o que eu colocava nas pequenas tigelas e entregava em mãos. Tudo coberto com cebolinha e ora-pró-nobis de orelha, picados. Aprendi com minha mãe, pelo exemplo praticado, com amor, por muitos e muitos anos, que não há quem recuse comida posta no prato e dada na mão. O certo que comeram e uma delas até repetiu, só notei porque sempre observo para separar os que realmente gostam de nossa comida dos que só a aceitam por educação, gente que morre entrouxada para não desfeitear. Pensei comigo, esta, ou estava com muita fome, ou é educada acima da média mais dois desvios padrão (desculpem-me a recaída estatística e a lembrança da curva normal), pois ela saiu da curva ao repetir três vezes.
Mas antes da sopa, havia rolado algum papo dentro de casa quando o Edinho nos contou um caso real e que nos deixou espantados. Esta é a estória por ele narrada: João Beija-flor subia a Rua Nova quando uma mulher apavorada o interpelou aos gritos — Acode, Beija-flor! O Joca acaba de morrer, vem cá! — e o puxou para dentro da casa do morto. Beija-flor já entrou apalpando o corpo ainda quente estendido na cama. Decidido, fez nele algumas massagens. E, credo em cruz! Não é que deu certo! O Joca não apenas voltou como se sentou na cama e fez uma breve declaração: — Gente! Por que vocês fizeram isso comigo? Eu estava num lugar tão bom, e vocês me fazem voltar para sofrer! “—. Enquanto alguns criticavam a ingratidão do ressuscitado — poxa! A gente salva o cara, e ele ainda reclama! — o recém morto terminava aquelas breves palavras, talvez se lembrasse das terríveis dores do infarto que o havia matado, e sem mais nem menos virou-se para o canto e morreu novamente. Ninguém mais falou de ingratidão, nem acudiu de tirar a temperatura dele; e Beija-flor amuou-se em seu quadrado, nada de massagens, sequer se atreveu a encostar as mãos no peito do defunto.
E finalmente, Edinho concluiu com tristeza: — Foi em paz nosso Joca, em morte definitiva, como deve ser toda morte que se preze. Que Deus o tenha!
Terminado esse caso, houve um momento em que os ouvintes cismavam sobre a sua veracidade, mas a sombra de dúvida logo se dissipou e deu lugar a conversas agradáveis a mitigar o estresse que a incerteza costuma abrigar. Em nossa região todos sabem que Edinho não mente.
Ligado à varanda temos um cômodo que soma biblioteca, copa e cozinha. Não é por economia de paredes, é que as pessoas de nossa terra gostam de viver na cozinha que é perto do fogão, de onde saem quitutes e cafezinhos, mas ninguém abre mão de espaços dilatados, pois somos viciados no campo e na largueza das coisas que a vida nos dá.
Acho que as visitas acharam que somos de deitar cedo, pois nem eram onze horas e já ameaçavam ir embora e, de fato, já estavam de saída, mas fizeram um “pit stop” na varanda quando insistimos para que demorassem mais um pouco. Nisso a Ordália nos cochichou que Quita era mestra em contar casos, e parece que aquela gosta, pois, sem muito rogo, logo tomou assento no banco da varanda, com ares de quem sabe a que veio e conhece de sua luz própria, e nós, como aleluias e besouros das noites escuras, começamos a circular ao seu redor. Sedentos de cultura local e de tudo que nega o tédio e o marasmo, dedicamos nossos ouvidos aos seus casos e descansamos nossos espíritos de todas as preocupações. Seu repertório não é pequeno e tem alta carga de emoções, tudo tirado de experiência própria com aventuras engraçadas. Quita transforma-se, quando conta estórias, em interessante arquivo de onde brotam memórias de uma infância rica em inocentes travessuras, que mostram um lado que nós, meninos da terra e da mesma geração, nem sonhávamos que existisse entre as meninas que, por natureza e costumes daquela época, eram recatadas. Quita fala de um tempo em que sequer na Igreja as mulheres misturavam-se com os homens.
Ela abriu-se em eloquência, sua fala era como um sopro que arejava toda a varanda e varria de nossos espíritos tudo que não era alegria. A jovem senhora principiou pela sua vida de criança: um pai rigoroso, que ensinava com bons conselhos e uma correia de usina — lonas dobradas —. Morava num sobrado, na Praça São Sebastião, num casarão onde hoje (Janeiro de 2017) fica a Prefeitura Municipal. Debaixo da casa havia um cômodo que era alugado para o comércio. Das janelas altas de sua casa e nos raros momentos em que escapulia para a venda, a menina ia sendo determinada pelas primeiras afeições, e sua alma sensível e esperta sentia que tinha que ver o mundo mais de perto, e que esse precisava conhecê-la melhor. Sua alma era forjada numa escola de extrema severidade, onde apanhava muito da professa, e nas ruas, onde fazia amizades duradouras. Assim crescia e assim se enturmava com outras capetinhas da mesma idade e do mesmo nível social.
Depois de nos colocar no cenário de sua vida, que é muito maior do que aqui se reproduz - reduz quem conta e mais ainda quem relata por escrito -, Quita nos contou de quando sua neta, para atender a um trabalho escolar, perguntou-lhe se ela tivera alguma coleção. Lembrando-se da situação em que se encontrara frente à neta, ela quase não conseguia falar de sua coleção, pois o próprio riso a embargava de tal forma que não havia como pronunciar o nome de seu inusitado hobby. Quita é dessas pessoas que se divertem com os próprios casos, e nesse tivemos que esperar por mais de cinco minutos para que ela tomasse fôlego antes de continuar. Uma pequena interrupção que fazia aumentar nossa curiosidade; o tempo não para, mas aumenta a aflição da espera. O seu riso, por outro lado, nos contagiava, o que se via em cada rosto e em cada ruga, embora poucas e rasas (somos os jovens dos anos 60). Mas, finalmente, daquele mato saiu um coelho: era colecionadora de palitos de fósforos queimados. Como já tínhamos queimado boa parte de nosso estoque de risos na expectativa, demoramos a absorver a graça da coisa em si. Perguntávamo-nos, por que uma menininha tão bonitinha e que morava num sobrado da principal praça da cidade teve que colecionador palitos riscados. Mas ela esclareceu: estava na moda o jogo de palitos cruzados, em que se disputa o monte de palitos com lançamentos intercalados. Aquele que jogasse o palito que montasse em cima de qualquer um do monte tinha como prêmio todos os palitos que já estivessem lá. Os mais abastados jogavam com palitos novos; as meninas de sua turma, com palitos riscados. Haja pobreza! Pode-se imaginar a cara de espanto da neta ao ouvir de uma avó, tão distinta e professora durona, uma história dessas.
Jogando a melhor amiga no buraco.
Quando a Limeira era bem deserta e nem era bairro, havia por lá uma grande olaria com várias caieiras. Ali havia fogo, tijolos, barro e buracos de onde se tirava a matéria prima, argila. Num desses buracos, o mais fundo, numa noite escura e medonha, Quita e sua turma jogaram Ana Maria e deixaram-na ao Deus dará. A menina abriu o bué. O choro dela era tão alto que João Miguelângelo, que subia o morro depois de haver tomado umas e outras, ouviu aquilo e foi lá tomar satisfação com o buraco. Chegou a trocar algumas farpas com a barrenta fenda e até de acusá-la de estar a perturbar o sossego da encosta. Queria explicações, mas ao perceber tratar-se de uma menininha, ficou sóbrio em segundos e foi o herói da noite..
Os Franciscos
Já havia muito tempo que a turma da Quita reparava nos modos de os Fransciscos da família Milagres participarem do footing dominical. Eram tantos os Franciscos dessa família (o do Dão, o de Quidó, o do Chico Inácio e outros que mesmo não sendo Francisco a eles se equiparavam em estilo) e vestiam tão bem nos domingos que era difícil não separá-los da manada: todos de ternos brancos, gravatas listradas, sapatos bem engraxados e lenços escuros nos bolsinhos dos paletós. Eram e pareciam ser distintos. Impecáveis, iam e vinham destacando-se de outros mais simples que vestiam camisas surradas e calças de brim amarelo. O footing, que migrava do leste para o oeste da cidade, acontecia, nesta época, ao lado da igreja da Praça São Sebastião. Quem dele participasse tinha que passar bem em frente da casa da Quita, onde o perigo vestia saias. Da janela as meninas planejaram manchar aquela paz branca, desarrumar aqueles Franciscos, quebrar aquela empáfia. Tudo bem pensado e ensaiado: bocas cheias de água, canudinhos de mamona, contagem de 1 a 3 e já, todas se levantam para o impulso, lá vai o jato de água molhar aquelas golas engomados. 1,2,3 e deu certo logo no primeiro ataque. Todos da praça e os Franciscos olharam para cima como se também houvessem ensaiado, mas a pobre Quita deixou-se flagrar ao levantar-se fora do compasso, atrasou-se por segundos, foi vista de corpo inteiro por todos da rua. O bochicho chegou ao sobrado do Gentil, onde também morava o perigo. Mais tarde, na solidão de seu quarto, dois olhos intumescidos esperaram a hora do pai. Houve correia de usina, choro e ranger de dentes.
O arrependimento por não ter feito.
Em suas lembranças, Quita só mostra certa decepção por não ter participado da cata de roupas do açude, quando as meninas esconderam as roupas dos banhistas do Corgo Fundo. Enquanto aqueles nadavam pelados, elas rastejaram protegidas pelos pendões do capim gordura e recolheram calças, cuecas e camisas, e enfiaram tudo no meio do gravatá. E como diz o ditado, “levou a fama sem deitar na cama”. Na noite daquele dia, provou o gosto amargo da injustiça, nas duras lambadas da correia dobrada de usina.
E aqui ficamos até que Edinho, Quita e sua turma apareçam de novo,não precisam avisar, é só voltar.
É mentira, Siovani?
E aqui ficamos até que Edinho, Quita e sua turma apareçam de novo,não precisam avisar, é só voltar.
É mentira, Siovani?
Luiz Alfenas